O
IMPACTO DO TRANSPORTE Cardassiano ao atingir o solo fraturara
a estrutura metálica rasgando-a em duas, expondo suas entranhas
em um perímetro de quase 130 m²,
enfeitando de forma macabra a paisagem com equipamentos e carga
destruídos, fundidos junto ao fumo negro tóxico.
Apesar de toda a perícia, o piloto não lograra êxito em
salvar toda a tripulação, encarregando-se inclusive de se
incluir no rol de óbitos.
Depois
de caminhar por quase uma hora por uma trilha bastante acidentada
e enlameada, Neeska finalmente avistou o que parecia ser a parte
posterior da nave.
O cheiro forte de gás tóxico e carniça queimada
faziam-na tossir e lacrimejar e, por entre os destroços ainda
fumegantes, constatou frustrada a inutilidade de sua ação ali,
tal qual previra.
Mesmo
para uma médica acostumada com o aspecto da morte nas mais
variadas formas, conseqüência dos embates constantes nos últimos
anos por parte da Resistência Bajoriana ao jugo cardassiano, o
que viu revoltou seu estômago.
Os corpos mutilados e semicarbonizados de dois oficiais --
reconhecera a origem deles devido ao uniforme característico de
seus opressores. Ao voltar a vista para o lado assustou-se quando
acidentalmente esbarrou em um console ainda fumegante, que desabou
ruidosamente revelando mais um corpo.
O infeliz jazia semi-sepultado ainda afivelado em seu
assento, com os joelhos tocando o queixo de forma nada natural,
inteiramente coberto por cinzas causadas por uma erupção de
plasma provocada pela explosão de um painel próximo, dando um
refinado toque macabro ao cenário de destruição.
Desanimada, deixou para trás os destroços e notou o
recente buraco formado a poucos metros dali.
A
cratera com um diâmetro de quase 15 metros de largura por uns
seis de profundidade guardava em seu íntimo o restante da carcaça
seccionada do transporte.
Anarys Neeska alcançou a borda do novo aspecto topográfico
e examinou-o detidamente, especulando a melhor maneira de chegar
ao fundo sem ser surpreendida por uma queda.
A
chuva dera uma ligeira trégua, assim como o forte vento, mas a
temperatura teimava em cair drasticamente no local.
Uma vez decidida e sem mais perda de tempo, desceu pelo que
julgou ser a melhor opção, na certeza de que também não
encontraria sobreviventes ali.
O
que parecia ser a cabine de comando encontrava-se severamente
danificada, parcialmente desmembrada da seção principal.
A nativa notou com renovado suspiro frustrado o corpo do
piloto entre os destroços.
A vítima com certeza sequer tivera tempo para dirigir um
pensamento aos seus entes queridos ou a seu Pagh .
A maioria dos Cardassianos não rezava havia quase três séculos,
ouvira contar que não professavam qualquer credo.
A nova Ordem Obsidiana se encarregou disto por defender a
teoria de que a religião gera um povo suscetível à fraqueza de
pensamento.
A
médica deixou a cabine e vasculhou o resto da estrutura quando
julgou ter ouvido um fraco gemido vindo lá de fora.
Focou a visão prejudicada pela bruma intensa levando a mão
à testa e vislumbrou alguém caído a poucos metros de onde se
encontrava.
Aproximou-se
devagar da figura de um oficial estendido de costas para o solo
barrento, respirando com dificuldade.
Ajoelhou-se ao seu lado sacando de sua bolsa um pequeno
bioscanner e iniciou o procedimento padrão de avaliação.
O
pequeno aparato médico fazia leituras rápidas informando uma
gama enorme de dados, conferindo à doutora um diagnóstico que
beirava a perfeição.
Escoriações; lacerações superficiais, nenhum osso
quebrado; algumas queimaduras por plasma sem gravidade nas regiões
das costas, dos braços e das mãos. Contudo, não foi preciso
utilizar-se da tecnologia para saber que o ferimento que o
estranho trazia no peito era de gravidade considerável.
Um
pedaço de metal perfurara o pulmão esquerdo da vítima e ainda
se encontrava lá, com sua haste de aproximadamente 20 cm
projetando-se externo afora, impedindo que um fluxo maior de
sangue jorrasse abundantemente, o que fatalmente o mataria de
imediato.
Neeska
tentava retirar o que sobrara da armadura peitoral do cardassiano
a fim de avaliar melhor o ferimento, quando foi surpreendida por
uma poderosa mão apertando seu frágil e desprotegido pescoço,
fechando os dedos em volta e exercendo pressão descomunal em sua
garganta.
-
O que... está fazendo? – indagou o militar com um fio de voz
num esforço supremo.
-
Bancando a tola em tentar ajudar – a resposta veio como um raio
ao se refazer do susto - Torça o pulso... 30 graus à esquerda...
– continuou entre uma respiração forçada e outra – ...Um
movimento seco e rápido e deixarei de ser problema para você.
O que está esperando? Quebre-o! – ordenou a Bajoriana
com uma frieza que não imaginava possuir, esticando o pescoço
com o objetivo de buscar ar, e não de desafiar ainda mais o
Cardassiano possesso pela dor e impotência.
Imediatamente
sentiu a pegada afrouxar, mas não o bastante.
Percebeu os olhos alucinados do inimigo tal qual um animal
acuado fitarem os seus em busca de respostas.
-
Por quê? – tossiu a pergunta, trazendo ainda mais o rosto de
Neeska junto ao seu.
-
Sou médica e precisa de cuidados, não cultivo o hábito escolher
pacientes.
