Capítulo 5 –
R&R
Pelos dias que se
seguiram, os comentários populares sobre a validade ou não do
Tratado de Algeron foram constantes. Em diversos eventos públicos
de debates, em reuniões de comunidades, em debates acadêmicos, e
mesmo em rodinhas de conversa, como a qual Tolia presenciara, o
povo estava debatendo um assunto bastante delicado da política
externa da Federação. Algumas pessoas sempre abriam tangentes,
argumentando, por exemplo, que aquele não deveria ser
necessariamente um tema em uma eleição regional, mas sim algo o
qual todos os povos da Federação deveriam participar. Por outro
lado, diziam outras pessoas, toda a Federação estava
participando. Opiniões de habitantes de diversos membros da UFP
eram comentadas e debatidas, e tais comentários variavam bastante
de posição, desde a defesa por se romper totalmente o tratado,
até uma proibição mais formal ainda à Federação ter
dispositivos de camuflagem.
Toda estas polêmicas
e debates não estavam passando desapercebidos pelos candidatos,
especialmente por Cristina Stel. Mas a Betazóide estava mais
satisfeita ainda não apenas pelo fato de pontos de sua campanha
estarem sendo debatidos. Não, ela estava satisfeita também pelo
fato de ter agitado um pouco as coisas no cenário político da
Terra. Debates e troca de idéias eram algo comum a todas as
comunidades da Federação, é claro, mas sempre era interessante
ver as pessoas defenderem seus pontos de vista com paixão e
devoção. A intensidade e o dinamismo que estavam acontecendo na
opinião pública estava praticamente no que Cristina considerava
o ponto ideal para isto: as pessoas defendiam seus pontos de vista
com firmeza, mas jamais desrespeitando a opinião do seu próximo,
ou desrespeitando a própria pessoa.
Mas ela já estava
divagando um pouco, pensou Cristina. Ela voltou totalmente a sua
atenção para o que Ronaldo Triev estava dizendo no momento, com
os dois sentados lado a lado em uma mesa, com um grupo de pessoas
à frente, também sentados em fileiras de cadeiras. Todos eles se
encontravam no momento na praça central de Zara Gùsau, uma
cidade na Nigéria, fundada no final do século 21 quando da
formação da África Unida como uma nação única. Zara Gùsau
serviu de modelo para a criação de diversas outras comunidades
como ela, que serviram para aumentar o desenvolvimento do
continente africano, equiparando a qualidade de vida dos povos
locais aos níveis atingidos por todo o planeta no início do
século 22. Várias cidades africanas já existentes foram
remodeladas com o mesmo perfil, ou seja, comunidades de não mais
do que 500 mil habitantes, cercadas por zonas rurais bastante
desenvolvidas, e pólos industriais e de pesquisa e
desenvolvimento. Este modelo serviu para desafogar as outrora
congestionadas e superpovoadas cidades africanas. E com um
desenvolvimento agrário planejado, baseado em pequenas
propriedades rurais privadas, houve um aumento na produção de
alimentos de tal monta que o continente passou a produzir muito
mais além de suas necessidades, o que ajudou a estabelecer um
fértil comércio internacional e interplanetário de produtos
alimentares, fossem de colheitas ou de produtos acabados. Todo
este desenvolvimento econômico alavancou uma espécie de
renascimento africano, em todas as áreas possíveis, como
político, social, cultural, e ainda fez com que o continente
fosse um dos maiores beneficiados da era de prosperidade pós
Primeiro Contato.
E neste evento na
praça principal de Zara Gùsau estava havendo um dos vários
debates com alguns dos candidatos nas eleições que se
aproximavam. O primeiro período havia tido a presença dos três
principais candidatos ao cargo de Governador da Nigéria, e neste
momento era a ocasião em que dois dos principais candidatos a
Embaixador da Terra debatessem. No caso, Cristina Stel e Ronaldo
Triev. Ambos estavam no palanque central da área reservada ao
debate. Juntamente a eles havia um grupo de organizadores do
evento, funcionários do Departamento Eleitoral da África Unida,
e também parte do público presente para assistir ao debate. O
número de pessoas ali não passava de cinqüenta. O fato de tão
poucas pessoas estarem próximas dos candidatos ocorria porque ao
longo da vasta área arborizada do parque de Zara Gùsau, dezenas
de outros grupos de cerca de trinta a quarenta pessoas estavam em
volta de projetores holográficos que mostravam exatamente o mesmo
palanque principal dos candidatos. Desta forma, milhares de
pessoas podiam estar bem "próximas" aos candidatos, e
terem uma ótima visão do evento; mesmo interação era
possível. Se alguém desejava fazer alguma questão, como era
comum, bastava esta pessoa se apresentar ao moderador do grupo em
que estava, que então a sua projeção holográfica era
adicionada ao sistema, possibilitando os candidatos conversarem
diretamente com a pessoa, e isto ser acompanhado pelos demais
grupos. Todo este sistema permitia haver debates onde mesmo
centenas de milhares de pessoas participavam, mas que tinham a
dinâmica de um grupo de professores falando com uma classe de
alunos.
- Portanto, - Triev
estava concluindo um de seus argumentos, - É que eu acredito que
uma revisão do Tratado de Algeron, embora não fosse algo a se
desconsiderar, não é realmente algo que tenha que ficar alto em
nossas prioridades no desenvolvimento espacial. Há muito mais em
que dedicarmos os esforços da Frota no que diz respeito a novas
tecnologias.
- Oh, não, eu
concordo com o senhor, Magistrado, - Stel respondeu. – De fato
há muitos campos em que a Frota Estelar pode aumentar os seus
esforços para se desenvolver. – em uma área à frente do
palanque surgiu uma imagem holográfica de um jovem rapaz presente
em um dos grupos acompanhando o debate. – A senhora Senadora
poderia exemplificar com mais detalhes algum destes campos de
oportunidades? – foi a sua questão.
- Claro, - respondeu
Stel. Ela estava mesmo esperançosa por uma brecha para levarmos o
debate em torno deste assunto. – Por exemplo, há muito que se
pesquisar em toda a tecnologia que capturamos do Dominion nos
últimos três anos. Eu não digo apenas analisarmos essa
tecnologia para sabermos com o que estávamos lidando, não. Eu
estou dizendo aproveitarmos tudo o que pudermos em todos os campos
possíveis de nossa sociedade.
