Texto de
Susana Lopes de Alexandria


Gilgamesh: Picard fala de um dos
maiores épicos de todos os tempos


 









 

 

 
Num esforço de comunicação com o capitão Tamariano, Picard tenta contar-lhe uma das aventuras do poema épico Gilgamesh, escrito por volta de 1900 a.C. Para entender o contexto no qual esse poema foi escrito, é preciso rever um pouco de história. A segunda civilização mais antiga do mundo (a primeira é a egípcia) foi a mesopotâmica, que começou no vale dos rios Tigre e Eufrates (na região do atual Iraque), por volta de 3.500 a.C. No passado, essa civilização foi chamada de babilônica ou babilônico-assíria. Sabe-se hoje, porém, que não foi fundada nem pelos babilônios nem pelos assírios, mas por um povo anterior, os sumérios. Por isso, hoje os historiadores preferem referir-se a toda a civilização como "mesopotâmica".

Os sumérios, pioneiros dessa civilização, falavam uma língua sem relação com nenhuma língua conhecida por nós. Fundaram várias cidades entre 2800 e 2340 a.C., entre as quais as mais conhecidas são Ur, Uruk e Lagash. O período de predomínio sumério foi interrompido pela invasão de Sargão de Acádia, que reinou aproximadamente entre 2334 e 2279 a.C. Os acadianos eram semitas, povos do Oriente Próximo que falavam línguas aparentadas entre si (os principais povos semíticos de hoje são os árabes e os judeus). Sob a chefia de Sargão, os acadianos fundaram o primeiro grande império militar na Mesopotâmia. Mas esse império entrou em declínio por volta de 2200 a.C., suplantado por um renascimento sumeriano, liderado pela cidade de Ur.

Estatueta de GilgameshEsse período de revivescência dos sumerianos durou pouco. Por volta de 2200 a.C., os amorreus, outra tribo de semitas, conquistaram as cidades sumérias e fundaram um novo império na Mesopotâmia. Como os amorreus transformaram o povo de Babilônia na capital de seu império, são chamados de antigos babilônios, para distingui-los dos neo-babilônios ou caldeus, que ocuparam o vale do Tigre-Eufrates muito mais tarde.

A ascensão dos antigos babilônios inaugurou uma segunda fase importante da civilização mesopotâmica, após o período sumeriano. Os babilônios estabeleceram um estado autocrático e durante o reinado de seu mais famoso rei, Hamurabi (1792-1750 a.C.), estenderam seu domínio até a Assíria. Foi neste reinado que se escreveu o famoso Código de Hamurabi, o primeiro código de leis de que se tem notícia. Mas depois dessa época o império entrou em declínio, até ser finalmente derrubado pelos cassitas, aproximadamente em 1550 a.C. Os cassitas foram sucedidos pelos assírios (cujo auge ocorreu entre os séculos 8 e 7 a.C.), que, por sua vez, foram derrubados pelos caldeus. O mais famoso rei dos caldeus (ou neo-babilônios) foi Nabucodonosor (que reinou entre 606 e 562 a.C.) --aquele que construiu os "jardins suspensos da Babilônia", uma das sete maravilhas do mundo antigo. Os caldeus foram conquistados pelos persas em 539 a.C., sob o comando de Ciro, o Persa.

Gilgamesh é um híbrido das culturas suméria e babilônia. Seu herói, Gilgamesh (veja a estatueta de pedra, encontrada nas escavações da cidade de Khorsabad, no Iraque), era uma figura histórica real --um rei sumério que governou Uruk, na Babilônia, às margens do rio Eufrates, por volta de 2600 a.C. Suas façanhas estimularam tanto a imaginação de seus contemporâneos que eles começaram a contar histórias fantásticas sobre ele. Narradas e renarradas ao longo dos séculos em língua suméria, as histórias tornaram-se cada vez mais incríveis, até que se transformaram em pura ficção. Essas narrativas eram tão interessantes que os vários conquistadores semitas passaram a traduzi-las para seus próprios dialetos. O épico sobrevivente Gilgamesh representa o estágio final desse processo. Por volta de 1900 a.C. um poeta semita (um antigo babilônio) alinhavou cinco das histórias de Gilgamesh numa estrutura épica, e é esta versão do magnífico poema que conhecemos hoje. O poema, escrito em tábulas de argila, sobreviveu não apenas na língua acadiana (aparentada do hebraico), mas também em hitita, falado na Ásia Menor (língua derivada do indo-europeu, família de línguas que inclui o grego, o inglês e o português).


Esta é a tábula 11, que conta a história do Dilúvio. Versão escrita na língua acadiana.

