Texto de
Susana Lopes de Alexandria


Macbeth e Hamlet inspiram diálogos


 









 

 

 

Riker e Q no episódio "Hide and Q"O episódio "Hide and Q" trata de grandes questões, como a natureza ambiciosa do ser humano, que está sempre em busca da superação de seus limites, e o perigo do poder absoluto - como o poder concedido a William Riker pela entidade Q. Para expressar e ilustrar essas grandes questões, nada como recorrer a um grande autor como o dramaturgo e poeta inglês William Shakespeare, que teve seus versos citados por Q, pelo capitão Picard e pelo andróide Data.

"A vida é uma história contada por um louco, cheia de som e fúria, significando nada"

O primeiro a citar Shakespeare foi Q. No gabinete do capitão, sentado em sua cadeira e com um volume das obras completas de Shakespeare nas mãos, Q tenta convencer Picard de que a vida humana é "uma história contada por um louco, cheia de som e fúria, significando nada". Esses versos são da peça Macbeth, que trata de questões como o poder, a cobiça e a loucura. Vamos fazer um breve resumo da história para saber exatamente de qual cena e de qual contexto essas palavras foram retiradas.

Quando Duncan era rei da Escócia, lá vivia um barão chamado Macbeth. Parente próximo do rei e muito estimado na corte por suas habilidades nas guerras, Macbeth derrotara ainda recentemente um exército rebelde poderosamente auxiliado pelas tropas da Noruega. No caminho de volta dessa grande batalha, os dois generais escoceses Macbeth e Banquo foram surpreendidos pela aparição de três bruxas que, além de lhes chamarem pelo nome, fizeram espantosas profecias: Macbeth seria rei da Escócia, mas os descendentes de Banquo é que herdariam a coroa. Depois disso, as bruxas dissiparam-se no ar.

William Shakespeare - aqui numa brincadeira, com a insígnia da Frota.Apesar das advertências de Banquo, que não confiava em filhos das trevas, as previsões das feiticeiras haviam calado tão fundo no espírito de Macbeth que, a partir daquele momento, seus pensamentos concentraram-se em descobrir meios de alcançar o trono da Escócia.

Macbeth tinha uma esposa, Lady Macbeth, a quem comunicou o estranho acontecimento. Mulher má e ambiciosa, convenceu o hesitante marido de que o assassínio do rei era um passo absolutamente necessário para a realização da profecia. 

Aproveitando a presença do rei Duncan, que, junto com seus filhos Malcolm e Donalbain, passaria a noite em seu castelo, o casal Macbeth decidiu pôr em prática seu diabólico plano. Macbeth estava vacilante, mas, incitado pela mulher, foi até o quarto de Duncan e o matou com a primeira apunhalada. 

Na manhã seguinte o crime é descoberto e, apesar das demonstrações de pesar do casal anfitrião, caem sobre Macbeth as suspeitas do crime. Os filhos do rei assassinado, Malcolm e Donalbain, temendo uma conspiração, fogem do país. Tendo assim desertado os sucessores naturais do rei, Macbeth é coroado como herdeiro imediato e desse modo cumpriu-se literalmente a previsão das bruxas. 

Entretanto, Macbeth e a rainha não se esqueceram da outra parte da profecia das feiticeiras, segundo a qual os filhos de Banquo, e não os seus, reinariam depois dele. Macbeth prepara então um banquete para homenageá-los, mas manda assassinos contratados matá-los numa emboscada. Banquo morre, mas seu filho Fleance consegue escapar. Isto provoca acessos em Macbeth, que durante a recepção deixa escapar palavras comprometedoras por ser atormentado pelo espectro de Banquo.

Perseguido por alucinações, Macbeth decide consultar as bruxas novamente. As entidades o advertem para se prevenir contra o barão de Fife. Macbeth, que já estava desconfiado de Macduff, barão de Fife, agradece a advertência. Informado em seguida de que Macduff fugira para a Inglaterra onde, junto com Malcolm, liderava um exército cedido pelo rei, Macbeth se vinga, mandando matar sua mulher e seus dois filhos, estendendo a carnificina a quantos se gabassem do menor parentesco com Macduff. Este, ao receber tal notícia, apressa a volta à Escócia, ansioso por vingança.

Macbeth vai perdendo pouco a pouco os aliados, horrorizados com tantas atrocidades. Enquanto isso, a rainha, sua única sócia no mal, perde a sanidade, atormentada pela culpa, até que morre. Ao receber a notícia, Macbeth pondera, num amargo monólogo, sobre o aspecto frágil e efêmero da vida. É desta cena, uma das passagens mais famosas da peça, que Q cita para Picard.  

She should have died hereafter;

É morta. Não devia ser agora.

