Trek
Brasilis: O senhor não só ficou
encarregado da tradução da Série Clássica, como também
optou por dublar seu protagonista, o capitão Kirk. O que o despertou
para a série e os personagens a ponto de levá-lo a escalar a
si mesmo para o papel?
Emerson Camargo:
Com “Jornada nas Estrelas” – título criado e sugerido
por mim – foi “amor à primeira vista”. Leitor de Asimov, Bradbury,
Clark etc., eu já era aficionado em ficção científica. Quando
a série chegou para ser dublada na AIC eu já era tradutor, dublador
e diretor de dublagem da casa. Vi a série e imediatamente pedi
para produzir a versão. Diga-se também que todos os acertos
e erros que esta primeira versão (Série Clássica) possuem
são meus. Ninguém interferiu, nem a distribuidora da série no
Brasil, a Brascontinental, nem a direção artística da AIC, que
normalmente tinha a palavra final na dublagem. William Shatner
era jovem, pouco mais velho que eu, e como me identifiquei demais
com a série e já dublava heróis (o que em dublagem precisa de
uma certa prática) achei que a melhor escolha seria eu mesmo.
TB: A tradução de Jornada nas
Estrelas era obviamente um desafio incrivelmente complexo.
O senhor se lembra de suas principais dificuldades na época
para realizar o trabalho? Foi o senhor mesmo quem inventou a
célebre frase “dobra espacial” traduzida do original “Warp”?
Camargo: É preciso que se saiba
que fiz a versão de Jornada pioneiramente, isto é, sem
referências anteriores. E mais, podem não acreditar agora, mas
na época ela foi encarada com uma série menor, sem grandes chances
de fazer sucesso no Brasil, assim como "National Kid".
Acostumado já à tradução - comecei como tradutor - sabia que
versão de filmes para TV não pode ser uma tradução literal,
tem que haver uma natural adaptação do texto. Leitor de ficção-científica,
então procurei adaptar à dublagem os termos principais da “gíria”
da navegação estelar. ”Warp” é entortar, curvar... Repare que
“warp” tem a mesma labial que “dobra” e como já havia lido sobre
dobra espacial, nada mais lógico que “warp one” ser “dobra um”...
Traduzir “phaser” não havia sentido, então... e assim por diante.
Hoje percebo que cometi alguns enganos também, mas foi um grande
exercício de criatividade e prazer traduzir Jornada.
TB: A escolha das vozes para o
elenco, naquela época, foi feita com base em quê? Sabe-se que
nos anos 1960 e 1970, a qualidade "radialista" dos dubladores
era muito mais valorizada do que hoje. Isso ocorria em detrimento
da similaridade de vozes?
Camargo: Gostem ou não, todas as vozes foram escolhidas
por mim. O critério? Opção pessoal. Explico. Eu queria liberdade
de movimentos, trabalhar cada personagem segundo a visão do
Gene Roddenberry, como ele havia criado no original, e para
isso nada melhor que trabalhar com novatos. Ancorei na Uhura
a experiência de Helena Samara e lancei em seus primeiros papéis
fixos de série: Carlos Campanille (Scott), Eleu Salvador (Sulu),
Neville George (Dr. McCoy ) e escolhi Rebello Neto para o Spock
justamente porque não sendo rádio-ator, ele não possuía aquela
interpretação cheia de nuances tão comum na época, visto que
o Spock requeria uma dublagem reta, lisa, com pouca ou nenhuma
inflexão de voz.
TB:
Por que outra voz foi escolhida para dublar a apresentação da
série? O senhor nunca lamentou não poder ter dito a frase "audaciosamente
indo onde nenhum homem jamais esteve"?
Camargo:
Resolvi separar a abertura da série dando um toque mais solene,
aliás, como se fazia na época, convidando um locutor para a
gravação da abertura. Mas, sim, me arrependi depois de não poder
dizer a frase famosa que, por sinal, escrevi e reescrevi várias
vezes ("corajosamente indo onde homem algum nunca esteve?"...ou
..."onde a humanidade nunca esteve antes?"..etc..) até a versão
final.
TB:
Antes de pegar Jornada, o senhor trabalhou na adaptação em português
do programa japonês "National Kid". O que você viu de semelhança
e de contraste no trabalho de dublar esses dois supostamente
aparentados gêneros de televisão?