Ao
tentar nova pergunta o tulgryn gemeu e em ato reflexo voltou a
pressionar a garganta da médica.
-
Dói quando respira, eu sei – ‘profetizou’ – Um pedaço de
metal perfurou seu pulmão tornando sua respiração dolorosa e
dificultosa.
Dukat
voltou a afrouxar a mão em volta do pescoço da Bajoriana.
-
Posso ajudá-lo se me der um voto de confiança.
O
militar encarou-a desconfiado, claramente tentando comunicar-se.
Contudo os espasmos provocados pela dor e a visível falta de ar o
impediam.
-
Escute, eu não teria me dado a todo esse trabalho descendo até
aqui, com este tempo inclemente, se minha intenção não fosse a
de simplesmente ajudar – explicou, notando o jeito desconfiado
dele – Não se preocupe, - continuou tentando convencê-lo - já
remendei sujeitos em piores condições, até tipos como você,
Cardassianos, mas nunca em igual situação.
Finalmente
Dukat capitulou e a liberou.
Se fora por simples falta de forças ou por ter dado seu
voto de confiança a ela, Neeska não saberia dizer.
-
Deixe-me livrá-lo desta coisa primeiro... – tabulava conversa
sozinha, ao mesmo tempo em que massageava o pescoço dolorido e
procurava uma maneira de retirar o que sobrara da armadura do
militar.
Por
debaixo da carapaça revelava-se um corpo perfeito de contornos
musculosos e bem definido, mas não tanto quanto a armadura
pressupunha.
Anarys mantinha-se atenta em não tocar na haste de metal
ainda agarrada ao corpo do Cardassiano semiconsciente.
Buscou em sua bolsa o bisturi laser e uma pequena cânula
de material maleável.
Procurou agir rápido ao notar que o oficial perdera os
sentidos mais uma vez.
Seus alvéolos estavam literalmente afogados na extensa
hemorragia interna.
Estaria morto em questão de minutos, isso se ela e a sorte
permitissem...
Delicadamente
posicionou a cabeça do militar para trás em um ângulo capaz de
permitir uma incisão na altura da garganta.
Esticou a pele lisa e fina no local e preparou-se para
cortar.
O
instrumento laser fez seu trabalho guiado pelas mãos hábeis da médica.
Um pequeno filete de sangue brotou e secou instantaneamente como
conseqüência da ação cauterizadora do instrumento. Inseriu
rapidamente a cânula na incisão e assoprou nela, levando ar aos
pulmões congestionados de seu paciente. Repetiu o procedimento
outras tantas vezes até certificar-se de que ele já respirava
melhor, e o tom menos cianótico de seu rosto era a confirmação
do fato.
Estando
satisfeita com o resultado alcançado até ali, adaptou na
extremidade da estreita cânula uma pequena peça de metal em
forma de funil, que achou próximo aos destroços, surtindo o
efeito desejado de manter melhor ventilado seu paciente. O poder
de improvisação e inventividade tornaram Anarys bem conhecida na
Academia de Ciências Médicas de Dahkur.
-
Respire devagar... Isso... – recomendou com reservada simpatia
ao tulgryn, que recobrara parcialmente a consciência – Agora
vamos livrá-lo desta pressão.
Nem
bem terminara a frase e o bisturi-laser já abria outra incisão
na base do externo esquerdo.
Neeska introduziu dois dedos no corte recém aberto e
girou-os até completar 180 graus. Ao retirá-los, trouxe junto
uma golfada espessa de sangue.
Começara a drenar o local.
-
Vai se sentir melhor – manifestou quase que para si mesma,
aliviada em constatar que a traqueotomia funcionava a contento.
Jamais
tentara antes este procedimento simples, porém arriscado, em um
Cardassiano antes, o que tornava sua tentativa de salvar-lhe a
vida um desafio maior.
Voltou a examiná-lo com otimismo renovado.
-
Estamos indo bem, agora vamos à parte mais divertida da coisa
toda... – tentava minimizar a tensão mantendo o olhar fixo na
haste metálica.
Revirou
sua bolsa freneticamente quando de súbito estacou desanimada
franzindo seu pequeno nariz arestado, revelando uma ponta de
preocupação.
Notando que algo estava errado, Dukat agarrou-a pelo pulso,
o que surtiu o mesmo efeito da pergunta: Algum problema?
-
Receio não ter anestésico comigo – confidenciou, fitando o
oficial por alguns segundos quando lhe ocorreu a lembrança –
Deve haver um estojo de primeiros-socorros em seu transporte! –
levantou-se para procurar e se deu conta que não saíra do lugar,
pois o tulgryn ainda a mantinha presa pelo pulso, contemplando-a
com renovada desconfiança, o que irritou a médica.
-
Não pretendo largá-lo aqui! – censurou – Não depois de todo
o trabalho que tive para mantê-lo respirando!
Dukat
insistia em conservá-la presa em sua poderosa mão e sem
desgrudar os olhos dela tentava avaliar aquele novo imprevisto.
-
Bem, como vai ser, com ou sem dor? Para mim é indiferente! –
tornou a desafiá-lo para que tomasse logo uma decisão, já que
notara que o ferimento começara a sangrar abundantemente,
revelando que a haste metálica já não dava conta de tamponar a
ferida.
O Cardassiano piscou lentamente, tentando decidir-se.
-
Então? - O tom mais alto de sua voz revelava mais preocupação
que impaciência.
O
militar afrouxou a pegada, decidindo soltá-la.
-
Pode ser um tolo, mas estúpido com certeza não é! –
alfinetou, rumando para o topo do buraco recém aberto.
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