Tenho nos últimos dois anos
acompanhado com interesse e carinho a exibição de uma série no
Brasil, e muitas vezes me pergunto por que. Como muitos críticos
apontam, esta série não apresenta arco de histórias, se
concentrando em desenvolver o começo, meio e fim de suas tramas
em um único episódio (e alguns raros episódios duplos). O
desenvolvimento de personagens a cada episódios é mínimo,
quando não nulo. Boa parte de cada episódio apresenta diálogos
carregados de conceitos científicos, muitos deles incompreensíveis
para a maioria dos espectadores, e são justamente estes conceitos
científicos que promovem a resolução da trama. Um episódio
padrão da série conta não uma, mas pelo menos duas histórias
diferentes, cada uma envolvendo um ou mais integrantes do elenco.
Em compensação, a cada semana somos brindados com efeitos
visuais fabulosos, de encher os olhos. A seqüência de abertura,
apresentando uma edição de imagens primorosa ao som de uma música
popular moderna imediatamente nos inspira a acompanhar cada episódio.
A preocupação com os conceitos científicos apresentados permite
que especialista façam parte da equipe de produção,
assessorando permanentemente os roteiristas. Uma legião de fãs
existe na internet, esforçados em criar guias de episódios,
compilar informações, e escrever fãs fictions. Os mais
apaixonados debatem se um dos personagens se envolverá
sentimentalmente com o personagem A ou o personagem B. Seu público
fiel inclui cientistas de instituições renomadas como a NASA e o
MIT. E, principalmente, um forte merchandising leva a criação de
inúmeros produtos, dentre eles livros com tramas originais
baseadas na série, e outros explicando a ciência por trás dos
roteiros.
Não, não estou falando de Enterprise.
C.S.I – Crime Scene Investigation, estreou na televisão
americana em 2000, fruto da imaginação de Anthony E. Zucker, o
criador de série, e do produtor Jerry Bruckheimer, mais famoso
pela produção de filmes como “Armaggedon”, “A Rocha”,
“Con-Air” e “Pearl Harbor”. Apesar de apresentar muitas
das críticas que são feitas a Enterprise, a série
rapidamente se tornou um hit, galgando posições na audiência e
superando série populares como “Friends”. O sucesso foi tanto
que, com apenas dois anos de exibição, um primeiro spin-off foi
criado, “CSI Miami”, que consegue obter índices tão bons
quanto os da série original e tem mantido o pique, já em sua
segunda temporada. Sua popularidade cresceu influenciando
conhecidos fãs de Jornada, como por exemplo os responsáveis pelo
grupo de sites Trek
Nation (que congrega, entre outros, os populares Trek
Today e Trek BBS), que criaram o site CSI Files.
Como podem, então, duas série que apresentam semelhanças básicas
em seus conceitos primordiais, apresentarem um desempenho tão
extremo uma da outra? È possível fazer uma comparação entre as
duas, e deste modo tentar entender onde Enterprise tem
falhado?
Sim e não. Antes de mais nada, precisamos destacar algumas
diferenças substanciais entre as duas séries. A primeira, e mais
importante, é em qual emissora são transmitidas. C.S.I. é
exibida nos Estados Unidos pelo canal CBS, uma das maiores redes
do país, com cobertura Nacional, enquanto Enterprise é
exibida pela UPN, modesta rede que não abrange todo o país.
Deste modo, ao compararmos a audiência de ambas, é importante
lembrar que uma possuí um mercado potencial muito maior do que a
outra. Além disso, C.S.I. é um seriado policial, notoriamente um
gênero de grande popularidade dos EUA, e portanto apresenta uma
assimilação muito melhor entre o público do que um seriado
escapista de ficção científica.
As diferenças principais, porém, param por aí. C.S.I., tal como
Enterprise, foi criada com o desafio de vencer em um gênero
onde praticamente tudo já havia sido explorado. Nas últimas décadas,
a televisão americana permanentemente exibiu seriados policiais,
alguns de muito sucesso, outros fracassos retumbantes. Na televisão
moderna, principalmente em um gênero desgastado, a palavra de
ordem é inovar. E C.S.I. fez justamente isso, inovou.
