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Resgate da "boa" ficção científica

Ninguém é capaz de dizer que Jornada nas Estrelas não é a marca mais popular de ficção científica de que se tem notícia. Essa popularidade talvez dê ao franchise uma aparência de solidez que ofusca uma dúvida no mínimo incômoda: Jornada pode mesmo ser considerada "boa" ficção científica?

Embora muitos dos conceitos originais de Jornada tenham se convertido em realidade (quem nunca ouviu falar da velha comparação entre os comunicadores da série original e os telefones celulares que atire a primeira pedra), a verdade é que os aspectos tecnológicos da série servem apenas a seu conteúdo narrativo, sem grandes preocupações com a verossimilhança.

Um exemplo patente deste tipo de conveniência é a existência e operação do "tradutor universal", um equipamento portátil que acompanha nossos viajantes pela Via Láctea fornecendo tradução simultânea de línguas alienígenas. Na prática, ele é o responsável por todos os extraterrestre de Jornada falarem inglês.

A idéia é excelente para dar fluxo narrativo, evitando todas as dificuldades que envolvem o primeiro contato com outras culturas, mas está longe de oferecer uma visão consistente do que seria a exploração do espaço nos moldes da realidade.

A mesma coisa acontece com o teletransporte. Criado apenas para baratear a produção, esse sistema é um dos mais complexos e improváveis da história de Jornada. E tudo fica mais fácil por conta dele: saídas de última hora, fácil exploração planetária, sequestros não-autorizados...

Todos esses detalhes (e muitos outros) fazem parte da estrutura do universo de Jornada nas Estrelas desde sua criação. Agora, 35 anos depois, as forças criativas do franchise decidiram romper com esse esquema: entra em cena Enterprise.

Na nova série de Jornada, em pleno século 22 (cem anos antes de Kirk), não há tradutor universal, o motor de dobra é uma invenção relativamente recente (trata-se da única peça de equipamento realmente necessária em uma série de Jornada), o rádio subespacial começa a dar suas primeiras engatinhadas, assim como um sistema de gravidade artificial, e o teletransporte, embora já inventado, não costuma ser utilizado para levar grupos de descida de um local a outro. Em suma, os novos padrões tecnológicos são muito mais consistentes com o que será a exploração humana do espaço em um futuro previsível.

Há várias vantagens na mudança de formato. A primeira delas é que será preciso se livrar das velhas fórmulas. Menos tecnobaboseira, sem improvisações de última hora, sem velocidades inacreditavelmente altas e, mais importante, sem a Primeira Diretriz. Isso, inevitavelmente, trará novas soluções para os dilemas apresentados nos episódios, revitalizando as histórias --que precisam mesmo de uma sacudida após 526 episódios ambientados no século 24!

Os personagens também estarão mais próximos de nós do que de Picard, Data e cia., dando novas texturas à identificação entre a audiência e a tripulação da SS Enterprise. O novo visual fará a ponte entre as viagens do ônibus espacial à ISS (Estação Espacial Internacional) e a exploração pioneira realizada por James Kirk no século 23. Os uniformes terão bolsos, um logotipo da missão ficará preso ao ombro e a cor predominante é o azul, com evidentes conexões aos uniformes utilizados hoje em dia por astronautas da Nasa.

Ou seja, um novo conceito de verossimilhança está sendo adotado para Jornada nas Estrelas. Um que é muito mais adequado aos moldes da "boa" ficção científica do que o criado por Gene Roddenberry nos anos 60. E que, por incrível que pareça, é muito melhor para atender ao principal objetivo da Paramount: conquistar uma audiência maior do que a que Voyager obteve.

Muitas pessoas, inclusive fãs de ficção científica, acham Jornada nas Estrelas "forçada" demais. O novo paradigma oferecerá bases mais sólidas para esse público mais crítico e dissolverá parte do preconceito que existe em torno do franchise. Tudo isso sem se perder dos elementos que tornam a série especial e familiar para seus fãs atuais.

É um passo audacioso e tem tudo para dar certo. Resta agora apenas conferir se os roteiristas conseguirão aliar o novo modelo às melhores qualidades das produções anteriores de Jornada. A resposta começará a ser desenhada a partir de agosto.

Salvador Nogueira, jornalista, escreve regularmente sobre
a nova série de Jornada nas Estrelas para o
Trek Brasilis