As línguas citadas acima eram registradas na famosa escrita cuneiforme, criada pelos sumérios, que consiste em caracteres em forma de cunha, gravados em tábulas de argila com um junco de ponta quebrada. A princípio um sistema pictográfico, gradualmente se transformou num conjunto de sinais silábicos e fonéticos, num total de aproximadamente 350. Nenhum alfabeto jamais se derivou dele, mas a escrita cuneiforme ainda assim tornou-se o meio corrente para transações comerciais em todo o Oriente Próximo entre mais ou menos 3000 e 500 a.C. A versão mais completa de Gilgamesh deriva de doze tábulas de pedra, em língua acadiana, encontradas no século 19 nas ruínas da biblioteca de Assurbanipal, rei da Assíria entre 668 e 627 a.C., em Nínive (hoje Kuyunjik, no Iraque). A biblioteca foi destruída pelos persas em 2612 a.C. e todas as tábulas estão danificadas. As lacunas existentes foram preenchidas parcialmente por vários fragmentos de tábulas encontradas em outros lugares na Mesopotâmia. Das três mil linhas do poema, somente duas mil se conservaram e foram decifradas. As tábulas trazem o nome de seu autor, Shin-eqi-unninni, fato raro no mundo antigo. É o autor mais antigo a quem podemos chamar pelo nome!

Nessa versão, o poema começa com um prólogo elogioso a Gilgamesh, parte divino e parte humano, grande construtor e guerreiro, conhecedor de todas as coisas da terra e mar. A fim de conter o governo cruel de Gilgamesh, o deus Anu criou Enkidu, um homem selvagem que vivia entre os animais. Em pouco tempo, porém, Enkidu foi iniciado no modo de vida urbano e partiu para Uruk, onde Gilgamesh o esperava. A tábula 2 descreve um teste de força entre os dois homens, do qual Gilgamesh sai vitorioso. Dali para frente, Enkidu torna-se amigo e companheiro de Gilgamesh. Nas tábulas 3 a 5, os dois homens são enviados a Huwawa, o guardião divino de uma remota floresta (veja foto abaixo), mas o resto da história não está registrado nos fragmentos das tábulas.

 
Cabeça em terracota do guardião da floresta Huwawa.

Na tábula 6 Gilgamesh, que retornara a Uruk, rejeita a proposta de casamento de Ishtar, a deusa do amor. Então, com a ajuda de Enkidu, mata o touro divino que Ishtar havia enviado para destruí-lo (esta é a história que Picard conta ao capitão Tamariano). A tábula 7 começa com Enkidu narrando um sonho no qual os deuses Anu, Ea e Shamash decidem que ele deve morrer por ter matado o touro. Enkidu então adoece e morre. O lamento de Gilgamesh pela morte do amigo e o funeral de Enkidu são narrados na tábula 8. Depois disso, Gilgamesh faz uma perigosa viagem (tábulas 9 e 10) à procura de Utnapishtim e sua mulher, sobreviventes do Dilúvio Babilônico, a fim de aprender com ele como escapar da morte. Ele finalmente encontra o velho casal, que lhe conta a história do Dilúvio (muitos dos elementos dessa história são semelhantes à de Noé, contida no Velho Testamento, inclusive o fato de o casal ter-se salvo construindo uma arca).  Utnapishtim lhe mostra também onde encontrar uma planta que traria de volta sua juventude (tábula 11). Mas depois que Gilgamesh obtém a planta, ela é comida por uma serpente. Por esta razão, segundo o épico, é que as serpentes rejuvenescem a cada troca de pele. Infeliz, Gilgamesh retorna a Uruk. Um apêndice do poema, a tábula 12 relata a perda dos objetos chamados pukku e mikku (talvez "tambor" e "baqueta"), dados a Gilgamesh por Ishtar. O épico termina com o retorno do espírito de Enkidu, que promete recuperar os objetos e depois faz um terrível relato sobre o mundo dos mortos.

Gilgamesh é considerado um dos maiores épicos de todos os tempos, à altura da Ilíada (que narra a Guerra de Tróia) e da Odisséia (sobre as viagens de Ulisses), ambos atribuídos ao poeta grego Homero, que teria vivido por volta de 850 a.C. (aliás, é uma obra de Homero --em grego!-- que o capitão Picard está lendo ao final do episódio). Picard em poucas horas consegue decifrar todo o sistema da linguagem utilizada pelos Tamarianos. Na vida real, as coisas não são tão fáceis assim. Apenas em 1872 o mundo moderno e ocidental teve conhecimento da obra de Gilgamesh, após várias escavações arqueológicas empreendidas na região do Oriente Médio e a árdua decifração de numerosas inscrições (só a biblioteca de Assurbanipal, de Nínive, forneceu 22 mil tábulas gravadas) -- ou seja, quase quatro milênios depois de o poema ter sido escrito!