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Jornada nas Estrelas e a guerra

“O poder de uma civilização não está em promover a guerra, mas em manter a paz” (Gene Roddenberry)

A existência da guerra é uma das responsáveis pela criação de Jornada na Estrelas. Nos anos 60, o mundo passava por uma situação extremamente complexa por causa da Guerra Fria. Hoje, estamos vivendo num clima de acirramento dos conflitos regionais e mundiais por causa de diferenças econômicas, políticas e culturais. Depois de 11 de setembro, o ambiente belicista aumentou bastante. Falam de “guerra” contra o terrorismo seja no Afeganistão, seja no Iraque; assim, o mundo caminha para uma situação cada vez mais complexa, e não sabemos onde isso vai dar.

Ao longo do tempo, o cinema foi um dos meios mais importantes no destaque da guerra, de modo ficcional ou realista. Entretanto, nunca vimos as estórias de Jornada envolvidas diretamente com estes temas, pois o futuro desenhado por Roddenberry para a humanidade é essencialmente pacifista. A Primeira Diretriz, com o seu impedimento de não-intervenção, é uma crítica aos países que, sutilmente ou pela força, impõem seus interesses aos demais. Por isso, a manutenção da Frota Estelar pela Federação dos Planetas Unidos é explicitamente de objetivos diplomáticos e pacifistas. As suas naves possuem armas apenas para defesa contra ataque inimigo (como acontece em países iguais ao Brasil), pois o objetivo não é conquista, e sim, tratar de construir cooperação e alianças de interesse mútuo. A própria FPU é um Estado multirracial, multicultural e multiplanetário, que valoriza a diversidade dentro de alguns limites estabelecidos. Não vimos até hoje, no cinema e na televisão, nenhuma guerra de conquista, a não ser quando há invasão de território e soberania, conforme vimos em DS9. Além disso, é uma ou outra rusga ou crise político-estratégica, sem resultados mais graves. O próprio símbolo original da Federação é uma alusão explícita ao da ONU, que tenta estabelecer a paz no mundo através da negociação e, em último caso, da força, quando a paz está ameaçada.

Neste mundo, onde vemos o USS Enterprise se preparando para mais uma guerra, pensamos no futuro e na possibilidade de que a humanidade seja diferente. Pelo que sabemos, Nemesis vem aí e também não teremos esse tipo de problema, ao contrário de boa parte da tradição do cinema, que apela para uma receita militarista e guerreira por causa dos efeitos especiais, da propaganda ideológica e do retorno financeiro fácil na bilheteria.

A ficção científica holywoodiana tem grandes exemplos de maniqueísmo político-militar com menor qualidade de roteiro: a trilogia de G. Lucas, Guerra nas Estrelas, produzida pela Fox, é bastante clara acerca dos amigos e inimigos. Os amigos são uma federação, os inimigos formam um império tirânico que pretende dominar a galáxia.  A intenção, segundo o autor/diretor, era de promover puro entretenimento, não possuindo qualquer mensagem mais pretensiosa A análise de muitos propõe que uma estória deste tipo reforça os mitos na cultura moderna., mas aqui importa notar também como sua estética futurista de “videogame” promove um autêntico “bang-bang” sideral, ressalta o heroísmo e o voluntarismo dos jovens junto com suas habilidades técnicas e formação moral. Este é o caso de Skywalker e Solo ao se insurgirem contra o poder, de forma espontânea e improvisada, para derrotar os representantes do Império do Mal. Este tipo de representação se identificou tanto com a ideologia estado-unidense que o governo Reagan batizou o seu projeto de defesa aeroespacial com o nome da trilogia. A ficção teve gosto de realidade ainda mais porque o Pentágono contribuiu para o colapso da economia soviética, que não tinha condições orçamentárias de fazer frente aos seus concorrentes de Washington.

Os anos 80 seguiram a situação geral, tendo sofrido a influência do fim e da Guerra Fria, com o surgimento de “novos inimigos” da paz e da liberdade mundial segundo a lógica do Pentágono. Desta vez, Holywood retrata a presença dos terroristas árabes, iraquianos, indianos, paquistaneses e latino-americanos. Com a crise do Oriente Médio se agravando e ameaçando os interesses de Washington, proliferaram Rambo e outros heróis da truculência  que agiam em conjunto com o aparato militar e paramilitar das FFAA dos EUA. Os asiáticos e os povos da Europa Oriental também não escaparam ao estereótipo, pois o crescimento da China passou a desequilibrar o sistema político internacional, compensando a falta de outra superpotência. Os europeus ex-comunistas constituem uma ameaça pelo fato de possuírem arsenais nucleares de destruição massiva. Sérvios, cazaquistanos, urbequistanos e até mesmo alguns russos infiéis ao Ocidente poderiam por tudo a perder, desde o lucro das corporações à vida do presidente, segundo o exemplo de filmes como Caçada ao Outubro Vermelho, Força Aérea Um.

