APÓS
MANTEREM silêncio
por quase uma hora, cada um mergulhado em conjecturas e preocupações,
Dukat, sentindo-se mais revigorado e com a voz ainda
descaracterizada pela recente traqueotomia, decidiu que era hora
de extrair novas informações daquela incomum e intrigante
Bajoriana.
-
Ainda não sei o seu nome. Como
se chama?
Chegara
a hora das apresentações, Neeska finalmente iria satisfazer sua
mal contida curiosidade. Sentada
do lado oposto do abrigo junto à fogueira, procurando disfarçar
sua ansiedade, continuou a arrumar o kit de emergência.
-
Doutora Anarys Neeska.
-
Pela inflexão de sua voz noto que se orgulha de seu título,
doutora – provocou, dando ênfase às suas palavras.
-
E por que não deveria? Não
faz idéia do sacrifício que minha família fez para que eu
tivesse a chance de me tornar médica!
-
Não duvido disso, admiro pessoas perseverantes e arrojadas – após
pequena pausa prosseguiu – O que uma obstinada doutora faz neste
fim de mundo, se é que posso perguntar?
Neeska
esfregou as mãos junto às rochas aquecidas e voltando sua atenção
para o militar respondeu.
-
Vou onde meus serviços são necessários.
-
Sua dedicação é comovente.
Farta
daquele interrogatório, Neeska procurou mudar o rumo da conversa.
-
Também não ouvi ainda dizer o seu nome.
-
Perdoe-me a falta de boas maneiras – disse em nítido tom de troça,
tentando retardar a resposta, indagava-se intimamente se deveria
satisfazer a curiosidade da nativa a seu respeito, já que seu
nome estivera atrelado recentemente a um episódio deveras
desagradável com grande repercussão em Bajor – Mas não sei se
devo, pois corro o risco de ser abandonado à própria sorte.
Anarys
franziu o pequeno nariz Bajoriano, fazendo uma careta de puro
interesse irrequieto.
-
O que será que fez de tão terrível que o destaca dos demais
Cardassianos que nos oprime, eu me pergunto?
-
Muitos temem a simples menção de meu nome...
-
Vocês Cardassianos adoram impressionar. Se sua intenção era
esta, sinto dizer que não obteve sucesso – disse falseando
receio.
Dukat
mordeu os lábios ressecados pelo frio, mal contendo o sorriso.
Descobrira uma forma divertida de passar o tempo naquele
lugar, incitar a nativa até vê-la perder o controle.
Manteve o silêncio como instrumento de provocação sem
desgrudar os olhos dela, aguardando nova explosão emocional, o
que não tardou a acontecer.
-
Escute, se não quiser dizer seu nome, tudo bem, não vai fazer
diferença alguma, Cardassiano!
Vitorioso
finalmente revelou.
-
Tulgryn Dukat – disse, com o melhor que sua voz podia oferecer
no momento.
A
médica a princípio não esboçou qualquer reação ante o
impacto daquele nome, ficara atordoada na verdade. Um sentimento
de desprezo mesclado ao ódio invadiu-lhe o interior e teve de
lutar contra sua natureza que a impelia a sacar o feiser dando
cabo da criatura abjeta. Estava
diante do Exterminador de Ydek, como ficara conhecido na região
de Navot.
Tulgryn
Dukat fora enviado pelo Comando Central especialmente para
negociar a libertação do oficial responsável pelo campo de
trabalhos em Ydek. Administrou pessoalmente as negociações,
iludindo os líderes rebeldes com falsas promessas, enquanto
articulava um plano diabólico de invasão, que acabou culminando
com a morte dos cabeças da rebelião. E, para demonstrar que atos
daquela natureza não seriam tolerados, selecionara ao acaso meia
centena de prisioneiros, dez para cada Cardassiano morto, e os
executou perante a todos no campo.
Tal
feito chamou a atenção do Comando Central, que acabou por
conferir a ele a função de supervisor responsável por um
conjunto de campos e minas no território de Navot, sem mencionar
que o Comando Central passaria a acompanhar com renovada atenção
a atuação do jovem e promissor tulgryn.
Não
mais se contendo, Neeska despejou-lhe um olhar repleto de
desprezo.
-
O Exterminador de Ydek em pessoa – disse com desdém – Conheci
algumas famílias que perderam seus entes queridos no massacre que
liderou.
-
Massacre? Você não sabe o que está dizendo! – exclamou
surpreendido com a ousadia da Bajoriana.
-
Não conheço palavra melhor que defina a morte daqueles
inocentes! – altercou-se.
-
Prisioneiros inocentes que mataram bons oficiais Cardassianos no
cumprimento do dever – rebateu pausadamente, com uma calma que
lhe era peculiar.
-
Sim, cumpriam seus deveres privando bons cidadãos de Ydek do
direito à liberdade, trancafiando-os em um campo que sutilmente
vocês denominam de trabalhos, mas que na verdade não passa de um
matadouro! – explodiu finalmente, em ira incontida.
