Capítulo
4 - Encontrando
sua voz
A procura pelo tom da nova série de Jornada
nas Estrelas
A
preocupação que pautou os primeiros episódios de Enterprise
foi sem dúvida a de tentar ao máximo reforçar a noção de que a
audiência estava recebendo uma série diferente de Jornada nas
Estrelas. Mais do que apresentar enredos inovadores, a idéia
era mostrar que histórias semelhantes receberiam um tratamento
diferenciado.
Para atingir esse objetivo, Rick Berman e Brannon Braga decidiram
que era preciso promover uma forte renovação da equipe de roteiristas,
com relação aos que trabalhavam em Voyager. Da velha safra
só sobreviveram Andre Bormanis e a dupla Michael Sussman e Phyllis
Strong. Os demais seriam todos contratados especialmente para
a série.
No novo pacote, teve um pouco de tudo. Foram trazidos a bordo
desde veteranos da ficção científica, como Fred Dekker (responsável
pela roteirização do filme "Robocop 3" e de alguns episódios de
"Tales from the Crypt"), até totais novidades no gênero, como
Antoinette Stella (que tinha um histórico de carreira em séries
dramáticas como "Providence" e "Melrose Place").
Também foram trazidos a dupla André e Maria Jacquemetton (um casal
que já havia escrevido roteiros para séries tão díspares quanto
"Highlander", "Baywatch" e "Jack of All Trades"), o novato Tim
Finch (que só tinha a série "Seven Days" em seu currículo), e
o veterano Chris Black (que já havia roteirizado episódios de
várias séries de ficção e fantasia, como "Cleopatra 2525", "Xena",
"Sliders" e "Weird Science"). Stephen Beck, que já trabalhava
numa série de ficção da UPN, fechou a equipe para o primeiro ano.
Se por um lado os produtores decidiram trazer sangue novo à produção
dos roteiros da série, por outro eles fecharam a principal porta
para a revelação de novos talentos, encerrando uma prática iniciada
por Michael Piller nos bons e velhos tempos de A Nova Geração:
a política de submissão de roteiros. É uma política normal da
indústria do entretenimento americana aceitar roteiros especulativos
enviados por qualquer escritor que esteja inscrito no sindicato.
Mas, desde 1989, Jornada nas Estrelas abriu suas portas
também a todo aquele que quisesse escrever um roteiro, mesmo não
sendo um escritor profissionais. Excelentes profissionais foram
revelados desta forma, como Ronald Moore, que por muito tempo
foi parceiro de Brannon Braga em A Nova Geração (a dupla
escreveu os dois primeiros filmes de Picard e cia. para o cinema,
além do episódio final da série para TV) e que teve importância
fundamental na evolução de Deep Space Nine.
Para Enterprise, entretanto, Berman decidiu vetar o recebimento
de roteiros de escritores sem credenciais. Ele explica: "Há uma
série de questões legais envolvidas. É uma política que existe
em muito poucas séries de televisão. É algo que Michael Piller
iniciou alguns anos atrás e que ficou muito pesado para nos. Pessoas
precisam ser contratadas para analisar centenas de roteiros. Documentos
legais precisam ser mandados para lá e para cá. Era um trabalho
enorme e ficou muito caro. As pessoas que estavam coordenando
as equipes de roteiristas ao longo dos anos descobriram que não
valia a pena o esforço a longo prazo."
Limitados aos roteiristas contratados, Berman & Braga precisaram
explicar em detalhes o que era esperado de um episódio da nova
série. Embora vários deles tivessem experiência prévia com o gênero
sci-fi, nenhum havia sequer pensado em escrever episódios de Jornada
nas Estrelas antes. Cabia portanto à dupla de produtores-executivos
oferecer uma linha firme e clara de orientação para a série.
