QUINTO DIA E o tempo não dava o menor indício de melhora. Apesar da neve e da chuva, Neeska saía do abrigo invariavelmente para verificar as condições do rio e, desanimada, retornava. Não havia muito que fazer por ali, a não ser aguardar.  E a espera estava se tornando uma tortura para ambos.  Procurava manter-se ocupada do lado de fora do abrigo o máximo que podia, por não agüentar mais os queixumes do militar a respeito do frio.  Nada do que fizesse era suficiente para mantê-lo aquecido, não era sua culpa se sua constituição Cardassiana era pouco afeita a baixas temperaturas. Contudo, o que mais a irritava era o fato de ele ter desenvolvido o mórbido hábito de divertir-se com ela -- seus apartes habilidosos constantemente a conduziam a uma explosão de puro descontrole.  O relacionamento dos dois não podia ser pior.  Olhou para o céu carregado e resolveu retornar ao abrigo a contragosto.

De volta à carcaça metálica examinou o militar e procurou descansar um pouco, tivera um dia longo e cansativo. Acomodou como pôde seu paciente que aparentemente dormia e em seguida deitou-se ao seu lado, como fizera nas noites anteriores, garantindo desta forma manterem-se aquecidos.

Neeska podia ouvir a respiração entrecortada de Dukat, que apesar dos cobertores térmicos ainda tremia de frio.  Aconchegou-se colando mais ainda o seu corpo no dele desejando pegar logo no sono e ver aquele dia findar de vez.  Permitiu que sua mente fatigada se distanciasse e que seus músculos relaxassem. De repente, um movimento involuntário do oficial a assustou ao sentir alguma coisa roçar sua coxa, abriu os olhos imediatamente protestando.

- COMPORTE-SE!

Pego de surpresa o Cardassiano levou alguns segundos para entender o protesto. Esboçou um sorriso malicioso nos lábios, voltando a fechar os olhos, e com um sarcasmo peculiar respondeu elucidativo:

- É apenas um feiser, doutora, não há o que temer, eu lhe asseguro.

Não estando muito convencida disso, Neeska lutou contra o impulso de levar a mão até a coxa, mas não queria dar margens a mais uma querela com o irritante tulgryn. Porém não pôde se furtar a comentar.

- Pensei ter sido minuciosa na busca deste item em particular!

Ainda conservando o sorriso nos lábios, o reptilóide prosseguiu:

- Doutora, as probabilidades de se alocar armas em um uniforme militar são grandes. Um bom soldado sempre anda prevenido.

- Pode ser... – respondeu ainda incrédula, desejando estar em qualquer lugar menos ali.

- Não há com que se preocupar, - continuou, encantado em provocar a nativa - Não estou em condições no momento de exercer o tipo de atividade que sua mente maliciosa sugeriu há pouco.  Tranqüilize-se, está tão segura deitada aqui comigo quanto repartindo sua cama com uma criança.

A Bajoriana tentou explicar-se, constrangida:

- É... Natural que eu duvide... Afinal... É um soldado Cardassiano... A fama de vocês é conhecida por toda Bajor!

- Verdade? – fingiu surpresa.

Neeska evitou fitar o oficial, sentindo-se nada à vontade com tudo aquilo. Ainda abraçada a ele, deixava-se levar pelo sobe e desce ritmado da respiração do militar, que por sua vez mantinha-se impassível, olhos fechados, limitando-se a respirar lentamente e a manter-se aquecido o quanto possível, agradecido de tê-la junto a si doando-lhe calor corporal. Era obrigado a concordar que não seria nada difícil a situação maldosa sugerida por ela instante atrás ocorrer com ou sem condições físicas, apesar de ‘inimiga’, a doutora era deveras atraente...

Não resistindo à tentação, voltou à carga só para testar-lhe o limite.

- Além do mais, você não faz meu tipo, se quer saber.

- Que os Profetas digam Ahosk! – praguejou entre os dentes, acompanhado de qualquer coisa como “Quem ele pensa que é?”, para finalmente explodir em voz alta: – Se não tiver nada mais aproveitável para dizer, então sugiro que vá dormir e me deix...

- Sim, tenho mais uma coisa que gostaria de dizer – revelou subitamente com o tom de voz sério, após uma curta pausa fazendo algo que julgava impossível.

- Obrigado por tudo o que está fazendo por mim.

Toda a raiva e descontrole desfez-se como que por encanto. Ele fizera de novo, parecia um encantador de serpentes, e na verdade era a própria!  Conduziu habilmente a conversa, incitando algo que novamente imaginava inconcebível. Levou-a a ponto de apopléctica combustão para sem mais nem menos dizer alguma coisa perfeitamente sincera e razoável. Provocou-a com sucesso e, de forma rápida e irracional, Anarys se deixou induzir.  A médica se perguntava se alguma vez alguém já tivera a ousadia de brincar com os seus sentimentos daquela maneira, como se fossem notas graves e agudas escapando de algum instrumento de sopro Klingon.  Não, definitivamente não! Dukat fora o primeiro, o único, e isto a aborrecia profundamente.

Ainda não aprendera como enfrentar este tipo de situação sem perder o controle, mas descobriria uma forma...

- Não agradeça, sou médica e este é meu trabalho – rebateu constrangida, com um fio de voz falseando uma firmeza que estava longe de existir, e antes que o outro pudesse se armar com nova pergunta ordenou secamente, tentando ganhar tempo para destrinchar o que se passava em seu ser:

- Agora volte a dormir!

- Não posso doutora, creio que perdi o sono...

- Mas eu não, boa noite! – encerrou o assunto, cobrindo a cabeça com o cobertor térmico com tamanha determinação que acabou por arrancar um gemido de dor do Cardassiano.

Tornou a fechar os olhos e passados alguns minutos, quando pensava seriamente que o outro dormira, ouviu-o chamar por ela:

- Doutora?

- O que foi agora? – suspirou alto, soltando um muxoxo impaciente.

- Se você fizesse o meu tipo... Se eu estivesse em condições e... eu a abordasse...  Repeliria meu avanço?

Foi por muito pouco que Anarys não se levantou, agarrada a um dos cobertores, para procurar lugar no canto oposto do abrigo, deixando seu paciente gelar até a morte.  Em vez disso, controlou-se com dificuldades.

- Não consegue ficar acordado e em silêncio ao mesmo tempo?

Ele não respondeu à provocação. Em vez disso, perguntava-se porque uma atraente nativa, médica, arrogante, que parecia não temê-lo apesar de saber de quem se tratava, teimava em aninhar-se em seu peito doando o seu próprio calor corporal para salvar-lhe a vida.  Era algo que ainda não tinha resposta, por mais que buscasse em sua mente um argumento válido. Também, para ser sincero, não podia negar o quanto aquilo o ‘aquecia’ de outra forma...

 

 

Sobreviventes do Preconceito

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