por Leandro M. Pinto
Algumas percepções muito
comuns ao fandom de Jornada
nas Estrelas, sobre as primeiras temporadas de Deep Space Nine, seguem as linhas de “As primeiras são ruins / só melhorou depois
da quarta / só melhorou com o Dominion / com a Defiant / com o Worf / com a guerra”. A tudo isto, digo: nada mais longe
da realidade. Como
sempre tenho comentado quando a oportunidade surge, Deep Space Nine foi na realidade uma série muito mais constante
do que se acredita. Suas primeiras temporadas, embora de fato não tenham sido
as melhores da série, estão bem longe de serem tão ruins como se acredita que
foram, e as últimas temporadas, muito boas que tenham sido, também não foram as
obras-primas da civilização ocidental a qual são creditadas como. A série na realidade
teve uma constância bem regular, e seu crescimento na qualidade foi gradativo
e suave, e não em saltos e surtos. O
que eu acredito que ocorra é algo que de certa forma também pode ser observado
para Voyager e Enterprise. Embora as justificáveis
críticas aos inúmeros problemas de ambas estas duas séries sejam compreensíveis,
isto muitas vezes acaba gerando uma quantidade e intensidade nas críticas que
se torna completamente desproporcional, algo inadequado para realmente definir
os pontos fortes e fracos de ambas. O
mesmo ocorre para as três primeiras temporadas de Deep Space Nine:
embora até poderiam ser consideradas como as “mais fracas” da série, isto não
as torna necessariamente ruins – mas muito pelo contrário. Tais temporadas demonstram
as boas qualidades da série como um todo desde o início, mas mesmo assim acabam
sofrendo uma quantidade de críticas as quais não se sustentam muito contra uma
análise criteriosa de seus episódios e temas, que é o objetivo deste artigo. Avaliando-as
como um todo em relação a constância e regularidade,
as duas primeiras temporadas são semelhantes. Começam bem e dão uma
certa caída, e ficam oscilando um pouco antes de uma estabilizada por meados
de temporada, com seqüência de alguns constantes bons episódios, e nova queda
e recuperação antes do fechamento da temporada. Na primeira, a estabilidade de
meados de temporada ocorre por entre "The
Nagus" e "Progress",
enquanto na segunda isto ocorre mais à frente, entre "Blood
Oath" e "Tribunal".
Já a terceira temporada tem
um perfil um pouco diferente. Começa bem e mantém uma constância de bons episódios
por mais tempo, antes de começar a oscilar bastante após "Civil
Defense", para novamente conseguir outro
bom grupo de episódios em volta do duplo "Improbable Cause" e "The Die is Cast",
e da mesma maneira que a segunda, termina em um crescendo de qualidade até o season finale – "The Jem’Hadar" para a segunda,
"The Adversary"
para a terceira. Todas estas três temporadas têm, é claro, seus
episódios classe unha-na-lousa, como por exemplo,
"Move
Along Home", na primeira, "Melora",
na segunda e "Fascination",
na terceira. Mas mesmo estes e alguns outros estão longe de comprometer o todo
de cada uma das três temporadas. A
primeira temporada, como qualquer temporada inicial, precisa realizar o trabalho
de estabelecer todo o ambiente geral dos personagens e seu contexto além de também
ter que apresentar as histórias individuais de cada episódio. E este trabalho
a primeira temporada de Deep Space Nine
realiza muito bem. Episódios mais dedicados aos arcos principais da série como
"Babel",
"Battle Lines" e "Progress"
dão força a isto, mas mesmo nos meandros de isoaldos
episódios mediano-para-ruim como "The Forsaken" podemos
encontrar elementos valiosos sobre os bajorianos
estarem lidando com o pós-guerra, fim da ocupação e reconstrução de sua sociedade.
E é com a ajuda deste desenvolvimento que "Duet",
por exemplo, consegue ser o grande episódio que é, envolvente e cativante. Sem
este contexto, de sabermos as relações bajorianas e
cardassianas, e conhecermos os personagens envolvidos,
particularmente Kira, "Duet"
poderia soar vazio e até mesmo falso. Teria, por exemplo, o mesmo problema que
"The Naked Time"
na Série Original e "The
Naked Now" em A Nova Geração,
que é deixar um aspecto de “Tá, e daí?”, devido a não
sabermos muito sobre os personagens e seu ambiente antes da situação apresentada. Já
a segunda temporada consegue fazer bom uso dos elementos estabelecidos na temporada
anterior, tanto em relação a interação dos personagens
como os arcos de história. Com os personagens, a interação entre estes já se dirigia
a caminhos que iriam, mais tarde, ficar bastante familiares
ao público, como por exemplo a camaradagem entre Bashir
e O’Brien. No que diz respeito a tramas, temos um bom
início com o mini-arco de insurgência política bajoriana,
com a trilogia do Círculo. Após isto, há a oscilação de meados da temporada, onde
podemos encontrar tanto bons segmentos ainda relacionados aos bajorianos (e Kira entre eles) como
"Cardassians"
e "Necessary Evil",
como também uma seqüência rápida de fracos episódios de todos os tipos, de "Second
Sight" até "Rivais".
