Pequeno Manual de Sobrevivência
TB Books para o Mundo das Fan-Fics
 

 

por Mariana Pedroso

Publicado pelo Trek Brasilis em setembro de 2002

 

 

Começando pelo começo, o que é fan-fiction?

Fan-fictions são histórias baseadas numa série de televisão, filmes, ou livros, entre outros, com um único diferencial: são escritas por fãs. Embora a maior parte delas seja escrita em formato de prosa ou conto, existem pessoas que escolhem escrevê-las como se fossem roteiros. Pode-se encontrar histórias curtas (por volta de mil palavras), bem como algumas que chegam a alcançar e até ultrapassam a marca de 50 mil palavras.

As fan-fictions que conhecemos hoje começaram a surgir nas décadas de 1960 e 1970, através das APA (Amateur Publishing Associations) e dos fanzines. Diversos autores consagrados de Jornada nas Estrelas começaram a escrever em fanzines, tais como Peter David, Susan Garrett, A.C. Crispin e Jean Lorrah. Mas foi só com o surgimento da internet que a prática de se escrever fics se propagou no mundo todo.

Ok. Agora já sei o que é uma fic. Quero escrever uma, o que devo fazer?

Escolha o universo onde se passa a sua história (no caso de Jornada nas Estrelas, pode ser a Série Clássica, A Nova Geração, Deep Space Nine, Voyager, Enterprise, ou até um crossover de várias séries ou ainda um ambiente nunca antes mostrado), o enredo e mãos à obra. Ler outras fan-fictions também ajuda, principalmente para se ter idéia do que as pessoas escrevem e de como elas escrevem. Além, é claro, de seguir adiante e terminar de ler esse Pequeno Manual.

Falar é fácil, mas como eu posso me tornar um escritor melhor?

Dez entre dez sites especializados em fan-fictions respondem à pergunta da seguinte forma:

Escreva.
E escreva um pouco mais.
Ah sim! Escreva.
Eu já lhe disse para escrever?

Brincadeiras à parte, escrever sempre é a melhor dica para quem quer fazê-lo bem. Pratique, mesmo que de início não esteja indo muito bem. Você sempre pode voltar para trás, reescrever o que não ficou bom ou apagar o que não gostou.

Além disso, é fundamental que se leia quantas vezes forem necessárias e que se vá editando a cada nova leitura. Seja mudando uma palavra que não se encaixa bem, acrescentando um diálogo, uma descrição ou corrigindo erros de digitação e gramática. Sim, pior do que erros de digitação são erros gramaticais. Escrever bem não contempla somente saber colocar bem uma idéia, mas colocá-la da forma correta. Fan-fictions com muitos erros gramaticais são um convite para as pessoas desistirem de ler a história até o fim. Se uma história fraca é ruim, uma história cheia de erros gramaticais e palavras com a grafia errada é pior ainda. Não tenha medo (ou preguiça) de consultar o dicionário cada vez que tiver uma dúvida. O português não é uma língua simples, e dúvidas quanto a grafia de palavras, principalmente quando envolvem ss, ç ou s são totalmente normais.

Mas não se esqueça, é claro, de reler pensando na estrutura da história, em como um determinado personagem age (está dentro do que ele é na série? Ele faria o que você está escrevendo? Como ele se comportaria em dada situação, o que ele falaria?).

Mais dois pontos importantes: um deles é definir em que tempo verbal se passa a história, cuidando para não fazer uma salada temporal à la Brannon Braga! A segunda coisa é com relação ao ponto de vista de quem escreve. Defina isso e não mude no meio da história, principalmente se ela for contada em primeira pessoa.

Algumas regras adicionais:

- Se o seu personagem tem que agir fora de seu perfil estabelecido na série para que sua história funcione, então sua história NÃO funciona.

- Coloque a qualidade do seu trabalho acima do seu ego: em outras palavras, aceite as críticas e procure melhorar seu trabalho através delas. Escritores de fan-fiction não são profissionais, portanto não ache que, apesar de escrever bem, suas fics serão perfeitas. Críticas construtivas são na maior parte das vezes melhores do que elogios. É claro que você não precisa aceitar e concordar com tudo o que uma pessoa está dizendo, mas não tome críticas como um insulto pessoal. Agora, se você não for capaz de olhar para seu trabalho criticamente, você nunca melhorará como escritor.