"Rick
e Brannon claramente moldaram e guiaram essa série desde o início
e são responsáveis pela maioria das histórias que fizemos", contou
André Bormanis
ao Trek Brasilis. "Mas a equipe de roteiristas tem uma
grande dose de responsabilidade no desenvolvimento das histórias
e na evolução de nossos personagens, e é claro que a equipe é
responsável pela roteirização da maioria das histórias que filmamos."
Claramente,
foi exatamente essa a divisão de tarefas que imperou durante a
primeira temporada. Dos 26 episódios produzidos, 19 foram, ao
menos em termos da história básica, concebidos pela dupla Berman
& Braga. Desses, seis foram também roteirizados pelos dois. Nem
o criador Gene Roddenberry havia tomado tanto as rédeas da série
original tanto quanto os dois fizeram em Enterprise. Um
dado curioso é que Rick Berman e Brannon Braga se tornaram uma
espécie de instituição dentro da série -- em tudo que apareciam,
estavam juntos.
Num estilo de parceria similar ao que vimos com John Lennon e
Paul McCartney nos Beatles, todos os produtos criativos de um
ou de outro levariam o nome da dupla, independentemente de quem
tenha sido o efetivo realizador/idealizador do trabalho.
Apesar disso, é fato que Berman nunca esteve tão vinculado ao
lado criativo de uma série de Jornada nas Estrelas quanto
em Enterprise. "Eu estou muito mais envolvido na roteirização
agora", disse, na época da estréia da série. "Brannon e eu escrevemos
o piloto, e nós escrevemos o primeiro e o terceiro episódios regulares,
e estamos descobrindo que nos divertimos muito trabalhando juntos.
Muito mesmo."
Mudanças de foco
Juntos, os dois decidiram usar os primeiros episódios para mostrar
as diferenças entre esta nova tripulação e a das séries anteriores.
A começar pela espinha dorsal, o capitão Jonathan Archer. Antes
da estréia da série, Scott Bakula deu algumas pistas de por onde
seu personagem iria caminhar. "Ele é um ótimo capitão, eu acho.
Mas ele vai cometer alguns erros. Ele é muito humano."
De fato, logo nos primeiros episódios Archer é obrigado a confrontar
o fato de que a vida não será fácil no espaço e acaba se vendo
pressionado a tomar decisões difíceis. Alguns fãs viram a postura
do capitão como uma fraqueza inerente ao personagem, um defeito
da série, mas Brannon Braga revelou que o traço de personalidade
foi introduzido de forma totalmente intencional.
"Essa [indecisão] era planejada", disse Braga ao final do primeiro
ano. "Queríamos um capitão que estivesse animado para sair lá
fora e explorar, e então percebesse que a galáxia não é bem o
que ele esperava. Ele não é Kirk. Kirk teve o benefício de uma
Federação, de uma Frota Estelar de naves e da Primeira Diretriz.
Archer está por conta própria. Você poderia dizer que ele é indeciso,
mas para mim essa é parte da diversão. Queremos vê-lo frustrado.
Gradualmente ele começa a ganhar suas 'pernas espaciais'. Mas
isso é algo que você quer que seja mostrado, porque é bom drama
de personagem."
Os produtores também queriam que a série fosse mais engraçada,
e ao mesmo tempo mais natural, que suas predecessoras. "Queríamos
que Enterprise fossem em geral mais engraçada", diz Braga.
"Queríamos que o humor viesse organicamente. Muitas vezes em Voyager
o humor era feito como, 'E aqui está o episódio engraçado'. Mesmo
quando tentávamos humor em episódios normais, parecia meio forçado.
Com essa série, esperamos, as pessoas vão olhar e dizer, 'Enterprise
--aquela era a engraçada. Voyager e A Nova Geração podem
ter mais gravidade semana após semana, mas rapaz, Enterprise
era um estouro'."
Outro grande tema do primeiro ano foi a deficiência tecnológica
da vida no século 22, quando comparada às outras séries. Para
Braga, foi uma bênção. "Está brincando comigo?", Braga pergunta
retoricamente. "Em A Nova Geração e Voyager, você
mal podia fazer qualquer coisa porque as naves eram tão avançadas.