Mas após "Blood Oath", a segunda temporada se mostra extremamente
sólida, e mesmo com a leve queda antes de "The
Jem’Hadar", a média de qualidade é louvável. Nesta
temporada que temos a introdução do Dominion, em um ritmo sutil que, enquanto
consegue manter a coisa instigante, também não toma todo o oxigênio da sala, e
foi bem levado – apesar de eu pessoalmente ter alguns problemas com os detalhes
da coisa, como subjetivamente sugerir que os serviços de inteligência federados
estariam mais por fora da situação no quadrante Gamma do que civis ferengis, os
quais Deep Space Nine sempre teve o
costume de relegar demais ao papel de comic-relief. Além disto, a segunda temporada
também viu o arco Maqui engatar em bom ritmo, e na visão deste missivista, este
foi o ponto alto da temporada. Como já comentado
em artigo anterior aqui no Trek Brasilis,
sempre considerei o arco Maqui como o melhor arco de história que já houve em
Jornada nas Estrelas, mas que infelizmente
não viu todo o seu excelente potencial ser adequadamente desenvolvido. A
terceira temporada inegavelmente teve reflexos da carga de Deep
Space Nine ter que assumir a posição de “série-sênior”
da franquia, com o fim de A Nova Geração,
e com isto, as responsabilidades enquanto produto de entretenimento em responder
com a audiência que se espera de uma série em crescimento. Tais
fatores, sem dúvida, influenciaram os caminhos pelos quais a
série seguiu da terceira temporada em diante. Este cenário de “melhoras necessárias para
cativar a audiência” ilustra bem a nossa questão aqui em discussão, sobre a percepção
equivocada de que a série teria melhorado em saltos notáveis, o que não foi realmente
o caso. Contudo, negligenciar os elementos da terceira temporada que foram introduzidos
em resposta a isto seria um equívoco, claro. Tais elementos de fato ajudaram a
série a amadurecer e diversificar a interação dos personagens e o desenvolvimento
das tramas, mas jamais foi algo solenemente responsável por quaisquer melhorias
que ocorreram, e também jamais deixaram a série completamente refém das pragmáticas
questões de audiência. Isto, aliado à boa adição a equipe de Ronald
Moore e René Echevarria, alumnis
de A Nova Geração, certamente deve justificar
em parte a razão do perfil da terceira temporada ser diferente das duas primeiras,
com maiores oscilações entre fortes e fracos episódios, em a coisa estar se reassentando
em um novo tom, mas houve uma boa constância no início e final da temporada; a
série demonstrava maturidade crescente. O
mais visível elemento adicionado foi, é claro, a Defiant
e a apresentação definitiva do Dominion. Apesar de que eu considerar a Defiant uma boa adição à série, eu sempre
considerei que a maneira pela qual isto ocorreu deixou a desejar. O arco em que
isto ocorreu, com o season-finale "The
Jem’Hadar" e o duplo "The Search",
teve um tom exagerado de urgência apenas para no final haver uma anulação da situação
que estabelece, pela maneira que a segunda parte do duplo terminou. E a maneira
na trama pela qual a Defiant foi alocada para DS9 também deixou a desejar. Ao invés de
o almirantado federado despachar para a ainda mais importante DS9 uma necessária
Força-Tarefa de várias naves, nucleada em uma nave pesada, o que eles fazem é
enviar para lá um protótipo de pré-série com uma tripulação só de praças, a qual
o corpo de oficiais de DS9 é quem teriam que comandar. E ao invés de Sisko demonstrar
indignação a esta política, ele é quem demonstra ter sido um dos patrocinadores
da idéia… um momento de conflito desnecessariamente desperdiçado. Sim,
estou ciente das necessidades e limitações da série enquanto produção televisiva:
não seria fácil a inserção de inúmeras naves capitais no todo da série, bem como
os personagens de um corpo de oficiais próprio para a Defiant. Contudo, como disse acima, interação entre a equipe em comando
da DS9 e o almirantado federado poderia gerar boas tramas com Sisko aceitar com
reservas os seus “reforços”, mas o que houve foi o contrário disto. A idéia original
por Michael Piller e Ira
Behr para uma nova nave para a série foi boa, mas o desenvolvimento por Ronald