There would have been a time for such a word. -

Sempre haveria tempo para se ouvir essa palavra. -

Tomorrow, and tomorrow, and tomorrow,

Amanhã, e amanhã e amanhã

Creeps in this petty pace from day to day,

O amanhã se arrasta nesse passo dia a dia,

To the last syllable of recorded time;

Até a última sílaba do tempo memorável;

And all our yesterdays have lighted fools

E todos os nossos ontens só conduziriam tolos

The ways to dusty death.

No caminho da morte poeirenta.

Out, out, brief candle!

Apaga, apaga a breve vela!

Life's but a walking shadow; a poor player,

A vida é uma sombra que passa, um mau ator

That struts and frets his hour upon the stage,

Que gasta sua pompa pelo palco

And then is heard no more: It is a tale

E não se escuta mais: é uma história

Told by na idiot, full of sound and fury,

Contada por um louco, cheia de som e fúria,

Signifying nothing. 

Significando nada.

(Ato 5, cena 5)

 

Cena de "All Our Yesterdays", da Série Clássica.

O leitor atento vai perceber que o título do episódio "All Our Yesterdays" ("Todos os Nossos Ontens") da Série Clássica  também foi retirado deste trecho.

Concluindo, Macbeth agora está quase só. Começa a desprezar a vida e a desejar a morte. Mas a aproximação do exército de Macduff desperta nele a velha coragem e ele decide morrer lutando. É o que realmente acontece. Após um violento combate pessoal, Macbeth é derrotado por Macduff, que lhe corta a cabeça e a oferece de presente ao jovem e legítimo rei, Malcolm.

Como se viu, as palavras citadas por Q foram proferidas na peça de Shakespeare por Macbeth, um personagem amargurado pela solidão e pelo horror, circunstâncias criadas por ele mesmo.

 

"Sê fiel a ti mesmo"

Mas Picard, profundo conhecedor da obra de Shakespeare, rebate Q citando Hamlet, outra tragédia de Shakespeare. Além de Picard, o próprio Q e o andróide Data também citam trechos desta tragédia. Novamente, vamos ver exatamente de que contexto estas citações foram retiradas. 

A peça conta a história do jovem Hamlet, príncipe da Dinamarca, apaixonado pela jovem Ofélia, filha de Polônio, velho conselheiro de Estado, e irmã de Laertes, amigo do príncipe. 

Kenneth Branagh dirigiu e estrelou Hamlet em 1996A história começa com o tormento de Hamlet com a morte de seu pai, rei da Dinamarca, e pelo anúncio do casamento da viúva, sua mãe, com seu tio Cláudio, irmão do falecido rei, menos de dois meses após sua morte. Tendo quase certeza de que o pai fora assassinado por Cláudio, seu próprio irmão, Hamlet nem sequer compareceu ao casamento da mãe, cujo comportamento lhe parecia inaceitável. 

Enquanto isso, seu amigo Laertes, irmão de Ofélia, decide deixar a Dinamarca e partir para a França. Seu pai, Polônio, lhe dá vários conselhos no dia de sua partida, entre os quais o mais importante: "This above all - to thine own self be true" (Acima de tudo - sê fiel a ti mesmo - Ato I, cena 3). Foi este conselho que o andróide Data seguiu  - e citou literalmente, dizendo ser as palavras do autor preferido do capitão Picard - quando recusou a oferta de Riker para tornar-se humano.

 

"Que obra de arte é o homem!"

Brian Blessed interpreta o fantasma do pai de Hamlet, na versão Kenneth Branagh (1996). Algum tempo depois, chega aos ouvidos de Hamlet o rumor de que um fantasma parecidíssimo com o finado rei, seu pai, fora visto por guardas do palácio, à meia-noite, duas ou três noites seguidas. Horácio, amigo íntimo de Hamlet, confirmou a aparição, pois também o havia visto. Assombrado pelo relato, Hamlet decidiu montar guarda com os soldados, pois, pensou consigo, um fantasma não aparece à toa, mas deve ter algo a dizer. Quando veio a noite, postou-se de guarda com Horácio e Marcelo, um dos soldados, sobre a plataforma onde o espectro costumava aparecer. De repente, receberam o aviso de Horácio de que o fantasma estava chegando.

O espectro então chama Hamlet, que se mostra cauteloso a princípio. Gradativamente, porém, Hamlet perde o medo e segue o fantasma para um lugar mais afastado. Quando estão a sós, o espírito confessa que é o Pôster de Hamlet (1990) com Mel Gibson. Dirigido por Franco Zeffirelli. fantasma de seu pai, cruelmente assassinado por Cláudio, tio de Hamlet, que pretendia sucedê-lo em sua cama e em seu trono, exatamente como o jovem príncipe havia suspeitado. Um dia em que estava dormindo no jardim, como era seu hábito, o irmão traiçoeiro veio sorrateiramente e verteu um veneno terrível em seus ouvidos. Assim, o rei morreu dormindo. Agora, ele queria ver sua morte vingada pelo filho. Hamlet prometeu seguir as instruções do espectro, que logo desapareceu.