Camargo: Dublar o National Kid pra mim foi uma experiência
única porque foi a primeira série em que dublei o personagem
principal. Na ocasião, muito jovem, eu me iniciava em dublagem
e só fazia pontas. Porém, escolhido num teste de voz, fiz o
papel. Semelhanças só vejo no que se refere a serem ambas séries
pioneiras em seus gêneros, pelo menos aqui no Brasil, e o seu
caráter futurístico de ficção científica. No mais, a qualidade
de produção das duas é tão diferente quanto água do vinho e
aí está dito tudo. Textos, atores, efeitos etc. National Kid
abriu as portas para uma interminável série de super-heróis
japoneses, mas Jornada foi um marco mundial na produção
de ficção científica de boa qualidade.
TB: Quando do relançamento do "National
Kid" em video há alguns anos, o senhor participou novamente
da nova dublagem. Qual foi a sensação de retornar ao personagem
? Por acaso havia algo que o desagradava no trabalho original
e que procurou melhorar na nova dublagem?
Camargo: Foi excelente realizar a redublagem de National
Kid. Quando da primeira versão eu iniciava na profissão e fiz
um trabalho de principiante como ator. Na redublagem, supervisionei
a tradução, escolhi as vozes e dirigi, além é claro de redublar
o Massao Hata. Foi muito gratificante. Gostaria de poder fazer
o mesmo com Jornada.
TB: O senhor teve algum envolvimento
na escalação de Denis Carvalho como seu sucessor na voz de Kirk?
E quanto a Astrogildo Filho?
Camargo: Não, nenhuma influência em nenhuma das duas
vozes posteriores. Eu me desliguei completamente da AIC.
TB:
O que levou a TV Manchete a
encomendar uma nova dublagem para a série no final dos anos
1980? Os tapes com a dublagem original estavam mesmo irremediavelmente
perdidos? Alguns seriados dos anos 60 e 70 retornaram à TV nos
anos 90 em cópias novas mantendo a dublagem original como, por
exemplo, “Batman” e “O Planeta dos Macacos”. É uma pena que
Jornada nas Estrelas não tenha mantido sua primeira dublagem.
Camargo: Não tenho certeza, mas me parece que no incêndio
da TV Bandeirantes, onde a série foi exibida com a dublagem
original pela última vez, queimaram-se as únicas cópias então
existentes dessa versão. Dizem que existem algumas cópias originais
numa TV do Rio Grande do Sul, mas não sei com certeza.
TB:
O senhor teve algum contato com o pessoal que preparou a nova
tradução e a nova dublagem? Foi convidado para participar de
algum modo no processo?
Camargo: A resposta infelizmente é não. Uma vez que tendo
sido o tradutor e praticamente o criador da versão original
achei que seria lógico que me procurassem, mas não foi o que
aconteceu. Deu no que deu...
TB: O que o senhor acha da nova
dublagem, feita pela VTI do Rio de Janeiro? Existe em você a
sensação de que a voz atual está "errada", depois de ter traduzido
e dublado o capitão Kirk?
Camargo: Aproveito para chamar a atenção dos trekkers para
os primeiros capítulos da série clássica onde a interpretação
do William Shatner era suave e até mesmo tímida em alguns aspectos.
Só depois ele se firmou no papel como ator e desenvolveu mais
segurança no personagem. Aliás, isso é comum nos seriados. Portanto,
dublando o Kirk imprimi exatamente o tipo da personalidade dele:
macia, mas firme. O Denis Carvalho, que me substituiu porque
saí da AIC com a série ainda em dublagem, não se preocupou muito
com isso, eu creio, e deu a interpretação que ele achou que
devia. Por sinal, para mim, melhor que a do já falecido Astrogildo
Filho, meio radiofônico e muito marcado no “Perdidos no Espaço”.
A dublagem da VTI foi feita muitos anos depois da minha, com
um pessoal que, creio eu, nunca assistiu a versão original.
Portanto, em outro contexto e sem compromissos. Fizeram a versão
deles. Perguntado uma vez sobre isso, o Garcia Júnior deixou
bem claro que nunca pretendeu me imitar ou a qualquer um dos
outros dubladores do Kirk. Muito bom, uma vez que eu nunca faria
o “Mac Gyver” como ele fez.
TB:
Em que tipo de mídia normalmente uma série de TV chegava ao
Brasil nos anos 60 e 70? O áudio chegava pronto, já mixado,
ou vinha com diálogos, músicas e efeitos sonoros separados?