- Aceite o fato de que nem todo mundo que pega numa caneta e começa a escrever -- não importando quão boas sejam suas qualidades -- tem talento. É a dura verdade, mas nem todo mundo tem talento para escrever. Você pode aprender alguns métodos, pode estar bastante entusiasmado, ser uma pessoa maravilhosa, mas no fim, algumas pessoas não são escritores. Sim, escrever fan-fictions é coisa de fã, mas não é porque a sua motivação é amor, e não amor e dinheiro, que seu trabalho não tem que ser o melhor possível. Pense bem antes de publicar um trabalho seu na internet, dê suas histórias para outras pessoas lerem, ouça suas críticas, seus elogios, faça revisões, ou seja, faça o melhor trabalho que puder.

Qual a diferença entre histórias alternativas, universos alternativos e universos paralelos?

Histórias alternativas são aquelas que fogem em algum ou vários pontos do que foi estabelecido nas séries, ou seja, fogem do que seja canônico (estabelecido em filme ou episódio). Por exemplo, em sua história Dax e Bashir já se conheciam da época da Academia, mesmo que o episódio "Emissary" tenha estabelecido que foi ali que se viram pela primeira vez.

Universos alternativos podem ser considerados aqueles envolvendo os fatos ocorridos no episódio da Série Clássica "Mirror Mirror" e em Deep Space Nine, "Crossover", "Through The Looking Glass", "Shattered Mirror", "Ressurection" e "The Emperor's New Cloak".

Universos paralelos são dimensões paralelas simultâneas. Pense como se fosse Jornada nas Estrelas encontrando "Sliders": diversos universos paralelos, que em algum ponto divergiram do universo cânone visto nos episódios. Também vale dizer que universos alternativos tendem a ter diferenças com relação ao universo canônico trazidas por um indivíduo, enquanto universos paralelos tendem a envolver mudanças mais globais, como por exemplo, as que aconteceriam se a estação Deep Space Nine não tivesse sido retomada por Sisko em "Sacrifice of Angels", ou se Sisko tivesse escolhido ir embora em "Emissary".

Que papo é esse de "Machucar/Confortar" (Hurt/Confort)?

"Machucar/Confortar" é um gênero de fan-fiction no qual um personagem é ferido gravemente e essa experiência traz esse personagem mais para perto de outro -- usualmente acabando com os dois se envolvendo romanticamente. Um dos cenários mais comuns de "Machucar/Confortar" envolve estupro/recuperação. É também um dos gêneros mais comuns encontrado no cânone, assim como em fan-fictions.

Como em histórias de "Mary Sue", "M/C" é muito encontrado em autores novos e é frequentemente considerado como uma fórmula que se tornou muito clichê e demasiadamente usada.

Esse uso é comum pela natureza simplista da estrutura de história e é muitas vezes visto como um meio de levar dois personagens a se envolver romanticamente. O que não significa que não se deva escrever fan-fics desse tipo. Com certeza existem milhares de histórias envolvendo "M/C" que são muito bem escritas e que a grande maioria gosta de ler.

Ei, peraí. Quem é essa tal de Mary Sue?

"Mary Sue" é o termo genérico usado para classificar um personagem que se encaixe em uma das opções abaixo:

- uma versão ficcional do próprio autor;
- um personagem criado para ser o protagonista da história.

Nem todas as Mary Sues são "pecados". Mesmo que um bom escritor cometa este "pecado", se enquadrando numa das descrições acima, ainda se pode ter uma história que entretenha e seja muito bem escrita. Alguns exemplos disso são:

O livro "The Romulan Way", de Diane Carey;
O episódio "Lower Decks", da Nova Geração;
O personagem Reg Barclay (interpretado por Dwight Schultz).

Entretanto, vale um aviso: o personagem Mary Sue escrito por novos escritores costuma seguir o perigoso padrão de inserção do seu próprio que possui as seguintes características:

- ele é perfeito. Literalmente. Todo mundo gosta dele, ele pode consertar o núcleo de dobra com um palito e um sorriso, independente do fato de não ser um engenheiro, ele tem uma excelente voz para cantar etc.
- ele tem olhos violeta, treina artes marciais que faz com que Trinity de "Matrix" pareça coisa de criança e usualmente está dormindo ou é filho de alguém que todo mundo conhece e ama.
- ele é teimoso, cabeça dura, e sempre ganha no final, e sempre mostra a "eles" como o seu jeito é o melhor jeito.

