por Salvador Nogueira



 









 

Capítulo 1 - Iniciando uma revolução
A magia de transformar ficção séria na TV em algo possível


Os fãs costumam comemorar o aniversário de Jornada nas Estrelas em 8 de setembro, data em que, no ano de 1966, foi exibido o primeiro episódio da série nos EUA. Mas se a história da série fosse contada somente a partir desse dia, ninguém conseguiria entender o porquê de a data ser lembrada de forma tão festiva e efusiva. Porque Jornada nas Estrelas, por si só, não é um conceito extremamente original. De fato, vários dos elementos centrais da série já haviam sido criados e bastante desenvolvidos no âmbito da ficção científica, especialmente na literatura.

A grande façanha de Jornada nas Estrelas não foi produzir um conjunto inédito de conceitos em torno dos quais uma série pudesse orbitar, mas, muito mais do que isso, provar aos conservadores executivos da televisão americana que era possível realizar algo desse porte no formato televisivo. E o homem responsável por esse grande feito é Eugene Wesley Roddenberry.

Gene, como ficou mais conhecido, sempre teve uma queda por ficção científica. Nascido em El Paso, no Texas, em 1921, tornou-se piloto de aviões e combateu pelos EUA na Segunda Guerra Mundial. Após a guerra, acabou indo parar na aviação civil, onde teve a chance de viajar para os mais remotos cantos do planeta e conhecer a imensa variedade cultural humana. Após um acidente aéreo que quase custou sua vida, decidiu partir para uma vida no chão -- mas nem por isso menos emocionante. Gene virou policial em Los Angeles, na Califórnia.

Lá ele teve a chance de testemunhar a evolução da indústria da televisão -- o primeiro passo para decidir que queria fazer parte dela. Primeiro nas horas vagas, Gene iniciou sua carreira de escritor tentando vender roteiros para séries em produção. Seu treinamento como escritor, entretanto, já vinha de antes: Roddenberry era encarregado por seu chefe no Departamento de Polícia para escrever os discursos dele, se aproveitando o talento de seu subordinado.

Após algumas vendas bem-sucedidas de roteiros para séries policiais e de faroeste, Gene percebeu que podia ganhar mais dinheiro como escritor do que como policial, e seu chefe no LAPD teve de procurar outro para redigir seus discursos. Como escritor profissional, Roddenberry obteve grande sucesso, e no início dos anos 1960 conquistou o status de potencial criador de episódios-piloto -- segmentos cujo objetivo seria o de convencer as redes de televisão de que os conceitos por trás deles seriam capazes de manter uma série semanal.

Seu primeiro piloto bem-sucedido (ou seja, comprado por uma rede, juntamente com uma encomenda por novos episódios) foi para "The Lieutenant" (o tenente), uma série policial estrelada por Gary Lockwood. O piloto foi produzido e a série durou uma temporada, de 1963 a 1964, onde Roddenberry pôde exercer o que ele nasceu para fazer -- produzir para televisão. Porque, se Gene era um escritor talentoso para TV, ele era um produtor muito melhor.

Em "The Lieutenant", além do já referido Gary Lockwood, estrelariam também, como convidados, diversos atores que acabariam consagrados em Jornada nas Estrelas, como Nichelle Nichols e Leonard Nimoy. Mas a série em si não se tornaria um sucesso de audiência, levando ao inevitável cancelamento em 1964. Com ele, a Metro-Goldwin-Meyer (estúdio responsável pela produção de "The Lieutenant") voltou a contatar Roddenberry, perguntando se o produtor teria algum outro piloto para propor.

Gene achou que agora era o momento para tentar emplacar um conceito que ele já trabalhava mentalmente há anos. Algo que ele chamava de "Star Trek". Então, em 11 de março de 1964, Gene apresentou à MGM um documento de 16 páginas explicando exatamente o que ele queria dizer com "Star Trek", ou Jornada nas Estrelas.

Segundo suas próprias palavras, Jornada era "o primeiro conceito [de ação, aventura e ficção científica] com personagens centrais fortes e outros regulares recorrentes". (Para ler o documento completo apresentado por Roddenberry à MGM, traduzido para o português, clique aqui.) E Gene já tinha uma idéia bastante boa de como ele queria sua série de ficção para TV.


Jornada nas Estrelas é um conceito "Caravana" -- construído em torno de personagens que viajam para mundos "similares" ao nosso e encontram a ação, a aventura e o drama que se tornam nossas histórias. Seu meio de transporte é a nave "S.S. Yorktown", realizando uma missão de Exploração-Ciência-Segurança bem definida e de longo alcance que ajuda a criar nosso formato.

A época é "Algum lugar no futuro". Poderia ser 1995 ou mesmo 2995. Em outras palavras, perto o suficiente do nosso próprio tempo para nossos personagens contínuos serem totalmente identificados como pessoas como nós, mas longe o suficiente no futuro para a viagem galáctica ser totalmente estabelecida (alegremente eliminando a necessidade de amontoar nossas histórias com cansativas explicações científicas).


Mas até aí não havia nada de realmente inovador. O conceito de tripulações viajando em naves espaciais e explorando novos mundos era tão velho quanto Flash Gordon. A grande novidade de Roddenberry -- e o diferencial que ele faz questão de enfatizar ao longo de todo o documento -- é que ele prometia aos executivos uma forma de realizar o impossível: criar uma série de ficção científica séria e recheada de efeitos especiais a um custo aceitável.