O que é essa série? Basicamente, cada episódio mostra a
investigação de um ou mais crimes, normalmente homicídios. O
pulo do gato aqui, que garantiu a renovação do gênero, é que não
vemos um ou mais policiais entrevistando testemunhas e, ao final,
participar de uma perseguição ou de um tiroteio para prender os
culpados. Pelo contrário, os personagens principais nem sequer são
policiais, na real acepção do termo. São cientistas. A magia da
série é que ferramenta científicas reais são usadas para se
realizar a investigação. Normalmente, os únicos tiros vistos em
cada episódio são aqueles que criaram a vítima. Mas o mais
importante aqui é que toda ferramenta científica empregada é
real, e pode ser encontrada em uso; algumas vezes tal uso não é
tão comum, restrito por exemplo aos laboratórios do F.B.I, mas
ainda assim nada apresentado é irreal ou usado de forma irreal. Há
liberdades poéticas, claro, tais como um exame de DNA ser
realizado em questão de minutos. Mas tais liberdades resultam da
necessidade de se resolver o caso nos 45 minutos do episódio, e não
em criar artifícios onde o problema é resolvido magicamente no
último instante.
Mais ainda: a proposta da série é a de que o espectador
investigue os crimes junto com os cientistas. Cada uma das evidências
é apresentada ao público, assim como todos os suspeitos, ao
longo da investigação, e nos é dada a oportunidade de tentar
descobrir o criminoso junto com os personagens, ou mesmo antes
deles. Imagine que, a cada semana, temos a oportunidade de nos
perguntarmos “quem matou Odete Roithman”. Essa é a sensação
passada por C.S.I. O primeiro jogo baseado na série, lançado
inclusive no Brasil, mostra o quão transparente a série é: no
jogo, somos um dos integrantes da equipe de cientistas, e é nossa
responsabilidade investigar cinco casos distintos, usando as
mesmas ferramentas presentes no episódio. Mesmo sem sequer
entender os conceitos por trás dessas ferramentas, qualquer um
consegue, baseados apenas no que foi mostrado na série, realizar
a investigação e resolver os casos.
É curioso notar que Naren Shankar é um dos co-produtores
executivos. Para quem não lembra, Shankar foi editor de estórias
para A Nova Geração, consultor científico para Deep
Space Nine, e roteirista em Voyager (é dele o roteiro
do episódio "Heroes
and Demons”).
Se o formato original de Enterprise é muito semelhante ao
de C.S.I., os produtores da primeira falharam em vencer,
justamente, os mesmos desafios. Quando da criação da série, sob
os índices de audiência de Voyager, a proposta de Rick
Berman e Brannon Braga era, justamente, inovar. Criar algo
diferente de tudo o que já fora feito em Jornada. Justamente por
isso, a série foi criada para se passar no século 22, deixando
os roteiristas com uma certa liberdade de ação. Entre elas, o
fato de os humanos ainda estarem “engatinhando” na exploração
do espaço, e a inexistência da Diretriz Primeira. “Essa não
é a Jornada de seus pais”, declarou Rick Berman em certo ponto.
Tal inovação, porém, se restringiu mais a valores estéticos do
que a conteúdo. Uma sensualidade maior foi embutida na série
desde o seu primeiro episódio, com a infame cena da câmara de
descontaminação. A seqüência de abertura ganhou uma canção
pop, com o intuito de modernizar a série e criar um vínculo
maior com nossa realidade. Uma dose maior de conflito do que em séries
predecessoras foi criado, principalmente entre humanos e vulcanos.
Com relação a conteúdo, porém, pouco foi desenvolvido para
realmente diferenciar a mais recente encarnação das demais.
Muitos episódios poderiam facilmente terem sido escritos para Voyager
ou A Nova Geração.
