O
DIA AVANÇAVA quando Neeska resolveu reavaliar mais uma vez as
condições de seu paciente que dormia.
A febre finalmente cedera e os sinais vitais eram mais
animadores. Verificou os curativos e ministrou medicamentos necessários,
vestiu o uniforme seco no oficial e o cobriu bem com os dois
cobertores térmicos, e de posse do phaser tratou de aquecer as
rochas novamente.
A
faina tomou alguns minutos e quando julgava ter acabado arriscou
uma nova saída do abrigo, mas desistiu no mesmo instante em que
ouviu os primeiros pingos fortes da chuva baterem ruidosamente no
teto da descarnada estrutura metálica que servia de abrigo.
Sentou-se junto à fonte de calor soltando uma imprecação
e passeou a vista pelo reduzido espaço até notar a caixa de rações.
E foi então que se deu conta de que estava faminta, fazia horas
desde sua última refeição.
A
ração não poderia ter gosto e aroma piores. Era o mesmo que
ingerir nacos secos e duros de aspecto duvidoso de peixe enebriano,
o único capaz de sobreviver nos rios poluídos por resíduos tóxicos
das muitas usinas de extração de minério. Se a fome não fosse
tanta, teria aberto mão facilmente de tal iguaria.
Enquanto
lutava com seu estômago para manter a parca refeição em seu
devido lugar, tornou a contemplar o militar com renovada
curiosidade.
“Quem
seria ele afinal?”, indagava-se.
A julgar pela pouca conversa que tiveram, tinha a impressão
de que não se tratava de um oficial Cardassiano comum, mas alguém
de importância maior.
A maneira autoritária com que a tratara não deixava
lastro para dúvidas.
Era alguém acostumado a distribuir ordens e ser
prontamente obedecido. Alguém que deveria ser temido não só por
sua provável posição de destaque na cadeia hierárquica militar
de opressão a Bajor, mas por sua própria essência.
Um calafrio tomou de assalto Anarys, fazendo com que se
encolhesse instintivamente em puro ato reflexo de proteção.
Voltou
sua atenção para o que sobrara da armadura do militar e,
examinando a insígnia nela incrustada, verificou que diferia em
cor e formato das demais que vira nas vestes dos oficiais mortos
que enterrara, confirmando assim suas suspeitas de que o estranho
era o mais graduado militar daquele veículo mal fadado.
Suas
conjecturas foram interrompidas quando seu paciente dava sinais de
acordar.
Aproximou-se e não aguardou muito.
O
tulgryn abriu finalmente seus olhos azuis sonolentos percorrendo
todo o abrigo até toparem com a figura da Bajoriana.
-
Como se sente? – indagou em um razoável kardasi.
O
oficial não conseguiu emitir um som sequer como resposta,
pigarreou e tentou novamente, assustando-se com o som nada natural
de sua voz.
-
Péssimo!
-
Vou encarar isto como ótimas notícias sobre seu estado de saúde
– brincou com o militar, que nitidamente se esforçava para
entender o que acabara de ouvir.
-
Minha voz... – disse apreensivo, levando a mão ao curativo em
sua garganta.
-
Voltará ao normal em breve, não se preocupe – respondeu,
enquanto o Cardassiano lutava nitidamente contra a confusão
mental em que se encontrava – Sofreu um acidente há três dias
– explicou.
-
Agora me lembro... – disse, aliviado ao notar que começava a
domar a mente conturbada. – E até mesmo de você... Minha
tripulação? – emendou em seguida.
Anarys
balançou a cabeça em sinal negativo, confirmando suas palavras.
-
Não pude fazer muito por ela, já estava morta quando cheguei.
O
Cardassiano pareceu consternado, para a surpresa dela.
A curiosidade tão comum de qualquer paciente envolvido em
um acidente fez com que o oficial a crivasse de indagações que
mais pareciam um interrogatório.
-
Que lugar é este?
-
Garganta Ratasha, estamos abrigados dentro de parte do que sobrou
de seu transporte.
O
oficial exclamou espantado por finalmente ter se dado conta da
situação.
-
Três dias, você disse?! ...Todo este tempo e não fomos
contatados por ninguém?
Que providências está tomando a respeito? – o tom de
sua voz demandava por explicações.
Não
acreditando em seus ouvidos, Anarys despachou em alto e bom tom.
-
Estou fazendo o melhor que posso, dadas as circunstâncias.
-
Pelo visto é muito pouco!
Três dias sem contato?
Isto é inaceitável!
Será que até presteza de ações teremos que ensinar a
vocês Bajorianos?
A
médica controlou a custo o gênio forte, respirando profundamente
para em seguida relatar a situação cuspindo palavra por palavra.
-
Há muita neve e chuva lá fora, a única saída daqui está
bloqueada pelo gelo, isso sem mencionar que o nível rio Glyrhond
está perigosamente alto – indicou com a cabeça na direção da
lona improvisada como porta – Ratasha é famosa por sua
instabilidade climática. O tempo aqui é voluntarioso e costuma
pegar desprevenidos até os mais experientes viajantes.
Nada ou ninguém entra ou sai da garganta até o tempo
permitir – concluiu.