Moore da introdução dela nunca realmente foi adequado. Mas
seja como for, a Defiant e a maior presença do Dominion
foram oportunidades para explorar novas situações, especialmente para Odo, que
agora tem que lidar com a parte negativa do velho clichê de “Cuidado com o que
deseja: pode conseguir”. Odo agora não lida mais com o fato de não conhecer suas
origens, mas sim com as conseqüências desta descoberta, e isto realmente deu uma
nova dinâmica ao personagem, coisa muito bem vinda. O resultado líquido deste
potencial começou a surgir em episódios de meados da temporada, para finalmente
ter um pico com a excelente dupla "Improbable Cause" e "The
Die is Cast". A terceira temporada também foi campo para, por exemplo,
a expansão dos elementos do universo-espelho, iniciado no ótimo "Crossover"
da segunda temporada, e também a expansão do manifesto de personagens secundários,
e entre eles, Michael Eddington é um destaque que quero fazer, pela qualidade
do personagem e da adequada atuação “ruído-branco” de Kenneth
Marshall para este momento do personagem, e a importância deste
para o arco Maqui. Mas mesmo episódios de certa forma isolados do todo, como "Explorers"
e o duplo "Past
Tense" ajudam a reforçar a terceira temporada. Considerando
todos estes fatores, qual seria então a razão desta percepção geral de que estas
temporadas não teriam sido tão boas como podemos constatar que de fato foram?
Eu acredito que parte desta razão está no fato de se esperar como elemento principal
delas algo que no caso de Deep Space Nine,
sempre esteve como elemento secundário, que seria haver “high-concepts”, elementos
exagerados de ficção-científica e ação e efeitos por si mesmos. Um bom bolo não
deve ser julgado pela sua cobertura, mas sim pelo seu recheio, e as três primeiras
temporadas de Deep Space Nine nunca
prezaram por capricharem na cobertura, é verdade: nelas, não encontramos doses
exageradas e forçadas de coisas como
batalhas, ação, tirinhos e tecnobable vazio – embora tais coisas também estejam
presentes. A
segunda temporada viu a introdução do Dominion? Sim. A terceira temporada viu
a introdução da Defiant? Sim. Mas o crescimento de qualidade
da segunda em relação a primeira, e da terceira em relação
a segunda, de modo algum é devido a introdução destes elementos, mas sim devido
ao fortalecimento das características principais da série. O que as três primeiras
temporadas de Deep Space Nine claramente possuem é o saboroso
recheio da série como um todo, por todas as suas temporadas: o forte desenvolvimento
de personagens, a interação destes, os conflitos resultantes disto, as tramas
bem elaboradas em torno disto, e a amarração como um todo destes elementos. Este
recheio, já bem embasado, apenas foi recebendo aprimoramentos, o que garantiu
o constante crescimento na qualidade destes pontos fortes de Deep
Space Nine, que ocorreu de maneira bem gradativa, e não com saltos ou em surtos,
como se costuma imaginar. Sempre
considerei que, caso os arcos de trama de Deep
Space Nine tivesse seguido por caminhos bem diferentes do que foram a partir
da quarta temporada, ainda assim a série teria mantido o seu constante e gradativo
aumento de qualidade, e na realidade, eu sempre acreditei que de fato realmente
deveria ter seguido outros caminhos diferentes do que foi a guerra
primeiro com os Klingons (e sim, eufemismos e tecnicalidades à parte, foi uma
guerra) e depois com o Dominion. A franquia de Jornada nas Estrelas como um todo nunca dependeu de guerras e batalhas
para ter a qualidade que tem, e Deep Space
Nine não é diferente. No meu ver, poderia ter tido ainda mais qualidade se
tivesse evitado o preguiçoso caminho fácil de “conflito-tipo-Segunda-Guerra” para
poder apoiar elementos dramáticos. Mas
enfim. No frigir dos ovos, uma coisa é certa. Não precisamos fazer força em procurar
o que é que, afinal de contas, as três primeiras temporadas
de Deep Space Nine tem de tão bom
assim. Não, basta apenas assistirmos de maneira tranqüila. Aí sim, então, os seus
pontos fortes naturalmente se destacam, e podemos perceber as razões de estas
primeiras temporadas serem tão fortes como o todo da excelente série a que deram
início. |