Diversos comentários
paralelos em todos os grupos seguram-se ao comentário de
Cristina. Aquilo sem dúvida se tratava de uma extensão da
opinião da Senadora sobre a Federação adquirir novas
tecnologias as quais tradicionalmente tinha reservas. A
Federação já havia aproveitado tecnologia alienígena antes,
mas nunca em larga escala, mas como Stel continuou a explicar, a
vitória na Guerra Dominion proporcionava uma oportunidade rara, a
de se analisar uma vasta tecnologia alienígena à disposição da
Federação, e se utilizar o que se mostrasse promissor, fosse o
que fosse. Não havia razão alguma para que, só porque a
Federação era uma sociedade totalmente auto-suficiente em
tecnologia, ela descartasse qualquer outra tecnologia que pudesse
descobrir em novos contatos. A Betazóide não se fez de rogada
sequer em usar a palavra "assimilar" em sua
explicação, o que provocou algumas reações de certa
preocupação da platéia, ou ao menos do grupo de pessoas
imediatamente próximos a ela, como Stel sentiu.
- Sim, há muito a se
aprender com novas espécies, e a tradição do Primeiro Contato
que nosso povo tanto valoriza é uma verdadeira celebração a
isto, não há duvidas, - Triev comentou. – Mas devemos estar
sempre atentos a fazermos uma boa avaliação sobre o que é que
devemos... assimilar, como a Senadora disse, e o que não devemos.
Uma sociedade que se posiciona perante o quadrante como a nossa se
posiciona, não deve nunca ter determinadas atitudes que não
correspondam a este posicionamento. Um exemplo disto seria algum
dia a Federação desenvolver armas de destruição em massa,
digamos. Não haveria o menor cabimento nós possuirmos tais
artefatos.
- Eu já considero
esta questão de "a maneira pela qual a Federação se
porta" como algo que é encarado de uma maneira equivocada
por muitos entre nós. – Stel fez uma pausa para beber um gole
de água, diretamente de uma garrafa plástica que estava à sua
frente. Esta pausa não era apenas para matar a sua sede. Ela
queria que a sua última frase "afundasse" no silêncio
por alguns segundos, como que para ativar um maior interesse no
público. Stel sempre usava destes artifícios para ganhar mais
atenção para pontos que considerava importante. A Betazóide
continuou.
- Mas antes de nós
nos preocuparmos com o que os outros pensam de nós, nós devemos
nos preocupar primeiro com o que nós pensamos de nós mesmos, -
Stel disse, em um tom mais pausado. – Quem nós somos, a nossa
identidade como um todo, como uma federação. Uma das belezas de
nossa sociedade é justamente a verdadeira celebração à
diferença, e isto acontece por toda a nossa diversidade étnica e
cultural, representada por todos os nossos membros. Isto torna um
pouco mais difícil a resposta para esta questão, "Quem
Somos Nós", mas a resposta, embora difícil, é possível.
Sabermos quem somos nos ajudará a termos uma verdadeira noção
do que é fazer parte de uma federação de planetas unidos. –
Neste ponto, Cristina podia sentir que ela estava tendo uma
atenção maior do que o de costume da platéia.
- E por buscarmos cada
vez mais a resposta para esta questão, o nosso próprio respeito
por nós mesmos e o que representamos irá aumentar. Porque se
não tivermos o respeito de nós mesmos, não teremos como ter o
respeito de mais nenhuma outra espécie; mesmo disto podemos ter
algumas pistas para nossa questão. Não é raro outras espécies
nos encararem como arrogantes que pensam que são mais importantes
ou avançados do que realmente somos. Eu acho que isto é
decorrente de nós nos levarmos a sério demais, algumas vezes.
Isto faz com que a Federação, enquanto um todo, acabe tendo até
mesmo uma atitude muito blasé, procurando sempre se portar dentro
de determinados parâmetros que se espera dela, meio como uma
jovem nobre em algum tipo de cerimonial. – a Betazóide fez
alguns gestos mais delicados com as mãos, como que para ilustrar
esta última frase.
- Mas me perdoem, eu
estou meio que saindo por uma tangente, aqui, - Stel recomeçou,
sorrindo. – O que eu quero dizer é que não devemos nos fazer
de rogados na maneira pela qual vamos nos comportar na política
da galáxia. Devemos agir conforme nossos valores e nossa
consciência, e não necessariamente conforme apenas o que os
outros pensam ou esperam de nós.
- Na verdade, é um
bom ponto este que levantou, Stel, - Triev disse. – Vale uma
maior deliberação a respeito.
- Sim, - respondeu a
sua adversária. – Eu penso que sim.
# # # #
Zhaav estava
consideravelmente ocupada no momento em que David Cohen se
aproximou da mesa dela no Palácio do Itamaraty. A jovem Andoriana
coordenava alguns membros do staff do gabinete do senador
brasileiro, para ajudarem-na em várias tarefas pendentes. Ela
também estava se comunicando com um dos funcionários da
Assembléia-Geral, cuja imagem estava no monitor LCARS de sua
mesa, mas a voz não podia ser escutada. Apenas Zhaav podia
escutar, pois ela estava usando um pequeno fone de ouvido. A
prática de se usar tal dispositivo era antiga, pois este tipo de
tecnologia não era nenhuma novidade, claro; estava disponível
fazia séculos. Alguns oficiais de comunicação da Frota Estelar
costumam usar um dispositivo bastante semelhante ao que no momento
ajudava Zhaav a conversar com a pessoa em seu monitor sem que a
voz desta soasse para todos ali ouvirem.
Sem interromper a
frase que estava falando para a pessoa com quem conversava no
monitor, a Andoriana fez um brusco gesto com a mão na direção
do humano, requisitando para ele esperar um pouco. David não fez
objeção. Ele estava acostumado com o jeito ríspido de Zhaav, e
além do mais, ele era mesmo conhecido por algumas vezes ter uma
paciência quase Vulcana, ainda que fosse só isto mesmo que ele
próprio concordava ter em comum com a espécie de Vortik.