Para isso, Gene se apoiou em uma idéia que ficaria para sempre consagrada. Hoje pode até parecer óbvia, mas foi o diferencial que permitiu que Jornada nas Estrelas, e por consequência todas as outras séries de ficção que se seguiram, viesse à vida.


O conceito de “Mundos Paralelos” é a chave...

...para nosso formato de Jornada nas Estrelas. Significa simplesmente que nossas histórias lidam com vida animal e vegetal, mais pessoas, bem similares às que temos na Terra. A evolução social também terá interessantes pontos de similaridade com a nossa. Haverá diferenças, claro, indo das sutis às audaciosamente dramáticas, de onde deve vir muita da nossa cor e empolgação. (E, é claro, nada disso nos proíbe de uma história ocasional “bem longe da nossa” jogada para surpreender e mudar o ritmo.)

O conceito de “Mundos Paralelos” torna a produção exeqüível ao permitir ficção científica de ação e aventura com um valor de orçamento prático pelo uso de, entre outros, elencos, cenários, locações e figurinos “terrestres” disponíveis.

Tão importante quanto (e talvez até mais, em tantos modos), o conceito de “Mundos Paralelos” tende a manter até as histórias mais imaginativas dentro do quadro de referência geral da audiência, através de elencos, cenários e figurinos reconhecíveis e identificáveis.


Estava muito claro que Gene havia investido muito de seu tempo livre imaginando essa série. Além de descrições bastante interessantes e consistentes dos principais personagens da série, que eram liderados por um trio particularmente interessante, composto pelo intrépido capitão Robert April, o exótico alienígena de aparência demoníaca chamado Spock e a fria e altamente inteligente primeiro-oficial da nave (uma mulher que só era chamada por todos de "Número Um"), Roddenberry apresentava em sua sinopse 24 diferentes histórias para episódios.

Muitas delas acabaram se tornando episódios da série (alguns entre os melhores), mostrando o quanto Roddenberry entendia do que estava falando e o quanto sua criatividade (e não só seu esforço como produtor) foi importantíssima para todo o andamento do seriado. Há vislumbres muito óbvios de segmentos como "The Cage", "Charlie X", "Mudd's Women", "A Piece of the Action", "Mirror, Mirror", "What Are Little Girls Made Of?", "The Man Trap" e "The Savage Curtain"

Ao longo de toda a sua apresentação, Gene explicava, tim-tim por tim-tim, por que Jornada nas Estrelas poderia ser um sucesso e, acima de tudo, como ela poderia ser produzida dentro de um orçamento razoável. Sua capacidade de argumentação denota a impressionante qualificação que ele tinha como produtor. Os executivos da MGM ficaram impressionados, mas a coisa toda parecia inovadora demais para que eles embarcassem nessa. O medo falou mais alto e a MGM acabou recusando.

Em vez de simplesmente desistir, Gene foi à caça de outro estúdio interessado em produzir a série. Ele primeiro bateu à porta da Fox, que o recebeu de braços abertos. Tudo parecia ir muito bem, mas, após a completa apresentação de Gene, os executivos revelaram o porquê de tanta cortesia: a Fox não estava interessado em produzir a série de Roddenberry, mas queria saber tudo o que ele sabia sobre ficção científica para TV, a fim de aplicar o conhecimento em um novo programa do estúdio: "Perdidos no Espaço".

Furioso, Gene retornou à caça, quando topou com a Desilu. Esse estúdio já havia atingido o topo em Hollywood quando sua principal produção, "I Love Lucy", era sucesso total nos EUA. Fortemente associada ao programa (até a dona do estúdio, Lucille Ball, devia sua fama ao estrelato em "I Love Lucy"), a Desilu iniciou um processo de decadência assim que seu carro-chefe saiu do ar. Mas o estúdio ainda tinha a esperança de dar a volta por cima, e a promessa de Roddenberry de uma série de ficção absolutamente revolucionária e, ainda assim, absurdamente barata, era atraente demais para que eles resistissem. Com isso, a Desilu passou a ser o estúdio oficial de Roddenberry para Jornada nas Estrelas.

Mas essa era só meia batalha. Faltava ainda descobrir quem ia bancar a série e comprar os direitos de exibição. Na época, sem televisão a cabo, as opções se resumiam a três: as redes de TV ABC, CBS e NBC. Delas, a que acabou assumindo o risco de encomendar um piloto à Desilu foi a NBC, após uma recusa da CBS.

Recentemente tomada pela inovação do technicolor, a rede de TV do pavão multicolorido achou que Jornada nas Estrelas poderia ser uma boa vitrine para demonstrar o potencial gerado pela introdução da televisão a cores, com mundos e alienígenas exóticos --e, de preferência, bem coloridos.

A NBC deu a Roddenberry US$ 20 mil para que ele desenvolvesse três histórias completas com base no formato. De posse delas, os executivos da rede elegeriam uma para ser o piloto da série. A escolhida acabou sendo "The Cage", que seria antes mesmo de ser produzida rebatizada como "The Menagerie" e depois voltaria ao título anterior, por conta da existência de um episódio clássico de mesmo nome.

Com a história escolhida, a rede forneceu a Roddenberry e à Desilu a generosa quantia de US$ 435 mil, o que na época era uma verdadeira fábula, para a construção dos cenários, a contratação dos atores e a produção do que seria o piloto mais ambicioso da história da ficção científica na televisão. A sorte estava lançada, e a Gene só restava a opção de pôr mãos à obra.

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