Texto de
Susana Lopes de Alexandria


Data cita célebre bardo inglês em piada


 









 

 

 

O tom de "The Naked Now" é descaradamente de comédia. Entre as inúmeras piadas do episódio, uma talvez tenha passado despercebida pelos fãs, por tratar-se de uma citação do dramaturgo e poeta inglês William Shakespeare (1564-1616).

A doença que se espalhou na Enterprise, deixando os infectados como que alcoolizados, surpreendentemente também contagiou Data. Quando o capitão vê o andróide na ponte com os sintomas da doença, alega que ele não poderia ter sido infectado pelo vírus, pois não é humano. Data então responde:

"We are moke alike than unlike, my dear captain. I have pores; humans have pores. I have fingerprints; humans have fingerprints. My chemical nutrients are like your blood. If you prick me, do I not... leak?"

"Somos mais parecidos do que diferentes, meu caro capitão. Eu tenho poros; humanos têm poros. Eu tenho impressões digitais; humanos têm impressões digitais. Meus nutrientes químicos são como seu sangue. Se você me espeta, eu não... vazo?"

Essa resposta de Data foi uma brincadeira com uma famosa passagem da comédia "O Mercador de Veneza" (The Merchant of Venice), de Shakespeare. Vamos ver a seguir um resumo da peça, exatamente de qual trecho da essa referência foi retirada e por que a piada se perde na tradução para o português.

Shylock, o judeu, vivia em Veneza, na Itália. Havia acumulado enorme riqueza emprestando dinheiro a juros altíssimos a mercadores cristãos. Shylock não tinha simpatia por cristãos, tanto que, quando soube que sua filha havia fugido para se casar com um cristão, ele a deserdou. Shylock, por sua vez, era malquisto por todos os mercadores e homens de bem, particularmente Antônio, jovem comerciante de Veneza. O judeu também o odiava, porque Antônio costumava emprestar dinheiro aos necessitados sem cobrar nada. Havia, pois, grande inimizade entre o judeu Shylock e o mercador Antônio.

"Bassânio e Pórcia", de Richard Parkes Bonington (1826) O melhor amigo de Antônio era Bassânio, um nobre veneziano que havia dilapidado o patrimônio da família. Sempre que precisava de dinheiro, Antônio o socorria. Certo dia, Bassânio procurou Antônio e declarou que planejava restaurar sua fortuna casando-se com Pórcia (Portia, no original), uma dama riquíssima por quem se apaixonara. Desejava apresentar-se como pretendente da moça, mas para isso precisaria de dinheiro. Pediu a Antônio, então, que lhe emprestasse três mil ducados.

Naquela ocasião, Antônio não dispunha do dinheiro, mas como estava auardando alguns navios carregados de mercadorias, decidiu procurar Shylock, o judeu, e tomar a quantia emprestada, dando como garantia os navios. Antônio e Bassânio foram juntos à casa de Shylock.

Ouvindo o pedido de empréstimo, Shylock pensou consigo que aquela talvez fosse a oportunidade de vingar-se de Antônio, que tantos impropérios havia lhe dito ao longo dos anos. Disse então ao mercador que lhe emprestaria o dinheiro sem cobrar juro nenhum, e que fazia isso para conquistar sua amizade. Tudo o que Antônio deveria fazer era ir com ele a um advogado e assinar um contrato em que ficaria estipulado que, se ele não pagasse o dinheiro no dia marcado, perderia uma libra (cerca de meio quilo) de sua própria carne, que seria cortada de qualquer parte de seu corpo, à escolha de Shylock.

Apesar dos protestos de Bassânio, Antônio aceitou a proposta e assinou o contrato, certo de que se tratava apenas de uma brincadeira.

Pórcia, a rica herdeira com quem Bassânio desejava casar-se, morava perto de Veneza, num lugar chamado Belmonte. Com o dinheiro que Antônio lhe emprestara, Bassânio seguiu para Belmonte numa esplêndida carruagem, acompanhado de um jovem chamado Graciano (Gratiano, no original). Pediu Pórcia em casamento (veja ilustração), confessando que não possuía bens, mas apenas o título de nobreza de sua família. Pórcia o aceitou como marido, alegando ter dinheiro suficiente e não precisar de um marido rico.

Graciano e Nerissa, dama de companhia de Pórcia, vendo os patrões trocarem juras de amor, pediram licença para se casarem no mesmo dia. Bassânio e Pórcia ficaram muito felizes com a notícia de que seus empregados estavam apaixonados e consentiram no casamento.

Esse momento de felicidade foi interrompido por um mensageiro que trazia uma carta para Antônio. Ao ler a carta, Antônio ficou pálido: nela, Antônio dizia que seus navios haviam se perdido e que ele deveria cumprir o contrato assinado com Shylock. Como isso certamente implicaria em sua morte, ele desejava ver o amigo Bassânio antes de morrer.

"Portia", de Henry Woods (1888).Ouvindo a história do empréstimo e do contrato com o judeu, Pórcia imediatamente dispôs-se a casar-se com Bassânio, antes de sua partida para Veneza, para que ele pudesse dispor de seus bens e saldar a dívida do amigo, salvando-lhe a vida. Casaram-se no mesmo dia, e Graciano e Nerissa também se casaram. Terminada a cerimônia, partiram Bassânio e Graciano para Veneza.

Como já se passara o dia do pagamento, o cruel judeu não quis aceitar o dinheiro que Bassânio lhe ofereceu, insistindo em receber a libra de carne de Antônio. Marcou-se o dia do julgamento em presença do duque de Veneza, e nada restou a Bassânio senão esperar ansiosamente pelo resultado.

