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A Misteriosa Identidade B&B

Desde a estréia de Enterprise, há dois anos, um fenômeno no mínimo curioso surgiu nos bastidores de Jornada nas Estrelas. Duas pessoas perderam sua identidade própria e se tornaram praticamente uma instituição. Entre os fãs, essa entidade com vida própria acabou sendo conhecida como "B&B" -- uma abreviação de Berman & Braga.

Rick Berman está na franquia desde 1986 -- antes mesmo da estréia de A Nova Geração nos EUA. Ao conquistar a confiança de Gene Roddenberry e atuando também como alguém simpático aos executivos da Paramount, Berman acabou se tornando o sucessor do Grande Pássaro da Galáxia na condução de todas as coisas de Jornada nas Estrelas. Nada mau para quem, quando se integrou à equipe de A Nova Geração, não tinha a menor idéia de onde estava se enfiando.

Berman originalmente tinha um cargo de executivo na Paramount, onde tinha como função gerenciar os telefilmes e projetos especiais do estúdio -- que na ocasião incluíam A Nova Geração. Depois de participar de uma reunião com Gene e outros executivos, Berman foi convidado pelo criador de Jornada para um almoço.

"Ficamos por lá umas duas horas e não falamos nada sobre Jornada nas Estrelas. Ele então me perguntou se eu sabia algo sobre Jornada. Eu disse a ele que realmente não e que eu nunca tinha visto um filme de Jornada nas Estrelas. Eu disse que tinha visto um par de episódios da série original", contou Berman recentemente em uma entrevista à revista "Dreamwatch".

"Ele ficou fascinado com isso. Ele já tinha contratado umas poucas pessoas -- Eddie Milkis, Bob Justman e Dorothy Fontana -- para essa nova série, que ele ainda não havia concebido. Ele eram todos de lá dos anos 1960 e ele já havia trabalhado com eles antes. Eu estava nos meus 30 e poucos [39, na verdade -- Berman nasceu em 25 de dezembro de 1945] e era alguém que não sabia nada sobre Jornada, e ele gostou disso. Eu viajei muito, e ele também, e foi sobre isso que nós conversamos."

Aparentemente os dois se deram muito bem, o que levou Gene a pedir que Berman renunciasse a seu posto na Paramount e se tornasse produtor de A Nova Geração. Algumas manobras no estúdio permitiram a troca de cargo e estabeleceram o início da relação que levaria à passagem do bastão na liderança da franquia.

Na terceira temporada da série (1989-1990), Gene se afastou definitivamente do trabalho com o dia-a-dia, deixando Berman como principal produtor-executivo do programa. E foi justamente em 1990 que chegou à equipe de roteiristas da série Brannon Braga, 19 anos mais jovem que Berman. Recém-saído da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, Braga conseguiu uma vaga como estagiário em A Nova Geração. Com premissas ousadas e a facilidade de vender histórias sintentizáveis em uma frase -- os chamados "high-concepts", Braga foi galgando as escadas da produção da série.

Formando uma fértil parceria com o escritor Ronald D. Moore, que havia chegado à série no ano anterior, Braga conseguiu obter as principais "missões" designadas aos roteiristas -- como as de escrever o episódio final, "All Good Things...", e os dois primeiros filmes da Nova Geração para o cinema, "Generations" e "Primeiro Contato". A parceria com Moore ainda rendeu créditos fora da franquia, como no roteiro de "Missão Impossível 2", com Tom Cruise.

Com o fim de A Nova Geração, Braga foi levado para Voyager e promovido a produtor. Prosseguindo com a ascensão na nova série, ele não só passou a namorar Jeri Ryan como também chegou a produtor-executivo, trabalhando diretamente com Berman na definição dos rumos para a série -- possivelmente ali foi iniciada a relação simbiótica que vemos na dupla atualmente.

Moore, por sua vez, ficou em Deep Space Nine, e teve problemas quando a série terminou e ele se mudou para Voyager, então no início de sua sexta temporada (1999). Braga não era mais seu parceiro de roteiros, mas seu chefe -- e claramente o favorito de Berman. Desapontado com o que seu trabalho poderia render em Voyager, Moore abandonou a franquia depois de poucas semanas na série de Janeway e cia. De sua presença lá, resultaram apenas os episódios "Barge of the Dead" (roteiro) e "Survival Instinct" (apenas a história).

Durante a última temporada de Voyager, havia três produtores-executivos listados: Rick Berman, Brannon Braga e o recém-promovido Kenneth Biller. O último nunca teve grande expressividade na franquia e acabou conquistando a eminente posição num golpe de sorte: Berman & Braga já começavam a preparar as bases para Enterprise e precisavam de alguém para "tomar conta" de Voyager em sua temporada final -- claramente o alto-comando da franquia não estava dando muita bola para o modo como essa série deveria ser concluída.

Enterprise foi concebida para ser a menina dos olhos de Brannon Braga. Berman já havia ajudado na gestação de duas séries de Jornada nas Estrelas (com Michael Piller, no caso de Deep Space Nine, e com Piller e Jeri Taylor, no caso de Voyager), mas para Braga a chance de elaborar uma série da franquia desde a premissa era uma total novidade.

