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Kirk, Picard e a vida em família

Ao longo das séries de Jornada nas Estrelas vemos os protagonistas trabalhando no espaço, de um lado para o outro explorando a galáxia, defendendo a Federação e conhecendo muitos lugares, pessoas e formas de vida. Daí alguns perguntam: porque eles não ficam um pouco em casa cuidando de sua família, assim como a maioria dos mortais (pelo menos dos humanos)? Nas telas do cinema, a Série Clássica e a Nova Geração nos deram algumas pistas para responder a esta pergunta.

Kirk e Picard não possuem uma família, por assim dizer. Vimos e ouvimos falar de seus pais, irmãos, sobrinhos, cunhados, mas não muito de suas mulheres e filhos. A bem da verdade, só mesmo em Deep Space Nine tivemos Sisko e os seus. Até mesmo na Voyager a situação de Janeway se complicou bastante depois de ter se perdido por aí --no bom sentido, é claro!

Na Série Clássica Kirk arranjava quase sempre um amor em cada porto, típico dos velhos lobos do espaço, que têm por função vagar de um canto ao outro. Vivia cheio de amores efêmeros e mal resolvidos que às vezes atrapalhavam ou ajudavam as suas aventuras. No cinema, o máximo que vimos foi a sua ex-namorada, a doutora Carol Marcus, apresentando a Kirk o seu filho David.

Nada dentro do padrão tradicional de papai, mamãe e filhinho, pois nosso herói foi intimado anos antes pela sua amante a sumir da vida deles. Isto foi prontamente atendido por Kirk por vários anos, só se envolvendo com David por acaso em função da missão ao planeta Genesis.

O relacionamento foi tenso no início, e se transformou em respeito e admiração mútua depois. Mas a tragédia chega com a morte mesquinha e relativamente heróica de David tentando salvar a vida de Saavik das mãos dos Klingons. A dor de Kirk foi grande. Porém, a morte de seu filho não foi em vão, conforme ele afirma em "Jornada nas Estrelas VI - A Terra Desconhecida", ajudando a fazer a paz com os seus inimigos Klingons.

Com Carol Marcus, nada de concreto, a não ser as lembranças do passado e a aproximação momentânea por causa da morte de David, de seu amigo Spock e da quase destruição total de sua nave. Na versão em livro, não-oficial, do filme "Jornada nas Estrelas - Generations" o autor põe Kirk e Marcus juntos antes do seu desaparecimento no Nexus. É aí também que ficamos sabendo que o coração do nosso herói batia anteriormente entre a Frota Estelar e Antonia, um amor antigo. Mesmo assim, a família de Kirk ficou sendo mesmo os seus companheiros Spock e McCoy, de acordo com "Jornada nas Estrelas V - A Última Fronteira".

Toda essa postura reflete as características da Série Clássica, com suas idéias mais contestadoras e menos comprometida com os valores tradicionais do século 20. Ela foi feita na época da discussão dos costumes e da moralidade vigente. Na concepção e na realização da série, as coisas estabelecidas para a vida familiar comum não tinham tanta importância assim.

Não foi o mesmo para a Nova Geração, concebida numa época menos polêmica e mais bem comportada, onde o estúdio não estava muito disposto a comprar briga com a parte da audiência mais preocupada com questões individualistas.

Essa foi uma série que trabalhou mais os temas subjetivos, apesar de tocar em pontos polêmicos do cotidiano. Mas, em geral, eles estavam enfocados na interpretação dos indivíduos. A família é apresentada como sendo mais bem comportada na vida dos personagens/tripulantes da Enterprise. Os conflitos maiores são entre pais e filhos que vivem/viveram juntos um certo tempo.

É claro que esta foi uma série maior que a Clássica e pôde desenvolver alguns ângulos dos seus personagens. Entretanto, desde o primeiro instante, a tônica foi sempre mais intimista. 
Picard continuou com algumas características de Kirk, como a solteirice, os casos eventuais por aí, agarrando algumas mulheres de vez em quando, como Vash, e alguma tripulante da nave. Ele teve até um filho falso criado por um Ferengi próximo ao fim da série, e sempre rolou a possibilidade do envolvimento com a dra. Crusher.

No episódio "The Inner Light", ele vive uma vida em família como um qualquer, sendo marido, pai e avô. No cinema, somos informados de que este era um dos seus sonhos mais profundos, tal como apareceu no interior do Nexus. Antes de encontrar Kirk, ele vive a tradicional ceia de Natal com mulher, filhos e seu sobrinho René. Não é nada, não é nada, as coisas podem caminhar para isso algum dia, caso Picard cumpra a sua promessa feita a Anij de voltar ao planeta dos Baku, conforme visto em "Insurreição".

Picard vai se casar ou morrer um solteirão cheio de pretendentes e pretensões como Kirk? A bolsa de apostas está aberta. Se o desfecho seguir a lógica dos episódios e das versões do cinema, podemos até esperar que triunfe o gênero "família feliz", ainda que tardiamente. Veremos como será, seja para o gosto do público ou para o conformismo de Hollywood e sua máquina de contar perdas e ganhos.


Cláudio Silveira escreve regularmente sobre os filmes com exclusividade para o Trek Brasilis