E um dos maiores defeitos de todas as séries continuou existindo:
episódios escritos com base em High Concepts, com resolução
baseada em conceitos pseudo-científicos que surgem como mágica
no último instante. Muito em cada episódio de Enterprise
acaba caindo num padrão já conhecido, e o fato de ser Jornada, e
todo mundo já ter visto algo assim antes, acaba afugentando a
audiência.
Se Berman e Braga perceberam isso, é incerto. A terceira
temporada apresentou, por um lado, um esforço de se criar um arco
de histórias, fugindo do conceito inicial de episódios com trama
fechada. Simultaneamente, porém, a sensualidade na série foi
ampliada, culminando na exibição das nádegas de T’Pol, no
episódio “Harbinger”. A série, em si, continuou a
mesma, apenas com uma mudança em sua premissa original. Uma das
principais críticas, porém, continua sem solução: Jornada
sempre foi um modo de explorar a condição humana sob um invólucro
de ficção científica, e tal estudo até o momento tem aparecido
de modo bem esparso.
C.S.I., também, teve de vencer um grande desafio para manter sua
audiência: vencer as limitações de sua proposta. Por mais
crimes distintos que possam ser criados, se a série se
concentrasse em uma estrutura definida, e repetida episódio após
episódio, seu sucesso seria efêmero. Entra aqui o maior trunfo
da série: seus produtores e roteiristas não têm medo de se
arriscar. Discussões pertinentes são levantadas nos episódios,
tais como racismo, porte de armas, política, drogas, delinqüência
juvenil e pena de morte. Não há receios em se mostrar crianças
criminosas com tanta malícia quanto adultos. Nada é sagrado para
os roteiristas. O episódio da segunda temporada, “Cats in the
Craddle”, mostra uma menina que mata sua vizinha apenas para
ficar com seu gato, sem qualquer remorso ou ressentimento. Na
quarta temporada, o episódio “Homebodies” mostra um homem
que, ao dar um tiro para o alto no quintal de sua casa, acaba
matando uma mulher do outro lado da cidade. Os comentários da
equipe, enquanto interrogam os suspeitos e trabalham as evidências,
nos levam a pensar, justamente nos absurdos de nossa sociedade.
E, cereja no bolo, nem sempre o responsável é descoberto. Nem
sempre as evidências são suficientes para se prender um
assassino. Muitos dos episódios são escritos baseados em casos
reais investigados por detetives forenses, o que provoca uma relação
de proximidade de certo modo assustadora: e se isso acontecesse
comigo?
E, se em Enterprise temos o estereótipo de capitão heróico,
um líder nato, criado justamente para se manter fiel aos demais
segmentos da franquia, C.S.I. não podia ter um protagonista mais
atípico: Gil Grisson (William Petersen) é um cientista excêntrico,
com sérias dificuldades de comunicação com os membros de sua
equipe, com seus superiores e com a mídia. Vive em um mundo
recluso, com sua coleção de insetos, e muitas vezes sequer
percebe os atritos que causa em sua equipe. Um personagem humano,
repleto de falhas, mas com uma características importante: sua
inteligência. Ele é o melhor dos investigadores, capaz de bolar
experimentos diversos para comprovar suas teorias, com percepção
para detectar evidências onde nenhum de seus companheiros
consegue. Essa dicotomia entre ser um homem repleto de defeitos, e
ainda assim brilhante, mais uma vez aproxima o público, que
consegue se identificar prontamente com o personagem.
C.S.I é, então, melhor que Enterprise? Ou possui um
conceito melhor? Isso não pode ser dito. O que é importante
notarmos é que apesar de possuir limitações muito semelhantes
às de Enterprise, os responsáveis por C.S.I. conseguem,
facilmente, vencer estas limitações com roteiros inteligentes,
bem estruturados, ousados e imprevisíveis. Essa é a grande
diferença entre as duas série. Os produtores de Enterprise
deveriam tentar seguir este caminho, antes de apelarem para a
nudez de seus personagens.
Fernando
Rodrigues da Silva é
co-editor do Trek Brasilis e acredita que as evidências nunca
mentem.