Hamlet ficou transtornado com a aparição do pai e temeu que seu comportamento levantasse a suspeita do tio. Hamlet resolveu então fingir, a partir daquele momento, que havia ficado louco, pois assim Cláudio não perceberia que o jovem príncipe estava tramando algo contra ele. A pretensa loucura de Hamlet preocupou sua mãe, que mandou chamar dois amigos do filho, Guildenstern e Rosencrantz, a fim de lhe fazerem companhia e lhe trazerem um pouco de alegria.

Hamlet, entretanto, após a terrível revelação do fantasma de seu pai, não via graça em mais nada na vida e não acreditava mais nos homens. Até mesmo o amor de Ofélia ele agora neglicenciava, pois julgava que a rude tarefa a que se propusera - vingar a morte de seu pai - não condizia com a futilidade da paixão. Foi numa conversa com seus dois amigos, Guildenstern e Rosencrantz, que Hamlet disse as palavras citadas pelo capitão Picard a Q:

 

I have of late - but wherefore I know not - lost all my mirth, forgone all custom of exercises; and, indeed, it goes so heavily with my disposition that this goodly frame, the earth, seems to me a sterile promontory; this most excellent canopy, the air, look you, this brave o'erchanging firmament, the majestical roof fretted with golden fire, - why, it appears no other thing to me than a foul and pestilent congregation os vapours.

Ultimamente - embora eu não saiba por quê - não tenho sentido alegria e abdiquei de meus exercícios costumeiros; na verdade, isto está afetando tanto minha disposição que esta bela estrutura, a Terra, não me parece mais do que um promontório sem vida; este excelente véu que nos protege, o ar, vejam só, este bravo firmamento, teto majestoso riscado pela luz dourada, - bem, não me parece mais do que uma congregação de vapores pestilentos.

What a piece of work is a man!

Que obra de arte é o homem!

how noble in reason!

como é nobre em entendimento!

how infinite in faculty!

como é infinito em suas faculdades!

in form and moving how express and admirable!

na forma e no movimento como é rápido e admirável!

in action how like an angel!

em ação é como um anjo!

in apprehension how like a god!

na compreensão é como um deus! 

the beauty of the world!

a beleza do mundo!

the paragon of animals!

o modelo de perfeição dos animais!

And yet, to me, what is this quintessence of dust?

E no entanto, para mim, o que é essa quintessência do pó?

man delights not me; no, nor woman either

o homem não me deleita; nem tampouco a mulher 

Hamlet está sendo irônico quando faz esses elogios ao homem, pois o jovem estava num estado de profunda decepção em face das revelações feitas pelo fantasma de seu pai. É por isso que o capitão, quando cita este trecho da peça para Q, afirma que o faz com convicção, embora Hamlet tenha sido irônico. Q fica irritado com esse orgulho de Picard pela humanidade e lhe atira o pesado livro com as obras completas de Shakespeare.

 

"A peça é a coisa"

Guildenstern e Rosencrantz lamentam o estado de melancolia de Hamlet, dizendo que então ele não seria capaz de divertir-se com uma companhia teatral que os dois haviam encontrado no caminho e que estava chegando para entretê-lo. A companhia era a mesma que já os visitara outras vezes no passado. 

Foi então que Hamlet teve uma brilhante idéia. Ouvira dizer que criaturas culpadas, assistindo a uma peça, são tão profundamente tocadas pelas cenas que acabam confessando todos os seus crimes. Apesar do desejo de vingança, Hamlet considerava odioso o ato de tirar a vida de um semelhante, principalmente pelo fato de tal pessoa, apesar de assassino e usurpador, ser o marido de sua mãe. Além disso, ainda lhe atormentavam o espírito algumas dúvidas sobre o espectro. E se ele fosse o diabo? Diziam que o diabo tinha poder de assumir várias formas. E se ele assumira a forma de seu pai e, aproveitando-se de sua fraqueza e melancolia, viera arrastá-lo ao assassínio? Pediu então ao diretor da peça que incluísse na apresentação daquela noite algumas falas que ele havia escrito. Na verdade, o que ele queria é que fosse representada uma cena parecida com o assassínio do pai, para que ele pudesse observar as reações do rei, seu tio. A peça seria a coisa com ele pegaria a consciência do rei.