Pórcia, preocupada com a sorte do amigo de Bassânio, resolveu ajudá-lo. Como tinha um parente advogado, escreveu-lhe uma carta expondo o caso e solicitando seu parecer e quais os trajes habituais dos advogados. Assim que recebeu a resposta, Pórcia e Nerissa vestiram-se de homens e, trajando a toga de advogado, Pórcia partiu para Veneza (veja ilustração) levando Nerissa como seu secretário .

A causa ia começar a ser discutida diante do duque e dos senadores quando Pórcia chegou, alegando estar ali em nome de outro advogado, e solicitou permissão para fazer a defesa de Antônio. O duque deferiu o pedido, surpreso com a aparência juvenil do advogado, muito bem disfarçado pela toga e pela enorme cabeleira.

Pórcia olhou à sua volta e viu o impiedoso judeu. Viu também Bassânio, seu marido, que não a reconheceu, junto do aflito Antônio. Pórcia então começou sua defesa, tentando de toda maneira demover o judeu da idéia de levar a cabo o cumprimento do terrível contrato. Ofereceu-lhe dinheiro, argumentou o quanto pôde, mas o judeu estava inflexível. 

Pórcia pediu então para examinar o contrato (veja ilustração) e reconheceu que o judeu tinha o direito de receber sua libra de carne. Disse a Antônio que preparasse seu peito para a faca. Sob a expectativa do tribunal, o impiedodo judeu passou a afiar a lâmina, e Pórcia perguntou se a balança estava pronta para pesar a carne. Então dirigiu-se a Shylock, perguntando se ele havia trazido consigo um cirurgião, para que a perda de sangue não matasse Antônio. Shylock, cuja única intenção era a morte de Antônio, alegou que aquilo não estava no contrato.

"Pórcia e Shylock", de Thomas Sully (1835). Novamente, Pórcia concordou que realmente aquilo não constava do contrato e confirmou que Shylock tinha direito à sua libra de carne. O judeu tornou a afiar seu facão, olhando avidamente para Antônio. Nesse momento, Pórcia o interrompeu, dizendo que o contrato não lhe dava direito a sangue. As palavras eram expressas: uma libra de carne. Se, ao cortar a carne, derramasse uma gota de sangue, todas as propriedades do judeu seriam confiscadas por lei em benefício do Estado de Veneza.

Ora, como era absolutamente impossível a Shylock cortar a libra de carne sem derramar um pouco de sangue de Antônio, o achado de Pórcia salvou a vida de Antônio. Admirados com a sagacidade do jovem advogado, que encontrara uma saída, todos os presentes começaram a aplaudi-lo. O judeu acabou perdendo todo o seu dinheiro, por ter conspirado contra a vida de um cristão. Pela decisão do duque, metade iria para Antônio e a outra metade para o Estado. Antônio recusou o dinheiro, sob a condição de que Shylock assinasse um contrato em que deixaria seus bens para sua filha, a que fora deserdada por casar-se com um cristão. E o duque prometeu devolver a outra metado ao judeu caso ele se convertesse à fé cristã.

Mais tarde, já de volta a Belmonte, Pórcia e Nerissa revelaram aos maridos e a Antônio toda a aventura do disfarce, acrescentando que os navios de Antônio não haviam se perdido, mas estavam atracados a um porto, seguros e intactos.


A passagem da peça a que Data faz referência está na cena 1 do ato 3. Nesta cena, o judeu Shylock encontra com dois conhecidos, Salarino e Solânio, que lhe perguntam por que ele quer o cumprimento do contrato com Antônio, já que uma libra de carne humana não valia nada. Shylock argumenta que aquele pedaço de carne iria alimentar sua vingança, pois Antônio o ofendera várias vezes, pelo simples fato de ele ser judeu. Ele então diz:

"Hath not a Jew eyes? hath not a Jew hands, organs, dimensions, senses, affections, passions? fed with the same food, hurt with the same weapons, subject to the same diseases, heal'd by the same means, warm'd and cool'd by the same winter and summer, as a Christian is? If you prick us, do we not bleed? if you tickle us, do we not laugh? if you poison us, do we not die? and if you wrong us, shall we not revenge? if we are like you in the rest, we will resemble you in that. If a Jew wrong a Christian, what is his humility? revenge: if a Christian wrong a jew, what should his sufferance be by Christian example? why, revenge."

"Um judeu não tem olhos? um judeu não tem mãos, órgãos, dimensões, sentidos, afeições, paixões? não é alimentado pela mesma comida, ferido pelas mesmas armas, sujeito às mesmas doenças, curado pelos mesmos remédios, aquecido e esfriado pelo mesmo inverno e verão que um cristão? Se você nos espeta, não sangramos? se nos faz cócegas, não rimos? se nos envenena, não morremos? e se nos causam ofensas, não podemos nos vingar? se somos como vocês no resto, seremos parecidos nisso também. Se um judeu ofende um cristão, qual sua pena? vingança: se um cristão ofende um judeu, qual deve ser seu direito, seguindo o exemplo cristão? ora, vingança."

Da mesma forma que o judeu Shylock, Data quis mostrar ao capitão Picard que ele também não era tão diferente assim dos humanos. A brincadeira está principalmente na frase "if you prick us, do we not bleed?" (se você nos espeta, não sangramos?). O andróide diz "if you prick me, do I not leak?" (se você me espeta, eu não vazo?). Obviamente, o andróide não sangra (bleed), mas se ele for espetado, seu nutriente químico vai vazar (leak). A piada está na semelhança sonora das palavras "bleed" e "leak", que se perde na tradução.