Texto de
Susana Lopes de Alexandria


Oz e Shakespeare inspiram episódio


 









 

 

 

O andróide Data, por sua vontade de tornar-se humano, freqüentemente é comparado a dois personagens do universo infantil: Pinóquio, o boneco de madeira que queria ser gente, e o Homem de Lata, personagem do filme O Mágico de Oz que sonhava ter um coração para humanizar-se.

No episódio "The Schizoid Man", o dr. Ira Graves compara Data ao Homem de Lata e assobia o tempo todo a música cantada pelo personagem no filme, em que ele fala como seria bom ter um coração e poder sentir emoções. É a mesma música que Data assobia depois de ter seu corpo "possuído" pelo dr. Graves.


O Homem de Lata (último à dir.) numa cena de O Mágico de Oz

Veja abaixo a letra da canção (no original e uma tradução livre). Para ouvir a melodia, clique aqui (Midi, 17 KB).

Heart

When a man's an empty kettle he should be on his mettle,
And yet I'm torn apart.
Just because I'm presumin' that I could be kind-a-human,
If I only had heart.
I'd be tender - I'd be gentle and awful sentimental
Regarding Love and Art.
I'd be friends with the sparrows ... and the boys who shoots the arrows
If I only had a heart.
Picture me - a balcony. Above a voice sings low.
Wherefore art thou, Romeo? I hear a beat....
How sweet.
Just to register emotion, jealousy - devotion,
And really feel the part.
I could stay young and chipper and I'd lock it with a zipper,
If I only had a heart.

Coração

Quando um homem é uma chaleira vazia, ele deveria meter-se em brios
No entanto, estou arrasado.
Só porque acho que eu poderia ser humano
Se eu tivesse um coração.
Eu seria carinhoso, gentil, tremendamente sentimental
No que se refere ao Amor e à Arte.
Seria amigo dos pardais... e dos meninos que atiram neles com estilingues
Se eu tivesse um coração.
Imagine - eu numa sacada, e uma voz canta baixinho
"Por que é tu Romeu? Ouço um batimento..."
Quanta doçura.
Registrar emoção, ciúme, devoção
E realmente sentir o papel 

(ele refere-se à peça "Romeu e Julieta", de Shakespeare).
Eu poderia permanecer alegre e jovial,
E o fecharia com um zíper,
Se eu tivesse um coração.

 

Picard cita seu autor favorito

Quando Picard finalmente percebe que Data está "possuído" pelo dr. Graves, ele cita alguns versos de um soneto do poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare: "Enquanto houver viventes nesta lida / Há de viver meu verso e te dar vida" (So long as men can breathe or eyes can see, / So long lives this, and this gives live to thee.)

Estes são os dois versos finais do soneto 18, um dos mais famosos de Shakespeare. Neste soneto, ele elogia a beleza de alguém (provavelmente, uma mulher. Sim, há rumores de que Shakespeare era homossexual...), procurando algo na natureza que se compare a essa beleza. 

Ele decide compará-la a um dia de verão, mas logo desiste da comparação, pois o semblante de sua musa é mais "afável e belo". E nem sempre os dias de verão são agradáveis, pois algumas vezes venta e outras vezes "a luz do céu calcina", fazendo um calor insuportável.  

Além disso, o verão dura muito pouco (pelo menos na Inglaterra de Shakespeare...), e sua bela amada viverá para sempre. Mas como, se ninguém é imortal? É aí que entram os dois versos finais. Ela viverá "enquanto houver homens vendo e respirando" (So long as men can breathe or eyes can see), que possam ler as palavras que ele dedicou a ela neste soneto:

"Enquanto houver viventes nesta lida,
Há de viver meu verso e te dar vida."

"So long as men can breathe or eyes can see,
So long lives this, and this gives live to thee."


William Shakespeare

O roteirista do episódio não colocou esses versos na boca do personagem do capitão por acaso. Há uma óbvia relação entre este soneto de Shakespeare, em que o poeta tenta imortalizar sua amada através de seus versos, e a história do dr. Graves do episódio, que deseja tornar sua amada literalmente imortal, propondo construir-lhe um corpo andróide como o que ele roubou de Data. 

Leia abaixo o soneto no original e numa tradução feita por um poeta, mantendo as rimas também em português. Uma curiosidade: no episódio "Whom Gods Destroy", da Série Clássica, aquela maluquinha verde, da raça Órion, recita um poema alegando ser de sua própria autoria e é desmentida por outro personagem, que revela a verdadeira autoria - Shakespeare. O poema que ela recita é este mesmo soneto.

XVIII

Shall I compare thee to a summer's day?
Thon art more lovely and more temperate.
Rough winds do shake the darling buds of May,
And summer's lease hath all too short a date.

Sometime too hot the eye of heaven shines,
And often is his gold complexion dimmed,
And every fair from fair sometime declines,
By chance or nature's changing course untrimmed;

But thy eternal summer shall not fade
Nor lose possession of that fair thou ow'st,
Nor shall death brag thou wander'st in his shade
When in eternal lines to time thou grow'st.

So long as men can breathe or eyes can see,
So long lives this, and this gives live to thee.

Soneto 18

Devo igualar-te a um dia de verão?
Mais afável e belo é o teu semblante:
O vento esfolha Maio ainda em botão,
Dura o termo estival um breve instante.

Muitas vezes a luz do céu calcina,
Mas o áureo tom também perde a clareza:
De seu belo a beleza enfim declina,
Ao léu ou pelas leis da Natureza;

Só teu verão eterno não se acaba
Nem a posse de sua formosura,
De impor-te a sombra a Morte não se gaba
Pois que esta estrofe eterna ao Tempo dura.

Enquanto houver viventes nesta lida,
Há de viver meu verso e te dar vida.

Tradução de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes
Pequeno Dicionário da Literatura Universal. Editora Abril, 1981.