- O quê? O que foi?
– Ela se virou agitada para David, tão logo terminou a
ligação, enquanto revirava uma pilha de padds em sua mesa. –
David, por favor, se for alguma coisa relativa à cerimônia de
amanhã, eu não quero nem saber. Manda para a Tolia ou para o
Carlos, pois a senadora está quase me deixando louca em me pedir
coisa atrás de coisa. – Zhaav estava ajudando Cristina com os
preparativos de uma das várias cerimônias do dia seguinte,
aquele que seria o da admissão oficial de Bajor na Federação.
Além das cerimônias principais do evento, preparadas pelo
Conselho da Federação, várias outras atividades estavam sendo
organizadas por diversas comunidades regionais da Terra, como que
uma celebração de boas-vindas do planeta para todos os
visitantes Bajorianos que estavam na Terra para a ocasião.
David sorriu levemente
pela agitação da colega enquanto sentava-se em uma cadeira
próxima, mas não disse nada relacionado. – Zhaav, o negócio
é o seguinte. O Diretor do Laboratório de Robótica Asimov, Paul
Brotlev, me contatou hoje de manhã. Eu o conheci faz alguns
meses, depois que me encarreguei de ajudar Cristina no comitê do
Projeto Atlântida; o LRA foi um dos contratados nas fases
iniciais do Projeto, logo, eu tive a chance de o conhecer.
O humano fez uma pausa
para ativar um dos padds e o entregou para a Andoriana. - Segundo
ele, a Secretaria de Planejamento cancelou mais uma vez os
recursos que estavam destinados para pesquisa e desenvolvimento de
uma nova geração de sistemas robóticos para automação de
trabalhos de manutenção, tipo em instalações industriais,
grandes construções, bases estelares, este tipo de coisa. – O
LRA era um dos milhares de outros institutos de pesquisa, grandes
ou pequenos, que trabalhavam em conjunto com os vários
departamentos do governo. Os recursos que financiavam as pesquisas
de base de diversos destes laboratórios, universidades,
organizações e centros de pesquisa estavam sob o controle dos
vários comitês da Secretaria de Planejamento da Federação, e
de algumas outras Secretarias relacionadas; além disto, muitos
outros projetos civis também tinham tutela e acompanhamento da
Frota Estelar, o que colocava uma parcela considerável de toda a
pesquisa científica sob o controle do governo Federativo, de uma
maneira ou de outra.
Zhaav passava
rapidamente os olhos pelas informações no padd enquanto falava
com David. - Sério? Falando no Projeto Atlântida, eu tinha
ouvido falar que as pesquisas do LRA com miniaturização de
sistemas automáticos são bem promissoras para melhorar os
equipamentos de fazendas subaquáticas. – Zhaav fez uma pausa.
– E qual é a razão para a turma do Laurent cortar o barato
deles? – ela finalmente perguntou, se referindo ao Secretário
de Planejamento da Federação, Andy Laurent.
- Ah, uma das
favoritas deles, - David respondeu. - Por exemplo, um dos projetos
que foi favorecido em detrimento dos da LRA foi um que prevê a
utilização de holoemissores adaptados para água, para gerarem
in loco os equipamentos necessários conforme um determinado
trabalho ou necessidade. – David fez uma entonação que deu
ênfase à parte sobre holografia; ele sabia da cisma de Zhaav
sobre este tipo de tecnologia ser aplicado tão
indiscriminadamente como vinha sendo nos últimos tempos.
- Ahhhhrg! Eu não
acredito! Mas que mania IDIOTA do Archer Hall de ser TÃO
insistente assim com tecnologia holográfica! – A Andoriana
nervosamente esfregou os seus cabelos na altura das antenas. - Dá
até raiva às vezes. Eu só quero ver eles conseguirem emitir um
feixe de fótons forte o suficiente para agüentar a pressão de
bilhões de toneladas de água em cima.
- Se você se sente
assim, imagine os caras do LRA. – David retrucou. – Este não
é o único projeto de tecnologia holográfica que ganha
prioridade, não. Muitos outros estão em andamento. Tem uma turma
na Frota Estelar, por exemplo, que resolveu mandar os antigos EMH
Mark I para servirem de mão-de-obra em extração de dilithium,
olha só que absurdo! Dá para acreditar?
- Eu não me conformo.
Eu simplesmente não me conformo. – Zhaav balançava a cabeça,
indignada. – Se você quer saber, isso ainda vai dar merda feia
algum dia, ah, se não vai. Esse negócio de ficar confiando a
vida de pessoas a hologramas, a ficar fazendo hologramas a torto e
a direito... hunf.
A Andoriana se acalmou
um pouco, e prosseguiu com a conversa. – Bem, mas me diga. O
Brotlev deve ter algo em mente, se ele veio falar com você.
- Sim, - David
continuou. - O que ele quer é ver se a Assembléia-Geral não
pode dar uma apertada no governo federativo para que reveja a sua
posição sobre o caso, ou pelo menos sobre os projetos que por
estarem na Terra, podem estar sob a alçada da Assembléia, como o
de Atlântida. Em troca, ele está disposto a dar total apoio a
Senadora na eleição, e de buscar todo o apoio extra que ele
puder conseguir entre a comunidade científica e de tecnologia. Ao
menos, da parte em que ele tem boa desenvoltura, é claro.
- A reputação dela e
do Eduardo no meio acadêmico poderia ajudar mais ainda nisto,
hum... – Zhaav lembrou que o marido de Stel era uma das
eminências pardas no meio científico do planeta, sendo Diretor
do Smithsonian. – Hum...
- Então, Zhaav. Eu
preciso que você dê um jeito de laçar a nossa moça aí o mais
rápido possível para discutirmos o assunto, pois se vamos fazer
algum auê nesta questão de robótica, seria melhor que fosse
antes do orçamento desse próximo ano ser aprovado, e isto deve
acontecer no máximo em uns dois meses, já meio perto da
eleição. – David explicou o que precisava. – Vamos ter que
propor uma manutenção de recursos para estas áreas, e devemos
usar para isto as necessidades dos projetos aqui na Terra... e
coordenarmos isto com a Assembléia-Geral.