Entediado
com o rumo da conversa, Dukat resolveu encerrar o assunto.
-
Não pretendo perder meu tempo justificando meus atos a você.
-
Isso não será necessário, os fatos falam por si mesmos!
-
Não faça julgamento baseado no que ouviu contar, doutora, não
estava lá para atestar a veracidade dos acontecimentos, eu sim!
– disse, pela primeira vez demonstrando alguma irritação.
-
Nada do que venha a me dizer irá mudar o que sinto a respeito, ou
trazer de volta os prisioneiros que você mandou executar!
-
Tem razão – concordou com o olhar vago, para espanto dela –
Mas evitei que o massacre a que se referiu não se tornasse algo
pior como, por exemplo, o extermínio de todos os 1.200
prisioneiros no campo, como desejava o Comando Central.
A
médica pareceu surpreendida, conforme previra o tulgryn.
-
Como pode ver, doutora, - continuou - mesmo um oficial Cardassiano
nem sempre concorda com as decisões militares de seus superiores.
Alguns possuem o bom senso de argumentar e procurar mostrar que a
matança indiscriminada só gera mais violência e traz conseqüências
desagradáveis.
Anarys
continuou sem palavras.
Ajeitando-se
debaixo do cobertor térmico, Dukat deu fim à conversa.
-
Estou cansado e tenho frio – virou-se para o lado, adormecendo
quase que imediatamente.
Anarys
aproveitou o momento para extravasar sua raiva longe dali,
enrolou-se em um pedaço de lona e sem se importar com o frio
deixou o abrigo, rumando sem direção, tentando entender o que se
passara há pouco.
O
petulante Cardassiano a enervara ao extremo com suas boas maneiras
e fala macia. A forma
como ele a tratara, arrotando orgulho e superioridade -- nem ao
menos ouviu dele qualquer agradecimento por tudo que estava
fazendo.
Era
óbvio que ele mentira a respeito de Ydek.
Não estivera lá, é verdade, mas sabia dos fatos através
de fontes dignas de crédito, e, mesmo que fosse verdade, o que
importava? Inocentes
Bajorianos morreram e ele fora o responsável.
Quase
se arrependia de ter-lhe salvo a pele, mas era algo que não podia
evitar, tornara-se mais forte que ela o impulso de ajudar quem
necessitasse de suas habilidades, fosse Bajoriano ou não. Haadra,
sua amiga inseparável de infância, jamais concordou com este seu
comportamento. Costumava dizer que ele ainda seria motivo de
muitas dores de cabeça. E
como estava certa. Se ela pudesse vê-la agora...
Irritava-se
consigo mesma por agir. Odiava o jugo Cardassiano como qualquer
outro em Bajor, ele fora responsável pela dizimação paulatina
de sua família. Estava cansada de tanta degradação, privação,
humilhação e, principalmente, cansada de tantas mortes sem
sentido.
Lágrimas
desciam de seu rosto agora vermelho ao recordar a morte dos pais
quando ainda era menina, e de como não fora capaz de pranteá-los,
tamanho o impacto causado pela perda. Um soluço alto lhe trouxe a
dor mais recente, o único irmão que lhe restara fora morto em
uma prisão Cardassiana, sob suspeita de pertencer à Resistência. Golpe duríssimo de assimilar, a perda de Seeto.
Uma sensação de vazio e solidão invadiu seu interior
sufocando-a. Chorava agora copiosa e abertamente pela primeira vez
suas perdas, apoiada em uma rocha.
Só
foi bem tarde da noite que retornou ao abrigo, completamente
congelada. Aqueceu as rochas e escorregou para debaixo do cobertor
térmico onde o militar parecia dormir. Procurou fazer o mesmo,
porém, sabia que o sono tardaria a chegar, a angústia que
experimentava nos últimos dias começava a afetá-la, e prova
maior fora o seu desabafo lá fora, ao tempo.
Não era de seu feitio, sempre se julgara forte, capaz de
suplantar a tudo e a todos. Entretanto, encontrava-se abatida, e
um nó na garganta voltara a importunar quando a voz grave do
militar reverberou no abrigo, assustando-a:
-
Uma médica deveria saber que não é muito saudável empreender
longos passeios com um tempo destes.
Refeita
do susto respondeu.
-
Pensei que dormia.
-
Fazia isto até o seu corpo gelado tocar o meu.
O que está pretendendo, doutora, congelar-me também ou...
Será esta é uma nova tática de sedução Bajoriana que desconheço?
Neeska
bufou impaciente, procurando encerrar a conversa mal contendo um
soluço.
-
Guarde seus comentários sem graça para outra hora.
Dukat
percebeu a voz embargada da mulher e não foi difícil imaginar o
porquê do demorado passeio.
-
Alguma coisa a perturba, doutora?
Não
houve resposta. O militar guardou silêncio e aproveitou a perda
do sono para avaliar o novo fato.
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