O impacto da tecnologia eletrônica, computrônica e comunicacional revolucionou o ato de fazer a guerra a partir dos fins do séc. XX e, isto, o cinema e a tv retrataram com mais volume de produção. Na verdade, desde que Ian Fleming criou 007 e suas aventuras foram postas na tela grande, houve a popularização de “gadgets” eletrônicos e mecânicos, postos a serviço de Sua Majestade britânica e do Ocidente  contra os  políticos, cientistas e empresários corruptos. Com o limiar do século XXI, a preocupação com o futuro do planeta e da humanidade passaram a buscar garantias na rede de comunicação pública e privada que põem em funcionamento canhões, mísseis, navios e aeronaves. Isto é o que se pode ver por exemplo em  Jogos Patrióticos e Missão Impossível. A onda ecológica também entrou como complemento dos novos tempos. A poluição dos mares, rios, devastação das florestas, deveriam contar com a força militar para serem contidos. Até a Amazônia entrou para as telas como região a ser protegida como um santuário mundial e reserva de riquezas materiais, o que incluiria o uso da força por uma coalizão internacional, como no filme Anaconda e na série O Policial do Futuro.

A partir de meados dos anos 80 os EUA presenciaram a emersão da mentalidade da “cultura da reclamação”, baseada na ética do “politicamente correto”. Ela chegou às telas do cinema e da televisão com uma atitude revisionista: o passado teria que ser relido para ser interpretado de forma mais esclarecedora e crítica. Questões multiculturais e das minorias sociais envolveram a aura da produção nos EUA e parte da Europa. Do mesmo modo, o cultivo do heroísmo pátrio, triunfante e salvacionista deveria ser revisto. Próximo da linha que Roddenberry enfatizou a partir dos anos 60, Kubrik, Lee, Stone, Hanks e Spilberg propuseram através dos roteiros, uma crítica ao papel desempenhado pelos EUA e suas FFAA ao longo da História. A partir de então, a Segunda Guerra, o Vietnã, a Coréia, o escândalo Irã-contras e mesmo a Guerra do Golfo passam pelo crivo do respeito à diversidade étnico-cultural, direitos humanos incorporados por várias subculturas, conflitos políticos entre o povo e a elite etc. Os soldados do USARMY, USN e USAF, agiram e agem em nome dos interesses da elite branca, rica e protestante não muito bem justificados. Assim, houve uma onda de produções críticas ao “status quo” político-governamental em filmes como Apocalipse Now, Platoon, Nascido em 4 de Julho e Nascido para Matar. Este sentimento também está expresso em O Soldado Ryan, Além da Linha Vermelha e Três Reis.

As próprias minorias, que também sofreram historicamente no interior da sociedade, também teriam sido usadas como tropa para massacrar ou subjulgar regiões de seu passado étnico e os pobres do Terceiro Mundo. A partir de então, heróis ousados, cheios de honra e senso moral foram revelados por personagens negros, hispânicos, asiáticos, mulheres, homossexuais e indígenas. O exemplo das mulheres é interessante, pois elas passaram a ter mais presença. Elas passam de frágeis ajudantes que atrapalham na hora da ação ou da fuga de um grupo para a posição de líderes, comandantes e autoridades políticas, capazes de realizarem as missões mais complexas, anteriormente destinadas só aos homens. As virtudes deixaram de ser computadas apenas pela genitália e pelo tônus muscular, para serem considerados segundo critérios de inteligência, criatividade e sensibilidade, convencionalmente mais afetas ao mundo feminino.

Enfim, a máquina de guerra dos EUA precisa estar sempre pronta a operar nos quatro cantos do Mundo, salvaguardando os interesses do país dentro e (muito mais) fora de seu território, a despeito de quaisquer interesses econômicos, políticos e culturais. O cinema e a televisão funcionaram como formas de legitimação na maioria dos casos. Embora a própria indústria cultural reserve um espaço para a crítica, esta acaba funcionando como a invenção que reforça o padrão vigente. Com a prosperidade econômica dos EUA dos anos do neoliberalismo global, a propaganda dessa máquina tende a se manter para mostrar a força e o poderio de que dispõe o país para conter eventuais ameaças. Mas, ao mesmo tempo, é necessário deixar claro um sentimento de “boa vontade” e “cooperação”, já que é um risco constante o de explicitar pretensões belicistas e arrogantes quanto à sua superioridade  auto-atribuída.

Caso vejamos algum dia um filme de Jornada que descambe para esse tipo de conteúdo militarista, poderemos passar a desconfiar seriamente de que a utopia pacifista de seu criador será posta de lado em nome de interesses escusos. Daí, só nos restará pular dentro dos casulos de salvamento.

Cláudio Silveira escreve regularmente sobre os filmes com exclusividade para o Trek Brasilis