- Bom, eu não sei,
não, David. Nós podemos até falar com a Senadora agora, mas eu
duvido que ela vá pegar um tempo para isto nos próximos três
dias, pelo menos. Acho que só na quinta-feira mesmo.
- Quinta vai estar
ótimo, Zhaav, mas não podemos protelar demais, - David disse, se
levantando da cadeira ao lado da mesa de Zhaav. – Mas, até lá,
eu vou te deixar aí preparando a boca-livre para os Bajorianos,
he, he. – Ele se afastou, enquanto Zhaav suspirava mais forte
para demonstrar o seu desapreço pelo tom metido a engraçadinho
do seu chefe.
# # # #
Cristina Stel passou
levemente a mão sobre a página do livro que estava lendo, um
épico Klingon intitulado The Dream of the Fire, para
limpar a areia que caía no meio das páginas. O vento não estava
forte, mas ainda assim estava ocasionalmente levando um pouco da
fina areia da praia de Botafogo, no Rio de Janeiro, para cima das
páginas do livro, que estava aberto em cima da areia, com
Cristina deitada de bruços à sua frente, em uma toalha de praia.
Ocasionalmente a Betazóide ficava deitada de costas, para
bronzear também a frente de seu corpo. Embora estivesse vestida
com um maiô, o traje era feito com fibras sintéticas que
filtravam raios solares nocivos, ao mesmo tempo em que também
permitiam um bronzeamento por debaixo do tecido, fazendo com que
não houvesse nenhuma marca de sol em nenhuma região do corpo.
A situação em que
Cristina se encontrava não era nada incomum. Uma das políticas
mais importantes da Terra, e candidata forte ao cargo de
Embaixadora, estava no momento tranqüilamente deitada em uma
toalha-de-praia, no meio de uma praia no Rio de Janeiro. O local
não estava particularmente cheio, pois ainda era cedo, mas ainda
assim havia vários banhistas e passantes ao redor daquele que era
um dos locais favoritos da Senadora para se dar ao prazer de ficar
tomando sol à beira do litoral da região onde passara a sua
infância.
Esta situação
tranqüila em que Cristina se encontrava dava-se ao fato de que a
maneira pela qual o público em geral interagia com pessoas
famosas mudara muito através dos séculos. Por muito tempo,
indivíduos que por qualquer razão eram razoavelmente conhecidos
tinham que também se acostumar a ser constantemente assediados
quando em público, por todo tipo de razão. Com pessoas que eram
extremamente conhecidas, este aspecto crescia ainda mais, a ponto
de que era praticamente impensável para alguém em uma posição
pública semelhante a de Cristina colocar o pé na rua sem atrair
bastante a atenção.
Mas quatrocentos anos
de evolução social ajudaram a criar uma população que era bem
mais respeitosa acerca da vida particular de indivíduos que
tinham fama, fosse por razões artísticas, políticas, ou
qualquer outra. Muitos daqueles que passavam por ali certamente
reconheciam Cristina, e tinham consciência de quem ela era. Tanto
quanto estas pessoas também podiam reconhecer claramente que ela
estava no momento em uma atividade pessoal, e que seria impolido a
aborda-la apenas porque era a Senadora Stel ali. No momento, ela
desejava ser apenas mais uma banhista aproveitando a manhã para
relaxar em uma praia, para descansar de uma campanha que estava
sendo desgastante. E também descansar de todas as atividades dos
últimos dois dias.
Praticamente a menos
de vinte e quatro horas, a Federação de Planetas Unidos havia
sido acrescida de mais um membro, Bajor. As cerimônias e
festividades aconteceram em várias partes do planeta, e Cristina
mesmo havia ajudado a coordenar três destas, e havia estado
presente em outras três. Quando um novo membro é recebido na
Federação, existem duas cerimônias principais, com várias
outras acontecendo paralelamente. Uma das cerimônias principais
trata-se de uma reunião especial de todo o Conselho da
Federação, para uma votação de aprovação ao novo membro.
Trata-se de mera formalidade; o real debate sobre a entrada do
novo membro já haveria sido feito, e a decisão tomada. Esta
votação serve para oficializar a decisão, e se empossar o
Embaixador do novo membro em sua cadeira ao lado de seus demais
colegas.
Isto feito, é
realizada a segunda cerimônia principal, que ocorre em Paris, em
plena Champs-Elyséés. Nesta, a presença do público é sempre
maciça, e é onde o Presidente da UFP fornece ao novo Embaixador
as suas credenciais oficiais de representante do mais novo membro
da Federação, e também onde ocorrem os discursos de posse do
novo Embaixador e do Presidente da UFP. Isto tudo embalado em
diversas apresentações, dando início a um festival cultural
sobre o novo membro, com cinco dias de duração.
Neste festival é que
ocorrem as diversas celebrações paralelas, por várias cidades
da Terra. Os assuntos são variados, e tratam de diferentes temas
da cultura do novo membro, como pintura, literatura, teatro,
gastronomia, religião, arquitetura, artesanato, tecnologia, e
muitos outros assuntos.
Nesta ocasião em
particular, o tema não era realmente novidade para a Terra. A
cultura Bajoriana já vinha sendo largamente difundida na
Federação, especialmente de uma década para cá, quando a
ocupação Cardassiana terminou e o buraco-de-verme Bajoriano fez
com que o planeta se tornasse um ponto de referência importante
do quadrante, bem como o seu ponto mais estratégico. Mesmo assim,
o Festival Bajoriano tem sido um sucesso, tanto quanto foi a
Cerimônia de Ingresso Principal.
Cristina havia estado
nela também, é claro. Não muito bem posicionada, pois
aparentemente o espaço reservado para o pessoal da
Assembléia-Geral novamente deixou a desejar, como de costume,
pensou Cristina. Ainda assim, a oportunidade foi boa para
contatos, principalmente entre diplomatas Bajorianos os quais ela
vinha ansiando por conhecer. E Cristina também não podia
esquecer que acabou tendo mais companhia do que poderia desejar,
com a Embaixadora Betazóide, Lwaxana Troi, acompanhando-a o tempo
todo.
Isto não era algo
indesejável, claro que não. Mas Troi tinha a tendência de se
tornar um tanto inconveniente depois de um certo tempo. Cristina
já estava acostumada a estas peculiaridades de Troi, é claro.
