Dores
de crescimento de uma tripulação
Uma série no papel e uma série em
produção são duas coisas completamente diferentes. Voyager,
por exemplo, era considerada pela maioria dos fãs como a melhor
das premissas criadas para uma série derivada de Jornada.
Sete anos depois, apenas uns poucos mantiveram a opinião.
Da mesma forma, Enterprise só começa a mostrar sua
verdadeira face agora, quase um ano após o início de sua produção.
Ainda é muito cedo para apontar se a construção de uma série
em um período pré-clássico foi uma opção viável ou não, ou
se os produtores souberam lidar com as possibilidades e construir
boas histórias em torno da Enterprise de Jonathan Archer.
Em compensação, algo que já dá para notar é que Enterprise
não será o que seus criadores, Rick Berman e Brannon Braga,
imaginaram, em termos da evolução dos personagens da série. Com
apenas uma temporada concluída, já é possível detectar vários
desvios com relação aos planos originais da dupla.
Algumas
das coisas que eles ambicionavam para os tripulantes da Enterprise
só apareceram mesmo no piloto da série, "Broken
Bow". Depois, foram totalmente varridas para debaixo
do tapete. O mais gritante desses exemplos é o relacionamento
entre Charles Tucker e Travis Mayweather.
Nas listas dos personagens distribuídas a agências de atores em
todos os EUA durante o período de escalação das estrelas da série,
Tucker e Mayweather eram listados como os "dois amigos"
da Enterprise. Pela descrição, parecia um pouco a relação que
Berman, Michael Piller e Jeri Taylor queriam para Harry Kim e Tom
Paris, em Voyager.
Segundo
aquele documento, que delineava os princípios básicos da série,
Mayweather seria retratado como o mais "experiente" dos
tripulantes da nave --altamente acostumado ao espaço por ter
nascido em uma nave cargueira da Terra. Ele estimularia seu amigo
Tucker, com quem desenvolveria um relacionamento rapidamente, a
procurar novas formas de explorar o espaço e se divertir. Um ano
depois, nada disso acabou acontecendo. Em "Broken
Bow", uma pista desse relacionamento foi deixada, com
Mayweather e Tucker conversando na cena em que o piloto apresenta
ao engenheiro o tal do "sweet spot", onde a gravidade
artificial da nave se invertia e a dupla podia se sentar no teto.
A cena, como não seria difícil de prever, foi uma das piores
coisas do piloto da série. Os atores claramente não demonstraram
a química necessária e a situação patética criada para os
dois no piloto não ajudou nada a inspirar a tal
"amizade".
Com o abandono desse relacionamento, quem ficou órfão foi o
pobre Mayweather, que está até agora se mostrando o verdadeiro
"coitado" da série. A amizade foi reconstruída para
Tucker e Malcolm Reed. O armeiro da nave, diga-se de passagem, se
mostrou muito mais adequado ao conceito original, e a química de
Dominic Keating com Connor Trinneer funcionou maravilhosamente. O
elo final foi forjado em "Shuttlepod
One", em que a dupla, sozinha em uma pequena nave,
precisa levar um episódio inteiro nas costas, à base de muito
carisma e diálogos afiados.
Mayweather,
em compensação, perdeu até sua característica de
"explorador experiente". O pobre piloto parece na
verdade o mais ingênuo e incapaz dos tripulantes da nave. Não só
ele se mostra totalmente inseguro em quase todos os momentos
(culpa até do ator Anthony Montgomery, que não conseguiu
imprimir nenhuma qualidade a seu personagem; Keating, por outro
lado, trabalhou nos detalhes nos episódios iniciais e foi
premiado com mais destaques na segunda metade da temporada,
mostrando como um ator é parte importante da forma que a série
acaba tomando), como chega a parecer um pateta completo, às
vezes. Em "Breaking
the Ice", por exemplo, o alferes, que devia estar
acostumado à baixa gravidade, sofre uma queda na superfície de
um cometa, contundindo-se! E, ao que parece, ele sofrerá uma nova
queda mais adiante, em "Two
Days and Two Nights", desta vez em uma escalada. É
melhor nosso piloto ficar longe dos esportes radicais por
enquanto...
Outra
coisa que acabou não saindo conforme os planos de Berman e Braga
para os personagens foi a relação de Archer e Tucker.
Originalmente, os produtores pensavam em Archer como um guia, um
tutor, uma espécie de modelo para Tucker. O engenheiro teria seu
capitão como inspiração --algo que ele "queira ser quando
crescer". Uma temporada depois, o que se viu não foi essa
relação patriarcal, mas algo muito mais no sentido de uma
profunda amizade com igualdade de voz para os dois personagens.
