Num esforço de comunicação com o
capitão Tamariano, Picard tenta contar-lhe uma das aventuras do
poema épico Gilgamesh, escrito por volta de 1900
a.C. Para entender o contexto no qual esse poema foi escrito, é
preciso rever um pouco de história. A segunda civilização mais
antiga do mundo (a primeira é a egípcia) foi a mesopotâmica,
que começou no vale dos rios Tigre e Eufrates (na região do
atual Iraque), por volta de 3.500 a.C. No passado, essa civilização
foi chamada de babilônica ou babilônico-assíria. Sabe-se hoje,
porém, que não foi fundada nem pelos babilônios nem pelos assírios,
mas por um povo anterior, os sumérios. Por isso, hoje os
historiadores preferem referir-se a toda a civilização como
"mesopotâmica".
Os sumérios, pioneiros dessa
civilização, falavam uma língua sem relação com nenhuma língua
conhecida por nós. Fundaram várias cidades entre 2800 e 2340
a.C., entre as quais as mais conhecidas são Ur, Uruk e Lagash. O
período de predomínio sumério foi interrompido pela invasão de
Sargão de Acádia, que reinou aproximadamente entre 2334 e 2279
a.C. Os acadianos eram semitas, povos do Oriente Próximo que
falavam línguas aparentadas entre si (os principais povos semíticos
de hoje são os árabes e os judeus). Sob a chefia de Sargão, os
acadianos fundaram o primeiro grande império militar na Mesopotâmia.
Mas esse império entrou em declínio por volta de 2200 a.C.,
suplantado por um renascimento sumeriano, liderado pela cidade de
Ur.
Esse
período de revivescência dos sumerianos durou pouco. Por volta
de 2200 a.C., os amorreus, outra tribo de semitas, conquistaram as
cidades sumérias e fundaram um novo império na Mesopotâmia.
Como os amorreus transformaram o povo de Babilônia na capital de
seu império, são chamados de antigos babilônios, para
distingui-los dos neo-babilônios ou caldeus, que ocuparam o vale
do Tigre-Eufrates muito mais tarde.
A ascensão dos antigos babilônios
inaugurou uma segunda fase importante da civilização mesopotâmica,
após o período sumeriano. Os babilônios estabeleceram um estado
autocrático e durante o reinado de seu mais famoso rei, Hamurabi
(1792-1750 a.C.), estenderam seu domínio até a Assíria. Foi
neste reinado que se escreveu o famoso Código de Hamurabi,
o primeiro código de leis de que se tem notícia. Mas depois
dessa época o império entrou em declínio, até ser finalmente
derrubado pelos cassitas, aproximadamente em 1550 a.C. Os cassitas
foram sucedidos pelos assírios (cujo auge ocorreu entre os séculos
8 e 7 a.C.), que, por sua vez, foram derrubados pelos caldeus. O
mais famoso rei dos caldeus (ou neo-babilônios) foi Nabucodonosor
(que reinou entre 606 e 562 a.C.) --aquele que construiu os
"jardins suspensos da Babilônia", uma das sete
maravilhas do mundo antigo. Os caldeus foram conquistados pelos
persas em 539 a.C., sob o comando de Ciro, o Persa.
Gilgamesh é um híbrido das
culturas suméria e babilônia. Seu herói, Gilgamesh (veja a
estatueta de pedra, encontrada nas escavações da cidade de
Khorsabad, no Iraque), era uma figura histórica real --um rei
sumério que governou Uruk, na Babilônia, às margens do rio
Eufrates, por volta de 2600 a.C. Suas façanhas estimularam tanto
a imaginação de seus contemporâneos que eles começaram a
contar histórias fantásticas sobre ele. Narradas e renarradas ao
longo dos séculos em língua suméria, as histórias tornaram-se
cada vez mais incríveis, até que se transformaram em pura ficção.
Essas narrativas eram tão interessantes que os vários
conquistadores semitas passaram a traduzi-las para seus próprios
dialetos. O épico sobrevivente Gilgamesh representa o estágio
final desse processo. Por volta de 1900 a.C. um poeta semita (um
antigo babilônio) alinhavou cinco das histórias de Gilgamesh
numa estrutura épica, e é esta versão do magnífico poema que
conhecemos hoje. O poema, escrito em tábulas de argila,
sobreviveu não apenas na língua acadiana (aparentada do
hebraico), mas também em hitita, falado na Ásia Menor (língua
derivada do indo-europeu, família de línguas que inclui o grego,
o inglês e o português).
Esta é a tábula 11, que conta a história do Dilúvio. Versão
escrita na língua acadiana.