Com relação ao gênero, não necessariamente Mary Sue é uma mulher. "Harry Stu" tende a ser forte, lindo, tem todas as garotas apaixonadas por ele, enquanto o capitão admira sua coragem, entre outras qualidades.

Maries Sues existem no cânone também. Wesley Crusher é a Mary Sue de Gene Roddenberry, Janeway é a da Jeri Taylor e Seven é a de Brannon Braga. Eles variam em graus, e não são sempre culpados por serem Maries Sues, mas exibem qualidades suficientes para encaixar como uma luva nesse rótulo.

Oh, meus Deus! Venho escrevendo Mary Sue minha vida toda! Devo parar de escrever para sempre?

Qualquer coisa que você escreva ajuda-o a tornar-se um escritor melhor, então não é necessário se apavorar. A grande questão de histórias de Mary Sue é que as pessoas que gostam de ler fan-fics estão interessadas em ler sobre os personagens que elas amam e conhecem, e não um desconhecido que chega do nada para salvar tudo e todos.

Mas por favor, não perca o entusismo, tente coisas diferentes, isso é sempre bom. Sem contar que nem toda história envolvendo Mary Sue é ruim. Com certeza existem algumas muito boas e interessantes.

Além disso, até profissionais escrevem suas Mary Sues, como por exemplo o capitão Mackenzie Calhoun, da série "Star Trek: New Frontier", do aclamado escritor Peter David. Calhoun tem todos os clichês de uma Mary Sue!

O que é um "leitor beta" (beta reader), e onde posso encontrar um?

Esse termo tem sua origem nos softwares. "Beta testers" são pessoas que testam versões de um software ainda não lançado oficialmente para encontrar bugs, dar sugestões etc. Basicamente, os leitores beta são pessoas que se dispõem a ler as fics antes de irem parar na internet. Eles podem ser muito importantes, pois podem ajudar com a correção ortográfica, gramática, erros de digitação, além de críticas construtivas sobre a história, os personagens, o que funciona, e o que não funciona (e como corrigir isso).

O Fórum do Trek Brasilis pode ser com certeza um local excelente para se encontrar leitores beta. É o habitat natural deles, para falar a verdade.

E então, o que está esperando? Vá até o Fórum, poste a sua mensagem e espere pelas respostas!

Para terminar, quais são os 14 mandamentos do escritor de fan-fics?

I. Quantidade não é sinônimo de qualidade -- histórias muito longas não necessariamente são as melhores. Contos de até mil palavras podem estar tão bem escritos que podem ser considerados um sucesso. Portanto não se prenda ao tamanho. Escreva aquilo que você acha que tem que ser, e não encha linguiça só para parecer que sua história é bem trabalhada.

II. Se um personagem nunca chamou outro pelo apelido, ou pelo primeiro nome, não é agora que ele o fará. Fique atento com esse tipo de coisa, para que sua história não perca a credibilidade. É claro que existem casos e casos. Durante um bom tempo, Kira nunca chamou Sisko de Benjamin, para isso acontecer uma primeira vez levou um certo tempo, e um amadurecimento do relacionamento dos dois. Isso pode acontecer durante a sua história, desde que bem embasado.

III. Evite colocar músicas do nosso tempo em suas histórias. A não ser que seja extremamente inteligente e original. Sim, existem exceções para cada regra, mas nesse caso elas são muito raras. A não ser que você tenha uma razão sólida, ou um jeito inteligente de utilizar esse velho clichê, fique longe.

Realmente é tentador utilizar aquela música favorita numa determinada história, mas, no fim, existem tantas fics nesse estilo que acabam sendo classificadas imediatamente de clichê. Não que clichês sejam ruins, existem diversos episódios em Jornada mesmo que abusam de clichês. Mas, podendo escrever algo original e diferente do que estamos acostumados a ver nos episódios, por que não?