Tucker vê Archer como um amigo, mas certamente não como um ídolo
ou um pai. Os dois se tratam colocando um ao outro no mesmo nível
--o que funcionou muito bem, criando um dos melhores e mais
entusiasmantes relacionamentos da série.
A relação patriarcal acabou ficando para Archer e Mayweather. Se
de saída os produtores pretendiam criar alguma tensão entre os
dois, uma vez que Mayweather, apesar de estar inferiormente
colocado na Enterprise, estaria familiarizado com as
peculiaridades e as dificuldades da vida no espaço, ficou claro
após alguns episódios que essa situação não iria decolar.
Mayweather então passou a ser apenas o "maior fã" do
capitão, e a relação dos dois parece com uma de pai e filho.
Nos
dois principais relacionamentos de amizade formados para a série,
encontramos um denominador comum: Trinneer e seu Tucker. Não é
mera coincidência; tirando John Billingsley (Phlox), cujo
personagem não permite esse tipo de interação com os demais
tripulantes, Trinneer foi o ator que melhor soube encarnar seu
personagem e incluir nele características suas. Certamente isso
facilitou na hora de os escritores da série encontrarem a
"voz" do personagem, o que por sua vez estimulou o
desenvolvimento de relacionamentos em torno dele.
Até em situações em que o outro personagem não está ainda bem
resolvido na tela, como a Vulcana T'Pol, Tucker consegue se sair
bem. T'Pol pode ser uma personagem ainda um pouco mal definida,
mas certamente já sabemos o que esperar dela quando o assunto é
o engenheiro. Mais uma vez, o mérito é de Trinneer e dos
roteiristas.
Além de T'Pol, Hoshi Sato e o capitão Jonathan Archer vão
merecer um melhor polimento na próxima temporada. A primeira
ainda sofre com uma certa inconstância em sua voz Vulcana --o que
não é culpa de Jolene Blalock, que está carregando bem o
material que lhe é dado, mas dos roteiristas e produtores, que
ainda não encontraram o equilíbrio certo para T'Pol.
Hoshi Sato tem uma personalidade já bastante definida, mas falta
acertar um pouco mais sua rede de relacionamentos com os demais
tripulantes. Sua relação com Phlox parece bastante interessante
(vista em relances, principalmente em "Dear
Doctor"), mas o maior potencial talvez resida em
Mayweather. Aparentemente, a dupla tem uma certa afinidade na
ponte, talvez pelo fato de serem os oficiais seniores menos
experientes e mais jovens, que poderia ser melhor trabalhada. O
piloto, que anda sendo sistematicamente ignorado nos roteiros,
poderia muito bem se beneficiar de um maior contato com Hoshi.
Falta, entretanto, algum episódio que sirva de veículo para o
relacionamento, a exemplo do que "Shuttlepod
One" fez por Tucker e Reed.
O capitão Archer está com alguns problemas. Sua voz
definitivamente foi capturada em "Broken
Bow", onde ele esteve fantástico, mas depois acabou
perdida em meio aos outros episódios. Ele começou a série como
um sujeito determinado, teimoso, agressivo e inteligente, e agora
parece mais um cachorrinho lambão, querendo agradar todos os
alienígenas que vê pela frente. O resultado é a série interminável
de surras que o capitão vem levando (duas bem notórias estão em
"The Andorian Incident"
e "Acquisition").
O
próprio Brannon Braga confessou recentemente que a pancadaria
desenfreada contra Archer é proposital e que os produtores querem
com isso fazer o capitão aprender com os próprios erros e ir
amadurecendo aos poucos para sua condição de líder, mas o fato
é que não está funcionando. Embora tenha momentos de destaque e
seja um personagem muito simpático, simpatia e carisma não
bastam --Archer é até agora o mais fraco dos capitães de Jornada
nas Estrelas.
É com essa situação que os produtores precisarão lidar na próxima
temporada. Meia tripulação já parece bastante resolvida e
amadurecida, com as caracterizações sólidas de Tucker, Phlox e
Reed. Outros três precisam de mais trabalho, T'Pol, Hoshi e
Archer. E quanto ao Mayweather... bom, antes de mais nada, os
roteiristas precisam lembrar que ele existe. Mas ainda há esperança
para todos, inclusive o piloto da Enterprise.
Ah, as dores de crescimento de uma série de televisão... Para
quem não sabe do que estou falando, experimente tirar o mofo das
suas fitas do primeiro ano de A Nova Geração.
Salvador
Nogueira, jornalista, escreve regularmente
sobre
a nova série de Jornada nas Estrelas para o Trek
Brasilis
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