As línguas citadas
acima eram registradas na famosa escrita cuneiforme, criada
pelos sumérios, que consiste em caracteres em forma de cunha,
gravados em tábulas de argila com um junco de ponta quebrada. A
princípio um sistema pictográfico, gradualmente se transformou
num conjunto de sinais silábicos e fonéticos, num total de
aproximadamente 350. Nenhum alfabeto jamais se derivou dele, mas a
escrita cuneiforme ainda assim tornou-se o meio corrente para
transações comerciais em todo o Oriente Próximo entre mais ou
menos 3000 e 500 a.C. A versão mais completa de Gilgamesh
deriva de doze tábulas de pedra, em língua acadiana, encontradas
no século 19 nas ruínas da biblioteca de Assurbanipal, rei da
Assíria entre 668 e 627 a.C., em Nínive (hoje Kuyunjik, no
Iraque). A biblioteca foi destruída pelos persas em 2612 a.C. e
todas as tábulas estão danificadas. As lacunas existentes foram
preenchidas parcialmente por vários fragmentos de tábulas
encontradas em outros lugares na Mesopotâmia. Das três mil
linhas do poema, somente duas mil se conservaram e foram
decifradas. As tábulas trazem o nome de seu autor,
Shin-eqi-unninni, fato raro no mundo antigo. É o autor mais
antigo a quem podemos chamar pelo nome!
Nessa versão, o poema começa com
um prólogo elogioso a Gilgamesh, parte divino e parte humano,
grande construtor e guerreiro, conhecedor de todas as coisas da
terra e mar. A fim de conter o governo cruel de Gilgamesh, o deus
Anu criou Enkidu, um homem selvagem que vivia entre os animais. Em
pouco tempo, porém, Enkidu foi iniciado no modo de vida urbano e
partiu para Uruk, onde Gilgamesh o esperava. A tábula 2 descreve
um teste de força entre os dois homens, do qual Gilgamesh sai
vitorioso. Dali para frente, Enkidu torna-se amigo e companheiro
de Gilgamesh. Nas tábulas 3 a 5, os dois homens são enviados a
Huwawa, o guardião divino de uma remota floresta (veja foto
abaixo), mas o resto da história não está registrado nos
fragmentos das tábulas.
Cabeça em terracota do guardião da floresta Huwawa.
Na tábula 6 Gilgamesh, que
retornara a Uruk, rejeita a proposta de casamento de Ishtar, a
deusa do amor. Então, com a ajuda de Enkidu, mata o touro divino
que Ishtar havia enviado para destruí-lo (esta é a história que
Picard conta ao capitão Tamariano). A tábula 7 começa com
Enkidu narrando um sonho no qual os deuses Anu, Ea e Shamash
decidem que ele deve morrer por ter matado o touro. Enkidu então
adoece e morre. O lamento de Gilgamesh pela morte do amigo e o
funeral de Enkidu são narrados na tábula 8. Depois disso,
Gilgamesh faz uma perigosa viagem (tábulas 9 e 10) à procura de
Utnapishtim e sua mulher, sobreviventes do Dilúvio Babilônico, a
fim de aprender com ele como escapar da morte. Ele finalmente
encontra o velho casal, que lhe conta a história do Dilúvio
(muitos dos elementos dessa história são semelhantes à de Noé,
contida no Velho Testamento, inclusive o fato de o casal ter-se
salvo construindo uma arca). Utnapishtim lhe mostra também
onde encontrar uma planta que traria de volta sua juventude (tábula
11). Mas depois que Gilgamesh obtém a planta, ela é comida por
uma serpente. Por esta razão, segundo o épico, é que as
serpentes rejuvenescem a cada troca de pele. Infeliz, Gilgamesh
retorna a Uruk. Um apêndice do poema, a tábula 12 relata a perda
dos objetos chamados pukku e mikku (talvez
"tambor" e "baqueta"), dados a Gilgamesh por
Ishtar. O épico termina com o retorno do espírito de Enkidu, que
promete recuperar os objetos e depois faz um terrível relato
sobre o mundo dos mortos.
Gilgamesh é considerado um
dos maiores épicos de todos os tempos, à altura da Ilíada
(que narra a Guerra de Tróia) e da Odisséia (sobre as
viagens de Ulisses), ambos atribuídos ao poeta grego Homero, que
teria vivido por volta de 850 a.C. (aliás, é uma obra de Homero
--em grego!-- que o capitão Picard está lendo ao final do episódio).
Picard em poucas horas consegue decifrar todo o sistema da
linguagem utilizada pelos Tamarianos. Na vida real, as coisas não
são tão fáceis assim. Apenas em 1872 o mundo moderno e
ocidental teve conhecimento da obra de Gilgamesh, após várias
escavações arqueológicas empreendidas na região do Oriente Médio
e a árdua decifração de numerosas inscrições (só a
biblioteca de Assurbanipal, de Nínive, forneceu 22 mil tábulas
gravadas) -- ou seja, quase quatro milênios depois de o poema ter
sido escrito!
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