Foi
a vez do militar respirar sonoramente em frustração e com o tom
de voz nitidamente mais baixo perguntou:
-
E quanto tempo acha que teremos de aguardar para sairmos daqui?
-
Isso eu não sei dizer – respondeu, ajudando-o a tomar um gole
de sopa quente – Houve um caso – continuou – de um viajante
que ficou preso aqui por até vinte dias.
Ao
ouvir aquilo o militar engasgou-se, fechando os olhos em completo
desânimo.
-
Poderia ser pior, pelo menos temos um teto sob nossas cabeças -
tentou animá-lo e convencer a si mesma – Podemos enviar um
sinal de socorro com os comunicadores de seu transporte, assim que
o tempo permitir e me disser como.
-
Receio não ser possível, todo o sistema operacional do veículo
avariou-se antes mesmo de cairmos – esclareceu enfático,
tomando o resto do caldo quente entregando a caneca vazia à
Bajoriana.
Neeska
esmoreceu ante aquela revelação, mas o militar não se dava por
vencido.
-
Ainda acho que devemos fazer alguma coisa.
-
Como o quê, por exemplo? - Perguntou curiosa, sentando-se no lado
oposto do abrigo.
O
Cardassiano pareceu refletir por segundo ou dois, concluindo.
-
Acho que deveria procurar ajuda. Sozinha teria maior chance.
Quanto a mim, ficaria aqui tentando acreditar que se conseguisse
encontrar um meio de sair daqui buscaria socorro – estranhamente
sua voz soara séria e resignada ao dizer aquilo, como se
considerasse o fato consumado.
A
idéia já havia passado pela mente da médica e era uma oferta
tentadora, pois descobrira o quanto não gostava do Cardassiano,
mas mesmo assim, não o abandonaria naquelas condições, ainda
precisava de seus cuidados, muito embora bem que merecesse ser
largado à própria sorte pela forma como a vinha tratando.
-
Talvez faça isso se continuar a me provocar – disparou,
crivando um olhar contundente na direção dele – Mas tenho idéia
melhor, trate de ficar bom enquanto que eu me encarrego do resto.
O
silêncio foi a resposta que sepultou a última esperança de
Anarys em se ver livre da situação em que se encontrava.
Concentrou-se em aquecer as rochas sem ter mais o que
dizer, enquanto o militar observava calado ela sacar de sua bolsa
um feiser Cardassiano. Ele instintivamente pôs-se em alerta,
procurando dissimular a sua mais nova e real preocupação.
-
Vejo que cuidou de ‘nossa’ segurança.
Anarys
não se deu ao trabalho de virar-se ao perceber a que se referia o
Cardassiano e, julgando-se fora de sua vista, girava a arma em
suas pequenas mãos na tentativa de descobrir por que a coisa não
queria funcionar.
-
Talvez se soltar a trava de segurança junto ao cabo... ela
funcione adequadamente – explicou, aliviado ao perceber a total
falta de habilidade da nativa em manusear um feiser.
Um
pequeno clique soou no abrigo, seguido de um facho de luz
brilhante atingindo as rochas.
De forma desajeitada, a médica guardou a arma em seu
cinto, sob o olhar cada vez mais entretido do tulgryn, e tornou a
arrumar as rochas com a haste metálica que retirara do peito
dele.
-
Creio que fui precipitado no que diz respeito à ‘nossa’
segurança... Do jeito que maneja este feiser, não é difícil
imaginar o que mais poderia atingir com ele além destas rochas
– implicou.
-
Tem razão – respondeu de pronto – Sugiro que tenha cuidado
com suas palavras daqui para frente, já que não costumo ser
muito paciente com os de sua laia!
O
tulgryn sorriu divertido e não resistiu em continuar a provocar a
doutora.
-
Concordamos com alguma coisa afinal!
Por que não me deixa ficar com ela? - Estendeu a mão, na
clara intenção de recuperar a arma.
-
Não me tome por tola! – exclamou, levando a mão à cintura.
-
Jamais. Se bem recordo este papel cabe a mim... Quais foram mesmo
suas palavras? – levou alguns segundos fingindo puxar pela memória
– “Pode ser um tolo, mas estúpido com certeza não é.”
-
Para alguém que estava meio morto quando ouviu isso, admito que
estou impressionada com sua memória.
-
Um dos meus muitos atributos, doutora – gabou-se.
Largando
a haste próxima à fogueira, não conseguindo ficar calada ante
aquele comentário, voltou à carga.
-
Um Cardassiano tolo, arrogante, orgulhoso e com boa memória... Se
ficarmos aqui por mais tempo, creio que terei um perfil completo
de seus muitos atributos.
O
militar ensaiou uma gargalhada e arrependeu-se quando um forte
acesso de tosse o acometeu, fazendo-o gemer de dor ao expelir
sangue. Anarys imediatamente postou-se junto a ele, ajudando-o a
se refazer.
-
Se continuar assim não terá mais que se preocupar em ter seus
miolos espalhados por todo o abrigo por seus apartes infelizes –
admoestou, apontando para a arma em sua cintura – Vamos, beba um
gole d’água e procure descansar – ordenou entregando-lhe uma
caneca.
A
médica foi prontamente atendida.
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