Tomamos uma decisão consciente aqui de fazer menos tecnobaboseira,
resolver histórias com soluções de personagens. O que me preocupa
é que não queremos ter tudo inventado muito depressa."
Apesar dessa preocupação, a primeira temporada já oferecia novidades
tecnológicas importantes, como as pistolas de fase (precursoras
dos feisers), os canhões de fase e os primeiros campos de força
eletromagnéticos, precursores dos escudos.
À procura de enredos originais
Do ponto de vista dos enredos, a idéia também foi priorizar histórias
que tivessem um enfoque na premissa básica da série, de ser uma
precursora de tudo que já foi produzido sobre Jornada nas Estrelas.
Entre esses episódios vale a pena relembrar "Terra
Nova" e "Fortunate
Son", que apresentaram respectivamente o primeiro esforço
de colonização interestelar promovido pelo planeta e a vida cotidiana
a bordo de lentos cargueiros terrestres que viajam a velocidades
próximas de dobra 1.
"Terra
Nova" também marcou um traço marcante da nova série -- a escalação
de atores provenientes das produções anteriores de Jornada
como diretores dos episódios. Nesse primeiro esforço, LeVar Burton
(Geordi La Forge) foi escalado. No episódio seguinte, "The
Andorian Incident", foi a vez de Roxann Dawson (B'Ellana
Torres). Ainda teriam a chance de ocupar a cadeira de diretor
nesta temporada Robert Duncan McNeill (Tom Paris) e Michael Dorn
(Worf).
"Gente como LeVar e Roxann são realmente diretores talentosos,
antes de mais nada", justificou Braga. "Eles também entendem Jornada
muito intimamente e o que estamos tentando fazer. Eles realmente
adicionam muito."
No campo dos atores convidados, vários alumni de Jornada também
deram as caras. Mais marcantes foram as presenças de Jeffrey Combs
(que já havia interpretado Weyoun, em DS9) como o Andoriano
Shran, René Auberjonois (Odo), como um alienígena em "Oasis",
e Ethan Phillips (Neelix), como um dos Ferengis de "Acquisition".
Aliás, Combs teve a chance de participar de uma ocasião histórica
-- a primeira aparição de um Andoriano desde a Série Clássica.
Brannon Braga explica de onde veio a idéia para o episódio.
"Nós tínhamos como meta pegar os alienígenas mais patetas da série
original e transformá-los em uma cultura real que seja legal e
crível", explica Braga. "Acho que fomos bem-sucedidos. Escalar
o papel de Shran foi uma tarefa assustadora, porque você precisa
ter um cara azul com antenas que parece ameaçador. Quando você
tem alguém como Jeffrey, que você sabe que vai acertar e trazer
dimensão, você vai como, 'Vamos usá-lo'. Além disso, os fãs o
adoram."
Outra aparição notável no campo dos atores convidados veio de
Dean Stockwell. Embora nunca tivesse aparecido em Jornada
antes, Dean era um velho colega de Scott Bakula na série "Quantum
Leap", o que fez o reencontro dos dois especialmente memorável.
Aconteceu em "Detained".
"Eles tiveram cinco cenas juntos onde ficavam frente a frente",
diz Braga. "É bem diferente de sua dinâmica em 'Quantum Leap',
e saiu maravilhoso. Dean fez um trabalho incrível."
Também foi uma tônica desta primeira temporada o destaque ao papel
de interação, cooperação e conflito entre humanos e Vulcanos.
"Os Vulcanos são muito parte dessa série", diz Braga. "Nós realmente
sentimos que eles eram essa fonte intocável de material para histórias,
e quando estávamos concebendo a série, tínhamos uma escolha a
fazer. Os Vulcanos vieram até nós e ficaram conosco com uma relação
realmente amistosa, ou eles nos deixaram e se tornaram um mito,
ou eles ficaram e se tornaram uma presença antagônica? Obviamente
a última dá a maior alimentação para o drama e para contar histórias
essenciais de Jornada sobre as pessoas superando seus preconceitos."