Ela tinha que estar, pois podia vir a se tornar uma colega
Embaixadora, e Troi iria ter em Cristina uma colega da mesma
espécie no Conselho, ainda que representando outro membro. O que
estava originalmente marcado para ser apenas uma reunião rápida
durante a Cerimônia de Ingresso acabou se tornando uma maratona,
pois Troi fez questão absoluta de que sua amiga Betazóide a
acompanhasse quase o dia todo, até mesmo nas festividades as
quais Cristina havia organizado. Cristina, é claro, não se fez
de rogada – as duas conversaram muito a respeito da eleição, e
Troi demonstrou um entusiasmado apoio à candidatura de Cristina,
e garantiu que iria usar de sua influência entre os Humanistas
para que eles se alinhassem com a candidata dos Progressistas
neste pleito. Troi também dedicou bastante tempo a muitas outras
questões, sobre Betazed, e sobre como a espécie delas duas
estava recuperando o seu planeta-natal depois da guerra. Também
descreveu longamente como a sua filha Deanna, sob o comando de
"Jean-Luc", como ela dizia, lutara para a libertação
de Betazed, e como agora a sua pequenina estava noiva do
Primeiro-Oficial da Enterprise. Realmente as atividades com
Troi acabaram se mostrando tão intensas quanto todas as demais
atividades dos últimos dias.
Depois de tudo isto,
Cristina sentia que precisava descansar. Logo de manhãzinha,
deixou algumas coisas encaminhadas para Denise, Zhaav e Marcus
cuidarem, e requisitou que não fosse perturbada pelo resto do
dia. E agora podia tirar o restante do dia para relaxar.
A Senadora não estava
realmente esperando ter companhia naquele momento, mas a jovem que
se aproximou não tinha realmente como saber disto. Cristina notou
rapidamente a aproximação, quando a sombra da garota cobriu o
seu rosto. A Betazóide levantou os óculos escuros e viu a jovem
ao seu lado. Do curto cabelo castanho-escuro desciam duas faixas
de pintinhas seguindo pelo pescoço, e que desciam na direção
das pernas passando pelos ombros, seios e torso, revelando a
espécie dela, Trill. Ela estava vestida com um biquíni, com a
parte debaixo parcialmente oculta por uma canga com motivos
Bajorianos que balançava levemente ao vento.
Cristina não levou
mais do que um par de segundos para perceber porque a Trill ali
ainda não havia dito uma palavra desde que se aproximada dela,
ficando apenas de pé ao seu lado, com um leve sorriso em sua
direção. Cristina podia sentir perfeitamente que a jovem estava
abrindo sua mente, permitindo livre acesso às habilidades
telepáticas de Cristina cumprirem seu papel. Estava tão nítido
isto que foi quase instintivo para Cristina. O que ela sentiu e
absorveu a fez hesitar, contudo. Estava bastante claro, mas era
algo espantoso, e ela também acabou ficando alguns segundos em
silêncio, até que se deu conta de tudo.
- Da.. Dax...? –
Cristina apenas disse, enquanto Ezri Dax levemente acenava com a
cabeça, confirmando a suspeita de sua velha amiga.
# # # #
A Trill e a Betazóide
caminhavam agora lado a lado pela linha de água da praia,
conversando. Anos antes, Cristina Stel havia tido a oportunidade
de conhecer a hospedeira anterior do simbionte Dax, Jadzia. A
oportunidade foi um seminário que Cristina ministrou na Academia
da Frota Estelar, que contou com a presença da então cadete da
Frota e aspirante a se tornar uma úmida Trill, ou seja, se unir a
um simbionte. Cristina ainda lembra da primeira vez que reviu sua
amiga já na condição de Jadzia Dax; foi uma experiência
incrível ver aquele tipo de transformação em alguém, que era
ao mesmo tempo a mesma pessoa de antes, mas com várias nuances a
mais. E da mesma forma, estava sendo incrível passar por aquela
mesma situação novamente, ao conhecer Ezri.
- Durante um bom tempo
foi difícil para me adaptar, - Ezri terminava de explicar as
circunstâncias que a praticamente forçaram a se juntar ao
simbionte Dax, quando a nave que transportava Dax para Trill foi
atacada por forças Jem'Hadar. Com os sistemas muito danificados,
não houve muita escolha para a equipe médica a bordo a não ser
colocar o simbionte imediatamente no único Trill disponível que
havia a bordo, Ezri. Além disto, ela também relatou a Cristina
tudo pelo que enfrentou em decorrência disto, pois nunca havia
passado pelos anos e anos de preparação que um Trill enfrenta
antes de se juntar a um simbionte. - Mas eventualmente eu consegui
me adaptar, - Dax continuou. - Quer dizer, mais ou menos. Eu acho.
Sabe, eu até mesmo acabei adiantando o zhian'tara, lembra quando
eu te contei da última vez que nos encontramos?
- Sim, eu lembro, -
Cristina respondeu. Ezri se referia a quando Jadzia fizera a mesma
cerimônia, que envolvia cada uma de suas "lembranças"
anteriores assumir o corpo de um amigo próximo, para que assim o
Trill pudesse ter uma espécie de visita de suas vidas anteriores.
As duas continuavam a
caminhar, já chegando no aterro do Flamengo, e durante todo o
caminho ambas conversaram bastante sobre como havia sido para a
jovem Trill se adaptar a sua nova e atribulada transição de
hospedeiro.
- Mas eu acho que já
falei demais, - Ezri finalmente disse. - Acho que você já notou
que eu adquiri esta tendência, né? - Cristina sorriu com uma
expressão irônica, que deixava implícito que a garota não
estava errada, embora ela fosse se abster de dizer isto. Ezri
pediu para que Cristina falasse um pouco sobre como as coisas na
Terra foram, durante estes recentes e difíceis anos, e como têm
sido as coisas no momento, com a eleição se aproximando. As duas
mulheres então debateram vários temas pertinentes ao pleito, e
um deles em particular, sobre o comércio exterior da Federação,
fez com que Ezri tivesse uma idéia.
