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Alienígenas aos trancos e barrancos

Escrever uma pré-sequência não é um desafio simples. Se for de algo monumental, como Jornada nas Estrelas, com mais de 600 episódios produzidos, fica mais complicado ainda. Porque não depende apenas de se manter fiel ao que foi dito; implica também fidelidade ao bom senso.

Olhando desse ponto de vista, os produtores de Enterprise têm cometido acertos e erros na hora de introduzir alienígenas à série. A apresentação dos Andorianos, por exemplo, acertou em cheio, tanto em termos de compatibilidade visual com o que havia sido estabelecido, como no contexto histórico que conhecemos do século 22.



A nova maquiagem Andoriana deve ser recebida como a mais bem-sucedida tentativa em 35 anos de recriar o aspecto original desses alienígenas, mantendo a premissa clássica, mas ainda assim usando de toda a tecnologia moderna para tornar esses ETs mais interessantes do que nunca. Embora outras tentativas de recriar os Andorianos tenham sido feitas em "Jornada nas Estrelas - O Filme", "Jornada nas Estrelas IV - A Volta Para Casa" e na série A Nova Geração, nenhuma delas conseguiu ser tão fiel ao original quanto Enterprise. E nenhuma ousou criar um visual tão complexo para reproduzir a simplicidade clássica.

O fato é que funcionou. As múltiplas camadas de pintura, borracha e maquinário colocado sobre os atores deu aos Andorianos uma vida que jamais poderia ter sido imaginada antes. Os fãs agradecem de coração.

Já a introdução dos Klingons foi uma opção mais polêmica, mas ainda assim respaldada razoavelmente pelo que se conhece. Historicamente sua aparição é compatível --a única restrição se faz pela proximidade de seu sistema natal com a Terra. Em termos visuais, a dificuldade é impossível de driblar. Que visual escolher, o "cabeça-de-tartaruga", popularizado de "Jornada nas Estrelas - O Filme" em diante, ou o "Gêngis Khan de baixo orçamento" da Série Clássica?

A opção dos produtores foi a única possível, tendo em vista a maior popularidade do visual moderno dos Klingons e o maior apuro técnico. O que não quer dizer que a decisão não tenha sido polêmica. Apenas significa que era justificável.

Infelizmente nem tudo até agora é justificável. A informação de que "Acquisition", um dos episódios do final da primeira temporada, terá uma aparição dos Ferengis destrói tudo que foi visto antes em Jornada nas Estrelas. Não em termos de cronologia, uma vez que Archer e cia. jamais saberão que foram abordados por Ferengis, deixando para Picard e cia. fazerem o "primeiro contato oficial" em "The Last Outpost", mas em termos de bom senso. É muito difícil acreditar que os Ferengis --maiores defensores do comércio galáctico e, por definição, altamente sociáveis-- tenham permanecido nas redondezas por dois séculos inteiros sem serem contatados.

A impressão que A Nova Geração passava dos Ferengis é que eles vinham de um sistema distante da Terra que só agora, com o avanço da exploração humana, estava acessível aos cidadãos da Federação. Enterprise contradiz essa noção, mostrando que eles estão logo ali na esquina. Isso é decepcionante, não só do ponto de vista de implosão da coerência interna do universo de Jornada nas Estrelas, mas principalmente na demonstração de que os produtores parecem não conseguir se desvencilhar de suas raízes no século 24.

Alguém poderia defender os produtores, dizendo que, se por um lado há alguns problemas de coerência na inserção de alienígenas típicos de outras eras, como os já vistos Nausicaans e os em vias de chegar Ferengis, por outro seria muito mais estranho se a Enterprise (NX-01) encontrasse 170 novas espécies das quais jamais ouviríamos falar no futuro. E, como eles têm no minimo 182 episódios para produzir (o equivalente a sete temporadas), é de se supor que eles façam uso extenso do que já foi visto antes.

Parece até razoável, mas é importante notar que esse raciocínio parte de uma premissa falsa: de que são precisos centenas de alienígenas, conhecidos ou não, para completar a série. Essa noção, muito embutida nos produtores em razão da experiência com Voyager, cujo conceito implicava essa idéia de "alienígena da semana" (a nave nunca parava na mesma região do espaço), poderia e deveria ter sido abandonada na transição para o século 22.

"Babylon 5" se fez uma excelente série e criou um magnífico universo fictício usando apenas um punhado de raças. E essa seria a abordagem que eu esperaria de Enterprise. Não é preciso ter "alienígenas da semana" aos montes para fazer uma boa série de ficção científica. Muito mais importante é a consistência e a profundidade com que esses alienígenas são mostrados.

Não falta boa vontade aos produtores de se manterem fiéis ao que Jornada mostrou. Falta apenas a estratégia correta. Comentários como os do roteirista Michael Sussman, por exemplo, dão amostras do que deve ser feito. Ele contou recentemente à "Star Trek: The Magazine" algumas das coisas que eles pensaram sobre trazer alienígenas da Série Clássica para Enterprise.

"Antes de decidirmos usar os Andorianos, todos nós falamos sobre fazer os Gorns da Série Clássica. Mas quando vimos o episódio, foi decidido por Rick Berman e Brannon Braga que estava muito claro de que a passagem do capitão Kirk foi a primeira vez que alguém tinha visto um Gorn. Então, por mais que quiséssemos vê-los, não se encaixa no que foi estabelecido, eles ficaram meio que fora de cogitação."

Se de um lado ele apresenta um problema, por outro, dá a solução. "Mas há muitos outros! Deixamos uma referência aos Telaritas em 'Civilization'. Adoraríamos ver os Telaritas."

A pergunta que fica é: qual a diferença entre o primeiro contato de Kirk com os Gorns e o primeiro contato de Picard com os Ferengis? Só Berman e Braga sabem...

O fato é que seria muito mais saudável a Jornada nas Estrelas se Enterprise fornecer um insight profundo sobre as raças dos tempos da formação da Federação --temos Betazóides (eles são chatos, eu sei, mas pelo menos estão lá), Andorianos, Telaritas, Tholianos, Klingons, Vulcanos, Romulanos, Denobulanos, Axanar, Nausicaans, Órions e muitos outros-- do que trazer Ferengis, Fundadores, Borgs, Jem'Hadars. Eles são todos ótimos, mas não pertencem a esta série!

"Acquisition" pode se provar aidna um belo contorno à cronologia oficial, com argumentos convincentes para a aparição Ferengi, mas provavelmente é um passo na direção errada. "The Andorian Incident" e "Shadows of P'Jem", passos acertadíssimos. Por enquanto, entre mortos e feridos, Jornada sobrevive. Veremos até quando.

Salvador Nogueira, jornalista, escreve regularmente sobre
a nova série de Jornada nas Estrelas para o
Trek Brasilis