Scientific American
Brasil
agosto de 2006
Cem anos depois a polêmica continua
Vários inventores foram importantes até a criação do avião.
Alberto Santos-Dumont talvez tenha sido o maior deles
Em novembro deste ano o Brasil
comemora o centenário do vôo histórico que Alberto Santos-Dumont fez a bordo
do 14-Bis em Paris. No entanto, vários lugares no mundo festejaram a
mesma efeméride em 2003, quando se completaram cem anos do primeiro vôo de
uma máquina mais pesada que o ar. Nos Estados Unidos, a festa teve um gosto
especial: os americanos celebraram a ascensão do Flyer, o aeroplano
dos irmãos Wilbur e Orville Wright. Assim como na época dos aviadores, ainda
hoje permanece a polêmica sobre quem venceu a corrida dos ares.
Cada lado tem argumentos favoráveis. Os
americanos alegam pura e simplesmente que a dupla voou primeiro. O que é
contestado com uma série de críticas: os irmãos Wright podem até ter sido
pioneiros, mas, como saber, uma vez que seus experimentos, entre 1903 e
1905, foram sempre cobertos de mistério, sem a presença de testemunhas nem
de registros fotográficos? Além disso, para alçar vôo suas máquinas contavam
com a polêmica ajuda, primeiramente do vento, e depois de uma catapulta. Ou
seja, os Wright não voavam por meios próprios.
O novo livro do jornalista Salvador Nogueira
surge com a proposta de pôr panos quentes nos ânimos acirrados. Com a
intenção de mostrar a "verdadeira história da invenção do vôo", como diz na
apresentação da obra, o autor se esforça para não tomar partido, como muitos
outros livros brasileiros já fizeram em favor do conterrâneo, mas é notória
uma certa tendência ao "outro lado". É provável que os fãs de Dumont torçam
o nariz (embora a obra seja prefaciada por um dos principais estudiosos e
defensores do aeronauta brasileiro, o pesquisador Henrique Lins de Barros, o
que chancela sua qualidade apesar das controversas entre eles). O maior
mérito, no entanto, foi distribuir os devidos créditos não apenas para os
três inventores já citados, mas também a pelo menos uma dezena de outros
nomes (como Octave Chanute, Samuel Langley, Henry Farman, Gabriel Voisin,
Louis Blériot e Charles Lindbergh), que contribuíram para a invenção e o
aperfeiçoamento do avião.
"Todas essas pequenas peças, trazidas por seus
geniais criadores, contribuíram para que se partisse do aeroplano cru dos
Wright e se chegasse àquela máquina com que Santos-Dumont sempre sonhara
(...). Alberto Santos-Dumont é, assim como os irmãos Wright, o inventor do
avião. O brasileiro é também, talvez, o maior dos pais do avião, (modo como
o autor define a máquina em sua acepção abrangente). Mas certamente não é o
único. Tentar mensurar quem tem mais direito à paternidade talvez seja a
perspectiva incorreta", justifica o jornalista.
Nogueira lança mão do recurso do romance
histórico para narrar de modo envolvente os acontecimentos de um período de
15 anos, que começa quando ninguém sabia voar -- e muito pesquisador sério
nem sequer cogitava que isso fosse possível ou útil --, em 1896, até o
momento em que todo mundo sabia, em 1910. Diz ele que sua intenção com isso
era dar espaço para que o leitor chegasse às suas próprias conclusões sobre
o papel de cada um. De fato é delicioso ver as picuinhas entre os diversos
personagens dessa história e acompanhar ano a ano os erros, acertos e
atropelos na "corrida maluca" pelo desenvolvimento do "mais pesado que o
ar". Mas a verdade é que fica bastante difícil não desenvolver certa
simpatia pelos irmãos americanos. Quem está acostumado a ver em outras obras
declarações explícitas de apoio a Santos-Dumont, talvez se decepcione um
pouco. O autor mostra sim a genialidade e os sonhos do inventor brasileiro
festejado em Paris, mas o descreve como um homem deprimido, dependente de
atenção. Os Wright, por
outro lado, aparecem como formiguinhas trabalhadoras, pacientes e
determinadas, e cautelosos a tal ponto que quase põem tudo a perder. Eles
tinham a faca e o queijo na mão. Pelas cartas que trocavam com outros
pesquisadores da aviação, como o americano Chanute, e pelos registros
detalhados que fizeram de seus experimentos, é quase impossível questionar o
papel que desempenharam para a concretização do vôo mecânico. No entanto, a
teimosia, para não dizer ranhetice, de não quererem se apresentar em público
até terem em mãos a patente de seu invento fez o mundo inteiro desconfiar
por muito tempo de que não fossem capazes de voar de modo controlado.
Mas o pior mesmo foi depois. Confiantes de que
tinham direito a cobrar pela sua descoberta, e quase obsessivos com a
patente, se envolveram numa série de processos judiciais contra outros
inventores, fato que atravancou a evolução do avião nos Estados Unidos.
Entretanto, como Nogueira bem define no final do livro, a Europa,
pressionada pela guerra, permitiu que a aviação alcançasse o seu potencial,
e o "avião nasceu, apesar dos Wright".
O ponto final da história é também seu momento
mais rico, apesar de fictício. O autor imagina um diálogo, em 1927, entre
Dumont, internado em uma casa de repouso para tratar a esclerose múltipla e
a depressão que o atingiam por causa dos rumos tomados por seu invento (o
brasileiro jamais se conformou com o uso do avião na guerra), e Orville
Wright (Wilbur, a essa altura já estava morto). A conversa que se segue não
só apresenta um resumo dos acontecimentos, como funciona como um verdadeiro
ajuste de contas que a história jamais permitiu.
(Giovana Girardi) |