Apesar de todas essas linhas de desenvolvimento, o ponto focal
da série durante o primeiro ano acabou sendo o conceito da Guerra
Fria Temporal, iniciado em "Broken
Bow" e também abordado no episódio final da temporada.
"O episódio final, com o qual estamos muito felizes, fala da temporada
inteira que veio antes dele", explicou Brannon Braga na época.
"O Comando da Frota Estelar e o Alto Comando Vulcano decidem juntos
que a missão é um fracasso. Archer, claro, é quebrado pela culpa.
E é T'Pol quem diz a ele que ele precisa lutar contra essa decisão,
e que ela está disposta a lutar com ele. O relacionamento dos
dois realmente chega a termo emocionalmente, onde pela primeira
vez ela fica ao lado dele como capitão em vez de combatê-lo. O
episódio se torna uma luta para salvar a Enterprise e manter a
missão, então é bem sentimental e excitante."
Tom encontrado?
No fim das contas, ao chegar ao último episódio do primeiro ano,
a equipe estava satisfeita com os resultados e com o tom da série.
"Acho que encontramos nossa voz. Não estou certo de que possa
sintetizá-la em umas poucas palavras, mas Enterprise é
muito uma série sobre pessoas, exploradores, que são muito acessíveis,
pessoais, nobres mas não perfeitos, de muitos modos como astronautas
e outros aventureiros de hoje", comentou Bormanis. "Temos um foco
um pouco menor nos elementos de ficção científica de viagem espacial
que as séries anteriores de Jornada nas Estrelas, mas,
agora que temos um senso melhor da personalidade da nossa tripulação,
acho que vocês verão mais desse tipo de história."
Curiosamente, o ato de encontrar essa voz viria acompanhado pela
saída de muitos dos roteiristas recém-integrados à equipe. No
meio da temporada, Antoinette Stella foi dispensada, após ter
redigido apenas um roteiro. Stephen Beck teve o mesmo destino,
mas deixou o grupo só na reta final da temporada. Depois que "Shockwave,
Part I" foi ao ar, nem Fred Dekker, nem a dupla André
e Maria Jacquemetton foi requisitada para uma nova temporada.
A troca de roteiristas durante as primeiras temporadas de uma
nova série é algo bastante comum, mesmo no caso de um programa
com fortes raízes no passado, como Jornada nas Estrelas.
"No negócio da televisão, escritores frequentemente se mudam de
série para série. É meio incomum ficar numa série por mais que
uma temporada ou duas", afirma Bormanis. "Se um dado escritor
vai ou não ficar depende de vários fatores, e eu realmente não
sei de todos os detalhes sobre o porquê de certos escritores terem
ficado ou partido, então não sinto que possa falar disso."
De uma forma geral, a série foi considerada um sucesso de audiência
durante sua primeira temporada. Mesmo assim, uma ameaça começava
a se formar para o segundo ano -- formou-se uma clara tendência
de declínio de audiência. Se "Broken Bow" teve uma audiência
de 7 pontos nos índices Nielsen, pelo 14º episódio esse valor
já era quase a metade, 3,9 pontos. Mesmo com o cliffhanger de
"Shockwave" não foi possível reverter a tendência de queda
e o finale marcou apenas 3,3 pontos nos Nielsen, um valor apenas
marginalmente superior à média de Voyager durante suas
últimas temporadas.
Apesar de todos os problemas, os produtores conseguiram na primeira
temporada produzir um arranjo razoável de criatividade e conservadorismo
e produzir 26 episódios com qualidade aceitável. Por outro lado,
ainda não haviam provado que Enterprise seria também um
sucesso comercial. A Rick Berman e Brannon Braga restava apenas
esperar para ver o que a segunda temporada poderia trazer e se
realmente o fantasma da crise poderia ser debandado da franquia
pelos próximos anos.
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