- Bem, talvez eu
pudesse te ajudar a ampliar a sua base de apoio, Cris, - Mesmo
depois de mais de uma hora de conversa, Ezri ainda estava
hesitando um pouco em a chamar pelo diminutivo do primeiro nome,
apesar de que ambas já estavam na base do primeiro nome uma com a
outra há muito tempo, claro, apesar de ter sido com outro
hospedeiro.
Considerando o tema
sobre o qual elas falavam no momento, Cristina podia antecipar o
que Ezri tinha em mente, mesmo sem usar de qualquer telepatia. E,
de fato, Ezri sugeriu exatamente aquilo que ela imaginou, pois já
sabia dos contatos que ela podia fazer.
- Sobre esta sua
idéia de a Federação dever procurar estreitar os laços com a
Aliança Ferengi, eu acho que uma palavrinha do Grande Nagus
reforçaria bastante a sua posição nisto, Cris.
- Realmente serviria
muito bem para demonstrar a validade da proposta, - Cristina
respondeu. - Com todas estas reformas que o Grande Nagus está
fazendo na sociedade Ferengi, é uma excelente oportunidade para a
Federação e a Aliança Ferengi estreitarem seus laços
comerciais; o apoio do Grande Nagus nisto seria um claro indício
de que não se trata de jeito nenhum de retórica vazia. Agora, eu
estou prevendo um certo frisson por causa de uma proposta assim,
especialmente dos Humanistas... mas eu já puxei alguns fiozinhos
com eles, e não acho que devo perder nenhuma base de apoio com
isto. Você acha que consegue então entrar em contato com o
Grande Nagus para conversarmos detalhes a respeito?
- Oh, sim, eu acredito
que ele mesmo irá pedir para falar com você, e não apenas o
Embaixador Ferengi. - Ezri sabia que Rom, o novo Grande Nagus da
Aliança Ferengi, iria levar em bastante consideração um pedido
seu. Afinal de contas, ela conhecia muito bem o atual líder dos
Ferengis, uma vez que ela havia convivido com ele por um bom tempo
na Deep Space Nine, onde se tornaram bons amigos. - Será ótimo
eu poder ajudar em algo para que você possa se tornar a
Embaixadora da Terra no Conselho. Eu sei que você será uma
excelente Embaixadora... sabe, eu não estou registrada para votar
na Terra, mas os O'Briens e Julian estão, - disse Ezri. - Com
estes três votos eu sei que você pode contar.
- Obrigada, Ezri. -
Cristina agradeceu, e repentinamente fez uma pausa na caminhada
das duas. - Vamos fazer o seguinte, você não quer ir hoje à
noite lá em casa? Nós vamos ter um jantar lá, e seria ótimo se
você e seus amigos puderem se juntar a nós. - neste momento em
particular, por "em casa", Cristina não se referia
exatamente à sua casa em São Paulo, mas sim à casa de seus
pais, no Méier. - Minha mãe irá adorar rever você também, e
poder colocar as novidades em dia. E eu quero conhecer o Julian,
pois pelo que eu posso sentir de você, ele deve ser um amor.
- Ah, ele é um doce,
sim, você vai adorá-lo. Eu vou falar com ele e com o Chefe
O'Brien, eu acho que vai ser ótimo podermos nos reunir. Eu só
espero conseguir encontrar aqueles dois, pois eles devem estar
metidos em alguma recriação de batalha histórica aqui na Terra,
ou coisa parecida...! - Ezri riu. - Mas fica marcado... às duas
mil horas está bom?
- Duas mil horas...
oito da noite, certo? Está ótimo, Ezri. E então poderemos
conversar mais, eu estava mesmo com saudade de poder falar com
você.
- Fica marcado,
então. - As duas mulheres se despediram, e Ezri deu um leve
tapinha em sua combadge, que no momento estava pinçada na alça
do biquíni na altura do seu ombro esquerdo.
- Defiant, aqui
é a Tenente Dax, - a Trill disse. - Transporte site-a-site para
São Francisco, Setor da Delegação Bajoriana. - com isto,
Cristina observou a sua amiga desaparecer no efeito translúcido
do teleporte.
# # # #
- Scott, mas que saco,
espera um pouco, pô!
Denise estava no
momento pedalando com grande esforço, mas a ladeira que ela subia
estava pedindo um preço alto em esforço por parte da híbrida
humano-Romulana, já razoavelmente cansada. Ela e Scott Ross já
haviam percorrido de bicicleta vários quilômetros através do
Parque Fairmont, desde que haviam saído do apartamento de Denise
na Germantown Avenue. Scott no momento já estava no topo da
ladeira, e fez uma rápida curva para parar no acostamento da
ampla ciclovia. Ele não conseguiu evitar de rir um pouco quando a
sua namorada se contorceu toda para não deixar cair a mochila que
continha os apetrechos e alimentos para o piquenique que eles
tinham planejado para aquele final de tarde. A bicicleta de ambos
era um modelo esportivo de alto desempenho, e Denise havia
insistido em arrumar um jeito de fazer com que a mochila fosse na
própria bicicleta, ao invés de nas suas costas –- segundo ela,
isto a atrapalharia para pedalar.
- Ê, mas eu ainda
não sei porque você não leva esse raio desta mochila nas
costas, Dê, - Scott disse assim que a garota o alcançou. –
Embora a mochila parecesse estar mais no controle da bicicleta do
que você, he, he...
- Guarda as tuas
piadas engra... engraçadinhas para os teus amigos... tá...? -
respondeu Denise, entre uma bufada e outra, para recuperar o
fôlego. O casal pedalou por mais algum tempo, passando pelo setor
do parque onde estava instalado o Centro Cultural Andoriano, e
pela área da antiga Feira Mundial de 1876. O trajeto era
especialmente propício para ciclismo, uma vez que diversas
avenidas e ruas que séculos antes foram utilizadas por
automóveis haviam sido adaptadas perfeitamente para bicicleta,
hoverboards e outros veículos equivalentes. Scott e Denise
terminaram o seu trajeto até uma das áreas reservadas para
piquenique, a que era próxima à sede da Filarmônica da
Filadélfia.