The play's the thing
Wherein I'll catch the conscience of the King

A peça é a coisa
com que pegarei a consciência do Rei
(Ato 2, cena 2)

Cena de "A Consciência do Rei", da Série Clássica.

Q também cita esta passagem, querendo dizer que seria através da "peça" ou do jogo que estava jogando com Riker que ele pegaria a consciência do comandante, ou seja, era através do jogo que saberiam se Riker resistiria ou não à tentação de utilizar os poderes concedidos a ele por Q. Quem também é fã da Série Clássica, já deve ter percebido que foi desta passagem que retiraram o título do episódio "The Conscience of the King" ("A Consciência do Rei"). Como se viu no episódio "Hide and Q", a "peça" quase "pegou a consciência" de Riker. Entretanto, o comandante percebeu a tempo o quanto seu comportamento estava sendo ridículo.

O rei Cláudio, por sua vez, caiu na armadilha armada por Hamlet: assim que viu a cena do assassínio na peça, mudou de cor e, simulando ou talvez sentindo súbito mal-estar, deixou o teatro. Com a saída do rei encerrou-se a representação da peça. Hamlet todavia vira o suficiente para convencer-se de que o fantasma dissera a verdade. Antes, porém, que o príncipe pudesse elaborar seu plano de vingança, foi chamado pela rainha para uma conferência particular. A rainha convocara o filho, a pedido do rei, com o intuito de dizer-lhe o quanto desapontara a ambos seu recente comportamento. Querendo saber tudo o que se passaria na conversa, o rei ordenou a Polônio, seu conselheiro e pai de Ofélia, que se escondesse atrás das cortinas da alcova da rainha, de onde poderia ouvir tudo sem ser visto. Hamlet começou a discutir com a mãe, condenando seu comportamento leviano para com a memória de seu pai, quando, de repente, percebeu alguém atrás das cortinas. Pensando tratar-se do rei, fincou sua espada no conselheiro, matando-o.

A desgraçada morte de Polônio forneceu ao rei pretexto para afastar o príncipe do reino. Mandou-o à Inglaterra, Kate Winslet, a estrela de "Titanic", faz Ofélia no Hamlet de Kenneth Branagh (1996) com dois guarda-costas, alegando fazer isto para sua própria segurança. No caminho, porém, Hamlet descobriu que o rei ordenara que o matassem assim que lá pusesse os pés. Livrou-se, então, dos guardas e retornou à Dinamarca. Lá chegando, deparou com o funeral de Ofélia, sua amada, que, ensandecida pela morte do pai, havia se afogado no rio. O irmão da moça, Laertes, ao reconhecer Hamlet, causador da morte de seu pai e de sua irmã, agarrou-lhe o pescoço, como a um inimigo, até que os presentes os separassem. Concluído o sepultamento, Hamlet foi desculpar-se com Laertes e os nobres jovens pareceram reconciliar-se.

No entanto, aproveitando-se da dor e da ira de Laertes, o rei Cláudio viu aí uma oportunidade para eliminar o sobrinho. Persuadiu o irmão de Ofélia, a pretexto de celebrarem a reconciliação, a propor a Hamlet um torneio de esgrima. Depois de tudo acertado, o rei convenceu Laertes a usar uma espada envenenada. A disputa então começou e, passados alguns minutos, Laertes feriu Hamlet com sua espada. Sem saber do plano maléfico para eliminá-lo, na confusão da luta Hamlet trocou sua arma inocente pela lâmina mortal de Laertes e, num bote, desferiu um golpe no adversário. O feitiço, assim, virou-se contra o feiticeiro.

Patrick Stewart (Picard) como o rei Cláudio, que ele interpretou no palco.Nesse instante, a rainha gritou que fora envenenada. Inadvertidamente, bebera de uma taça que o traiçoeiro Cláudio havia preparado para Hamlet, caso a espada de Laertes falhasse. Vendo a rainha cair morta na sua frente, Hamlet ordenou que todas as portas fossem fechadas para que se pegasse o assassino. Laertes então disse que aquilo não seria necessário - e, sentindo que sua vida se esvaía pelo ferimento recebido, confessou a infâmia que praticara e que também o vitimara. E, pedindo perdão, morreu, não sem antes acusar o rei de ser o mentor de toda a trama. Hamlet, vendo que seu fim também se aproximava, voltou-se repentinamente contra o pérfido tio e trespassou-lhe o coração com a espada envenenada, cumprindo assim a promessa que fizera ao espectro de seu pai de matar seu assassino. Já moribundo, voltou-se para o amigo Horácio, que assistira à fatal tragédia, pedindo-lhe que contasse a todos a sua história. Dito isso, seu coração cessou de pulsar.