Nas duas concepções anteriores, Berman sempre pareceu dividir as tarefas com os demais escritores em duas frentes. Piller e Taylor concentravam seus esforços no filão criativo, enquanto Rick estaria mais atrelado aos aspectos técnicos da produção. O forte de Berman claramente não era escrever. Em A Nova Geração, ele redigiu apenas dois roteiros, "Brothers" (da quarta temporada) e "A Matter of Time" (da quinta temporada). Contribuiu ainda, em parceria, com a premissa de outros três episódios.

Nas outras duas séries que co-criou, apenas contribuiu, também em parceria, com premissas (três em Deep Space Nine e oito em Voyager), sem redigir um roteiro sequer. Mas com Enterprise tudo parece ter mudado -- olhando de um ponto de vista romântico, poderíamos imaginar que finalmente o sisudo Berman teria encontrado em Braga sua "alma-gêmea" criativa.

Ele mesmo defende essa idéia em entrevista dada recentemente (acompanhado por Braga, claro) para a revista "TV Guide", onde admite que os dois "se completam". "Brannon e eu tivemos uma relação variada durante os últimos dez anos. Começamos comigo sendo o chefe do chefe dele e terminamos comigo sendo parceiro dele, então a dinâmica mudou. Trabalhar com ele em Enterprise tem sido a coisa mais divertida que já fiz", diz Berman. "Acho que falo por nós quando digo que temos uma paixão maior por essa série do que pelas outras", complementa Braga.

Os números refletem isso. Onze dos 43 episódios da série exibidos até aqui são creditados como roteiros de Rick Berman e Brannon Braga -- praticamente uma em cada quatro histórias seria completamente executada, da concepção à roteirização, pela dupla. Além disso, 17 outros episódios foram escritos com base em premissas ao menos parcialmente engendradas pelos dois. Somando, 27 dos 43 episódios têm ligação direta e declarada com Brannon e Rick. Detalhe: nenhum dos dois tem um crédito individual sequer na série -- eles sempre aparecem em dupla, com os nomes separados pelo símbolo "&", que no jargão dos créditos da indústria do entretenimento implica que os dois trabalharam em parceria naquele segmento (e não com um rescrevendo o trabalho do outro).

Disso, uma coisa fica clara: existe a real intenção de criar um elo forte e indissolúvel entre os dois. Na história dos grandes artistas e inventores, a política não é incomum -- John Lennon e Paul McCartney tinham por acordo assinar juntos todas as músicas que compunham, mesmo que algumas delas tivessem sido feitas exclusivamente por um deles; os irmãos Grimm, dos contos de fadas, são tão conhecidos dessa forma que poucos sabem o nome de cada um; similarmente, os irmãos Wright, inventores do avião, chegavam ao ponto de assinar os cheques que emitiam como "Irmãos Wright", independentemente de qual dos dois, Wilbur ou Orville, estivesse envolvido no pagamento.

Apesar disso, parcerias dessa natureza são uma novidade absoluta em Jornada nas Estrelas. Claro, é comum vermos roteiros e histórias assinados por mais de uma pessoa (como a já citada dupla Moore & Braga ou, mais recentemente, os bons Mike Sussman & Phyllis Strong), mas é totalmente inusitado que esse emparceiramento se torne uma instituição, como no caso de Berman & Braga.

É igualmente atípico que um produtor já há quinze anos no mesmo serviço repentinamente descubra que, além de seus trabalhos habituais, tem tempo para escrever -- e mais, que tenha a mesma disponibilidade que seu outro colega, responsável pela equipe de roteiristas da série. Ainda que seja possível, é altamente improvável que Rick Berman realmente tenha mergulhado tanto na elaboração dos roteiros da série -- embora seja o que ele diz: "Estive muito mais envolvido na escrita agora".

Uma teoria alternativa plausível seria a de que Berman foi forçado a mergulhar no lado criativo da série por determinação da Paramount. Até onde se sabe, Rick é um dos executivos mais prestigiados do estúdio, tendo conduzido Jornada nas Estrelas por quase 20 anos de produção ininterrupta. Pode ser que, para fazer Enterprise decolar, Berman tenha também se comprometido a manter uma postura mais próxima e vigilante com relação à série. Ainda sabemos muito pouco sobre os bastidores da concepção de Enterprise, mas o próprio Berman já admitiu que teve de falar um bocado para convencer a Paramount a comprar o conceito pré-Kirk e pré-Federação da série.

Claro, se essa estratégia realmente é o que está acontecendo no topo da cadeia alimentar de Jornada nas Estrelas, ela é uma faca de dois gumes. Se por um lado a Paramount estará ciente de que seu querido produtor está fazendo o melhor trabalho possível no comando da série, por outro Berman não encontrará nenhum bode espiatório caso Enterprise não vingue e traga índices de audiência ainda mais baixos do que os de Voyager -- evento que não está muito longe de acontecer, se tudo continuar caminhando na direção atual. Seu nome já estará indissoluvelmente associado ao de Braga; ele não poderá simplesmente dizer, "É tudo culpa do Brannon".

Em compensação, se Enterprise vingar, ele também não poderá colher os louros sozinho. Para todos os efeitos, no que diz respeito ao lado televisivo da franquia, Rick Berman & Brannon Braga são uma única pessoa.


Salvador Nogueira, jornalista, escreve regularmente sobre
a nova série de Jornada nas Estrelas para o
Trek Brasilis