Existe uma diferença com relação à música em fics. Primeiro, ela pode ser usada dentro da história, e segundo, a história pode ser baseada nela. Com relação à primeira, lembre-se de que você precisa explicar muito bem por que um personagem de Jornada iria se interessar por música pop do século 20. Por exemplo, é sabido que Tom Paris tinha interesse pelas décadas de 1930 a 1960, mas daí dizer que ele gosta de Beatles pode ser forçar a barra um pouco demais. Portanto, pense bem antes de embarcar nessa!

Agora, se você acha que uma determinada música combina muito com um personagem, tente, por exemplo, colocar a música ao final da história, e não necessariamente no meio dela. Agora, se a história pode ser levada sem um conhecimento prévio da música, na qual ela se baseia, então talvez você nem precise dessa música!

IV. Ortografia conta.

V. Gramática conta mais ainda.

VI. Se você pesquisar sobre o que estará falando, com certeza sua história será melhor construída. Trate o universo de Jornada como qualquer parte de nossa própria história. Se você fosse escrever um conto que se passa em Fortaleza, com certeza você teria que pesquisar sobre a cidade, locais onde a ação se passa, etc. Faça o mesmo com o universo de Jornada.

VII. Se você for escrever sobre viagens no tempo, seja cuidadoso. Cuide para que você possa explicá-las, do contrário os leitores ficarão confusos. Uma boa dica é examinar suas histórias favoritas de viagem no tempo e estudar como elas funcionam (ou não funcionam, na sua maioria).

VIII. Não se apresse para terminar uma história somente para publicá-la numa certa data, ou para ser o "primeiro" a escrever um tipo particular de história. Dê o tempo necessário para que ela saia da melhor maneira possível.

IX. Não é porque uma história teve boa aceitação que você precisa se sentir na obrigação de dar continuidade. Faça isso apenas se você se sentir apto a escrever. Do contrário, a história dificilmente terá a qualidade da primeira, e também não será algo prazeroso para você mesmo. Como já foi dito antes, coloque seu ego de lado nesse caso também.

X. Leia a história alto. Fazendo isso você pode saber melhor se um diálogo está muito polido, ou se soa muito estranho. Além disso, é um bom meio de se descobrir erros de digitação, entre outros, que escaparam inconscientemente quando se está somente lendo.

XI. Não tenha medo de deixar uma história de lado por um tempo. Às vezes isso pode ser um poderoso instrumento, para dar uma perspectiva nova ao que se vinha escrevendo. Quando se está em cima de algo por muito tempo, fica difícil ter uma visão crítica do seu trabalho. O mesmo vale para antigos textos, de seis meses, um ano. Não há nada de mal em voltar neles após esse tempo e melhorá-los redigindo alguma parte.

XII. Diálogo é crucial, e ser capaz de capturar o "tom" de um personagem pode ser muito difícil. Cada personagem tem um estilo de falar, um comportamento, sensibilidades. Gaste tempo assistindo a seus episódios favoritos e preste bastante atenção no que o personagem diz, em como ele diz e quando. Ter ouvido para diálogo não é fácil assim, nem tam pouco um talento que possa ser adquirido facilmente. Portanto, trabalho duro, observação e até mesmo roubar pedaços de diálogos de episódios podem ser o caminho para esse aprendizado. Leia o que você escreveu, e se pergunte, "fulano falaria isso?" Preste bastante atenção para a escolha de palavras e como elas são ditas.

XIII. Se uma história empacar e simplesmente não estiver funcionando, não se preocupe. Deixe-a de lado por um tempo e retome mais tarde. Quem sabe você consiga seguir em frente. Se ainda assim não funcionar, não se desespere, nem todas as idéias funcionam. Abandone esse e parta para outra. Mas guarde aquilo que já foi escrito, sempre poderá ser aproveitado em algum momento! Você nunca sabe quando pode achar um jeito de fazer a história funcionar.

XIV. Tenha sempre em mãos um caderninho de anotações para escrever pedaços de diálogos ou idéias que eventualmente possam surgir enquanto você está na aula, no trabalho, no ônibus, ou em casa na cama. Você nunca sabe quando a inspiração pode aparecer!


Este Pequeno Manual foi escrito em sua maior parte com base no FAQ do site Star Trek Voyager: Lower Decks. Inclusive, lá você pode encontrar diversos links para outras páginas que tratam dos assunto aqui abordados, além de páginas com dicas de como escrever melhor (em língua inglesa, é claro).