Não era todo final de
semana que coincidia de ambos estarem de folga, e o casal queria
aproveitar este para fazerem um passeio juntos, combinando uma
atividade física ao ar livre com um jantar a dois. O final de
tarde de sábado já estava se tornando começo da noite, mas a
área de piquenique estava com um movimento razoável de pessoas,
e como qualquer outra área no planeta, era extremamente segura de
se estar a qualquer hora.
Scott caminhou até um
dos replicadores públicos do parque para providenciar um
saca-rolhas, pois ele havia esquecido de pegar o de Denise na casa
dela. Ele deixou a transação marcada para ter crédito
retornado, pois logo que abrisse a garrafa de vinho, ele
retornaria o apetrecho de volta para o replicador reciclar a
matéria-prima. Ele ficou tentado a replicar um padd no lugar, mas
era certo que Denise o arremessaria dentro do Rio Schuylkill; ela
não gostava nem um pouco de ter sequer alguns minutos de seu
tempo livre com ele desviados para algum trabalho.
- Você tem que
entender, Dê, - Scott dizia, confessando para ela o seu interesse
em um padd, assim que estava novamente sentado ao lado de Denise,
na toalha de piquenique. – O Massif pediu para eu dar uma olhada
na matéria dele sobre os problemas em Chin'toka... eu estou
curioso para saber o que ele escreveu a respeito.
- Nada disso. Você
pode ler a matéria dele depois que chegarmos em casa. – Denise
retrucou. – Mas falando nisto, esta conversa toda que temos
ouvido sobre Chin'Toka... é grave mesmo como andam falando?
- Aparentemente sim, -
respondeu Scott. – Eu estive lá pouco depois de as forças
aliadas reocuparem o sistema, após a queda final do Dominion. Dos
territórios Cardassianos que viram mais combate, Chin'Toka é um
dos que mais sofreu, talvez com exceção de Cardássia Prime.
- Bom, mas também,
Cardássia Prime apanhou que não foi brincadeira, especialmente
na batalha final. – a garota lembrou da ocasião em que as
forças aliadas fizeram uma ofensiva final para derrotar o
Dominion, que havia retirado-se para dentro do espaço Cardassiano
a fim de se reagrupar e refazer suas linhas. Quando as forças
Cardassianas se viraram contra seus aliados Jem'Hadar, estes não
foram nem um pouco piedosos mesmo contra a população civil do
planeta. Milhões acabaram perecendo antes que as forças aliadas
conseguissem fazer o Dominion se render.
- Toda esta convulsão
no último ano de guerra parece que mexeu bastante com a sociedade
em Chin'Toka, - Scott especulou. – Eu tenho a impressão que se
o governo provisório Cardassiano não fizer alguma coisa e
rápido, ele pode começar a perder o controle neste setor. –
Denise comentou alguns pontos extras, de como seria improvável
que uma sociedade como a Cardassiana se desfizesse de suas
tradições de sempre obedecerem a um poder central, fosse este
civil ou militar, e então terminou de tomar o seu vinho,
deitando-se na toalha de piquenique. Scott também terminou de
tomar o restante de vinho que tinha em sua taça, e deitou-se ao
lado de Denise, com ambos olhando para o céu estrelado.
- Sabe, - Denise
disse, mais suavemente, - foi dali que eu vim.
Scott virou o olhar
para a direção que Denise apontava. – Onde? Aquela estrela
ali? – Scott perguntou. Ele conhecia muito bem a história da
colônia de origem de sua namorada, mas nunca prestara atenção
em qual estrela no céu terrestre o sistema estelar em questão
poderia ser.
- Não, não essa...
aquela outra ali, mais para a direita da Ursa Maior. – Denise
corrigiu. Aquele era o sistema onde se encontrava Terra Nova, uma
das primeiras colônias humanas fora de seu sistema solar, e hoje
um próspero e desenvolvido membro da Federação de Planetas
Unidos. Anos antes, um grupo de refugiados Romulanos, dissidentes
foragidos que pediram asilo à Federação, foram realocados em
Logan City, uma das cidades do hemisfério sul do planeta. E foi
nele que Srtira Tylare, uma ex-oficial do Império Romulano
conheceu Gary Mitchell, um jovem funcionário da Secretaria do
Interior da Federação, que era um dos encarregados da
realocação do grupo em Terra Nova; Gary era nativo do próprio
planeta. Ambos rapidamente se apaixonaram, e depois que se
casaram, Gary voltou a morar em Terra Nova, onde rapidamente se
tornou um dos principais funcionários da Secretaria do Interior
em Terra Nova.
Não demorou muito, e
Denise se tornou a primeira das três filhas do casal. Srtira
sempre fora bastante protetora sobre as garotas, pois não queria
de modo algum que a sua herança Romulana se tornasse algum tipo
de estigma para elas; ela já vira isto acontecer antes, fosse com
filhos de seus companheiros Romulanos ou com outras crianças de
outras espécies.
Mas tanto Denise como
suas irmãs, Fernanda e Michelle, nunca tiveram grandes problemas.
Na verdade, elas até sabiam tirar algum proveito disto. Certa
ocasião, quando Denise ainda era uma adolescente estudando na
Escola de Ensino Secundário Matthew Deckecr, em Logan City, ela
conheceu um garoto, chamado Fábio, que fora recém-transferido
para sua classe, vindo de outra cidade em Terra Nova. Denise
gostou dele, e ela podia perceber que o sentimento era recíproco,
mas como ela sempre meio que gostou de se fazer de difícil, o
garoto acabou pensando que ela fosse uma Vulcana. Denise ficou
sabendo disto por uma amiga em comum deles, e decidiu por armar
uma brincadeira para Fábio. Ela combinou com Satork, um vulcano
que também era colega de classe dela, que quando Fábio viesse
falar com ela como ela havia pedido para ele fazer, que Satork
fingisse que Denise fosse sua "prometida", conforme
algumas tradições Vulcanas de casamentos.
Satork não fez
nenhuma objeção ao plano da garota, pois ele considerava como
algo importante participar deste tipo de atividade humana, pois
como um membro de uma sociedade na qual atividades deste tipo são
comuns, ele devia estar predisposto a aceitar tais comportamentos
sociais, para que assim pudesse interagir melhor com seus
associados; um pensamento bastante lógico.