Camargo: Os filmes vinham em celulóide de 16 mm. Vinha
uma cópia completa, com as vozes originais, músicas e efeitos
mixados; um script ou texto com os diálogos originais (em inglês)
e um rolo de fita magnética também de 16mm de bitola (que não
existe mais) onde vinham gravados os ruídos e a músicas do episódio.
Este rolo nós chamávamos de Banda de Músicas e Efeitos (M&E
Track).
TB: Nas dublagens realizadas nesse
período percebe-se uma distorção no som da trilha envolvendo
a música e efeitos sonoros. Por que isso acontecia?
Camargo: As distorções hoje notadas eram em função dessa
banda de M&E que nem sempre vinha perfeita ou não "corria bem"
na hora da mixagem com a banda de diálogos em português.
TB:
A qualidade técnica das dublagens evoluiu muito nos últimos
anos, mas em detrimento do cuidado na seleção das vozes e atuação
dos dubladores. De uma forma geral, quais as suas impressões
sobre o trabalho de dublagem nos dias de hoje?
Camargo:
Infelizmente vocês têm razão. Creio que com a melhoria da
tecnologia os empresários do setor resolveram baratear demais
os custos e aqui incluo os valores pagos aos atores envolvidos
em dublagem. Naquela época os principais atores do país - da
TV ou do Teatro - também dublavam; vocês sabem disso. Porque
era compensador, mas hoje os valores pagos são ridículos se
comparados aos pagos pela TV Globo, por exemplo, aos seus atores.
Por isso, dublam aqueles que nunca chegaram "lá"... com algumas
exceções, claro! Hoje o que importa é a produção; a qualidade
é secundária. Continuo em dublagem hoje, trabalhando na direção
de alguns dos documentários dos canais da Discovery e sinto
muito em dizer isto, mas não se pode fazer uma comparação entre
a dublagem de hoje, mais industrial e rápida, com a de 30 ou
40 anos atrás, mais artística e cuidadosa. Os seriados também
não são mais os mesmos, mas, sem saudosismos, as séries daquele
tempo eram tão boas que jovens como vocês, que creio nem eram
nascidos, são fãs e cultivam a memória de um trabalho que pessoas
como eu tiveram tanto prazer em realizar.
TB:
Quais
são suas memórias a respeito de Jornada hoje?
Camargo: Sou criticado por não manter os sotaques que
existiam no original, mas foi opção minha não criar mais uma
agravante para atores que estavam praticamente começando em
dublagem, como já citei, além de saber que ninguém, a não ser
quem pudesse assistir ao original, notaria isso. Anos depois,
fui responsável pela direção da versão de “Guerra, Sombra e
Água Fresca” onde um grande ator como Marcos Plonka dublou um
alemão com sotaque e fez o maior sucesso. A dublagem com sotaque
é para poucos atores... Escolhi a voz do Antonio Celso, na época
uma das mais belas vozes do rádio, porque quis dar um toque
de grandiloqüência à abertura da série. E ficou muito bom...
Acredito que a versão original tem mais acertos do que erros
e a prova foi o sucesso inconteste de uma série que chegou aqui
desacreditada. Se você juntar a ela meus trabalhos em séries
como o já citado "National Kid", "Jeanne é um
Gênio", "Agentes da UNCLE" etc, verá que além
de ser uma grande série no original, Jornada nas Estrelas
teve uma versão brasileira compatível.
TB: O senhor ainda é reconhecido
como a "voz de Kirk”?
Camargo: Não, poucas pessoas ainda se lembram disso.
Creio que mais os trekkers mesmo.
TB: Acompanhou a série depois de
seu desligamento?
Camargo: Confesso que gostava tanto da série que, quando
me desliguei da AIC, fiquei tão decepcionado em deixar a dublagem
que vi muito pouca coisa das versões posteriores.
TB: Qual foi o personagem que mais
lhe trouxe satisfação em dublar durante toda a sua carreira?
Camargo: Sem falsidade, foi realmente o capitão Kirk.
E por vários motivos, alguns já citados, e pela fase de auto-afirmação
profissional e pessoal que eu atravessava na época.
Entrevista
realizada em 30 de janeiro de 2004.
Confira toda a história da dublagem de
Jornada no Brasil clicando aqui.
|