Como Denise havia
pedido, Fábio veio falar com ela durante uma aula de educação
física, e Denise então lhe disse que de fato estava a fim dele,
e que eles podiam marcar um encontro. Nisto, Satork intercedeu e
disse para Fábio que Denise era sua prometida. Mas, se ele de
fato tinha interesse na garota, eles deveriam realizar o Kunut
Kalifee, uma luta ritual em que dois homens lutam para decidirem
quem irá realizar um ponfarr com uma Vulcana. Fábio sabia de
passagem do que se tratava aquilo, o suficiente para conhecer a
parte sobre "luta até a morte" da história, mas não
teve muito tempo de recusar. Satork pegou dois bastões de luta, e
arremessou um deles para Fábio, enquanto já fazia alguns
movimentos de luta com o outro bastão. Enquanto Satork já
começava a lutar contra um ainda relutante e espantado Fábio,
uma rodilha de alunos se formou ao redor dos combatentes, com
Denise e algumas de suas amigas tentando ao máximo não caírem
na risada. Um dos amigos deles pediu para o computador da escola
acessar o seu banco-de-dados pessoal, e tocar uma música para
servir de acompanhamento, Ancient Battle, uma antiga marcha
folclórica Vulcana que algumas vezes era usada para acompanhar
tais embates.
A coisa toda não
durou mais do que um par de minutos, mas foi o que bastou para dar
assunto de comentários para toda a classe pelo resto do dia. Era
perfeitamente compreensível que Fábio imaginasse que Satork
falasse absolutamente sério; afinal de contas, a cara impassível
dele durante a "luta" parecia deixar isto bem claro. Mas
foi Denise quem não se agüentou. Ela caiu no chão rindo, e os
demais colegas deles acabaram dizendo para Fábio que se tratava
de uma brincadeira aquilo tudo. Ainda enxugando as lágrimas de
tanto rir, Denise pediu desculpas para Fábio, confirmou que o
encontro deles estava de pé, e comentou que aquilo era algo que
podia se esperar de uma Romulana, afinal de contas. Fábio aceitou
bem a brincadeira, e Satork pegou de volta o bastão de luta,
também cumprimentando o humano ao dizer que ele ao menos soube se
defender bem enquanto "lutavam".
A jovem se aproximou
mais de seu namorado, o abraçando enquanto ele continuava a olhar
na direção do vasto campo de estrelas no céu da Filadélfia.
- Dê, a distância
daqui a Terra Nova é de 20 anos-luz, não? – ele repentinamente
perguntou.
- Sim, - foi a
resposta.
Scott continuou
olhando na direção de Terra Nova por alguns instantes. – Seria
legal se tivéssemos agora algum telescópio ótico com uma
supermega resolução, - ele disse. – Com ele, talvez
pudéssemos ver você com uns seis anos, na superfície de Logan
City.
Denise se virou na
direção de seu namorado. – Como assim? Eu não entendi.
- Simples, minha cara.
Esta mesma luz que estamos vendo neste instante, - e Scott apontou
novamente na direção da estrela que era o sistema natal de
Denise – saiu de lá há cerca de vinte anos. Portanto,
misturada em algum ponto desta luz está a imagem de como era o
sistema todo coisa de vinte anos atrás... até mesmo as imagens
de você quando tinha sete anos. Um telescópio ótico com
resolução suficiente talvez pudesse captar estas imagens. –
Scott explicou. Há muito tempo os cientistas da Federação
abandonaram o uso em larga escala de observações com instrumento
óticos para estudo astronômico, pois uma vez que toda a
informação obtida por estes sistemas viaja na velocidade da luz,
os dados coletados estão sempre desatualizados em relação à
situação exata atual dos corpos celestes. Os sistemas e sensores
modernos operam todos em freqüências que podem viajar no
subespaço, e portanto tornam possível a observação quase em
tempo-real de astros, mesmo aqueles que se encontram a milhares de
anos-luz de distância, ou mesmo milhões, como outras galáxias.
Observações astronômicas das galáxias vizinhas à Via-Láctea
já conseguiram determinar mesmo a existência de outras
civilizações nestas galáxias, embora ainda existam limites
práticos na propulsão de dobra que impessam a viagem
intergalática.
Já em relação às
informações geradas pelos sistemas óticos baseados em
tecnologia convencional, estes dados em particular não possuem
muitas aplicações práticas, como o estudo de novos planetas e
na geração de cartas estelares, por exemplo. Contudo, a
observação ótica continua a ser utilizada em alguns casos, como
para a observação de corpos celestes a menos de um décimo de
parsec de distância, e também é uma maneira relativamente
fácil de se captar imagens de eras passadas. Contudo, estas
"imagens do passado" não tem obviamente a pretensão de
detalhismo sobre a qual Scott especulava no momento.
- Ahh... eu não acho
não. – Denise disse, levando em consideração as limitações
do processo ótico de observação. - O feixe de luz já deve ter
perdido toda a resolução até chegar aqui, e não teria nenhum
jeito de se definir tantos detalhes.
- Pode até ser, -
Scott retrucou. – Mas você entendeu o que eu quis dizer, não?
– ele se virou na direção de Denise, e passou a mão em seu
cabelo. – Estamos vendo neste momento os mesmos raios solares
que bateram nesta sua cabecinha quando você estava brincando no
quintal da casa de seus pais... ou indo para a escola primária
que você freqüentou...
- Ohhh... – a garota
gemeu. – Que meigo... você quer saber como eu era quando
garotinha? Hum?
- Você devia ser uma
pestinha, isso sim, - ele respondeu, rindo, o que lhe valeu um
leve tapa na cabeça. Scott conhecia bem a história do
"Kunut Kalifee", bem como outras equivalentes.
- Pestinha o seu
nariz, tá? – ela respondeu. – Mas, se você quiser, eu
modifico uma das minhas holofotografias para rodar um programa de
"pestinha", e te tranco com ela dentro de um holodeck,
se você faz tanta questão... – Denise riu, tendo a mesma
resposta de seu namorado, mas que rapidamente a interrompeu
enlaçando-a em um beijo que fez com que os dois acabassem rolando
por cima de alguns dos alimentos ainda na toalha.
# # # #
|