Tirando
uma Enterprise da cartola
A
nova série de Jornada nas Estrelas, segundo consta, será
sobre as aventuras do capitão Jackson Archer no comando da
Enterprise, em pleno século 22. Quem é minimamente versado na
história do franchise ouviu essa premissa e passou um bom tempo
coçando a cabeça. Peraí, a primeira Enterprise não é aquela
do capitão Robert April, depois passada a Christopher Pike e
finalmente ao lendário James Tiberius Kirk?
É difícil de acreditar, mas não é. Lembra de todas as vezes
que você ouviu algum personagem se referir à Enterprise de Kirk
como a primeira? Pois é, eles estavam todos errados. A resposta
certa aparece em uma única referência em toda a história do
franchise, um detalhe escondido em uma cena do primeiro filme de Jornada
para cinema. Esta aqui:
Ainda não entendeu? Nesta cena, em que uma sonda com a forma da
tenente Ilia e o comandante Willard Decker batem papo na sala de
recreação da Enterprise, vemos um painel com cinco imagens.
Decker diz à sonda, "todas essas naves se chamam Enterprise".
No painel vemos uma caravela britânica, um porta-aviões, o ônibus
espacial da Nasa, uma nave desconhecida e a Enterprise de Kirk.
Ops, eu disse "uma nave desconhecida"? Pois é, esses
quadros no primeiro filme de Jornada são tudo que segura a
idéia de Rick Berman e Brannon Braga dentro da cronologia oficial
(ou "canônica", como dizem por aí) da série.
Será que podemos considerar um enfeite de cenário evidência
suficiente para dizer que há uma Enterprise anterior à NCC 1701,
apesar de 500 e tantos episódios parecerem dizer o contrário? A
resposta, por incrível que pareça, é "depende".
O maior desafio de Berman e Braga com a nova série será
"driblar" a cronologia. Não é apenas uma questão de
obedecê-la (pois isso provavelmente restringiria muitas
possibilidades dramáticas), mas de encontrar brechas por onde
eles possam justificar o que está acontecendo no século 22 sem
contradizer tudo o que foi estabelecido nos séculos 23 e 24.
Felizmente, essas brechas existem, para que seja realizado um
casamento (arranjado, sem dúvida) entre o fato de a nave de Kirk
(que foi antecedido pelos capitães Robert April e Christopher
Pike) ter sido a primeira em alguma coisa e haver uma outra
Enterprise antes dela.
Todas essas brechas são detalhes tão pequenos quanto o painel
que sustenta a tese da Enterprise do século 22. Uma delas diz que
a nave de Kirk não foi a primeira Enterprise, foi a primeira USS
Enterprise. "Ahhh, bom", respiramos aliviados.
Outra: a nave de Kirk não foi a primeira Enterprise, foi a
primeira Enterprise sob a autoridade da Frota Estelar. E, para
completar, a nave da Série Clássica é a primeira
"nave estelar" (starship) Enterprise. A que veio antes
era classificada como "nave espacial" (spaceship).
De posse dessas informações (leia-se, desculpas), os criadores
se permitiram narrar as aventuras da até então obscura nave
espacial Enterprise, em sua jornada rumo à formação da Federação.
E, convenhamos, eles conseguiram todas as justificativas de que
eles precisavam.
Agora, já que eles estão apostando todas as suas fichas no
painel de "Jornada nas Estrelas - O Filme", será
que eles vão mesmo levar esse painel totalmente a sério? Será
aquela nave, tal e qual está desenhada, o novo veículo espacial
de Jornada?
Claro que não. Em primeiro lugar, aquela nave é bem feia. Dê
uma olhada em como ela se parece, depois de uma revitalizada feita
pelo artista gráfico amador Andrew Hodges (e descoberta nos
confins da internet pelo incansável Gustavo Leão).
Em segundo lugar, dificilmente os produtores da nova série iam
convocar John Eaves e Herman Zimmerman, dois excelentes designers,
só para dizer: "dêem uma olhada, essa é a nave que vocês
vão criar". Há gente que aposta numa mescla de atitudes
--uma nave nova, criada com base em alguns elementos do painel.
Isso até é possível. A resposta definitiva, só saberemos em
alguns meses.
De qualquer forma, nem só de aparência vive uma nave espacial. O
que mais há para saber sobre esse veículo "canonizado"
por um painel-enfeite de Jornada I? Bom, na verdade, essa
pergunta oferece duas respostas diferentes.
A verdadeira é dada na Enciclopédia de Jornada nas Estrelas,
escrita pelo maior historiador trekker de todos os tempos, Michael
Okuda. Além de ser designer das séries de Jornada, Okuda
passa seu tempo com a esposa vendo todos os episódios que pode,
tomando notas e escrevendo livros de referência sobre Jornada
nas Estrelas. Além de "Star Trek Encyclopedia", o
artista tem crédito por "Star Trek Chronology", o livro
semi-oficial contendo a história de todas as séries.
Segundo Okuda, a SS Enterprise na verdade é uma nave criada pelo
artista Matt Jefferies (sim, o mesmo artista que criou a
Enterprise clássica) para um piloto de uma outra série de ficção
científica criada por Gene Roddenberry. Como Gene não conseguiu
vender seu piloto, a nave ficou relegada ao esquecimento --até
ser incluída nos painéis de Jornada I, levando o design,
que estava morto e enterrado, ao estrelato, 21 anos depois.
Agora, a
resposta mais interessante (e cambaleante) vem do livro "Star
Trek Spaceflight Chronology", escrito por Stan & Fred
Goldstein, ilustrado por Rick Sternbach e publicado pela Pocket
Books em 1980. Esse livro é daqueles que os roteiristas de Jornada
nunca ouviram falar mas, mesmo assim, fazem questão de contrariar
todas as informações lá contidas.
Segundo a dupla Goldstein, a SS Enterprise, uma nave de
passageiros a serviço da Terra, operou entre os anos 2123 a 2165.
Há no livro uma longa lista de especificações técnicas, mas os
dados mais interessantes são os seguintes:
Comprimento:
300 m
Diâmetro: 210 m
Massa: 52,7 mil toneladas
Tripulação: 100 pessoas
Passageiros: 850 pessoas
Peformance
Alcance mínimo para cada vôo: 350 anos-luz
Alcance máximo para cada vôo: 1.200 anos-luz
Velocidade de cruzeiro: dobra 3,2 (32,8 vezes a velocidade
da luz)
Tempo padrão por vôo: 3 meses
Tempo máximo por vôo: 2,5 anos
Sistemas
Navegação: Leitor de Dobra Celestial
Comunicação: Rádio subespacial
Recreação: ginásio de gravidade zero, cinco salas de
jantar, três teatros, três clubes noturnos, observatórios
estelares na proa e na popa
Suporte de vida: Gravidade entre 0,2 e 1,2 da Terra,
atmosfera com 20% de oxigênio e 11% de umidade
Vida útil: Até 40 anos, se reformada para exploração
de longa duração
Engenharia e Ciência
Motor de Dobra Avançado de Segunda Geração
Combustível: matéria/anti-matéria, na proporção 10/1
Seções de habitação e motores separadas para aumento
de eficiência
Melhorias e inovações
Primeira classe de nave equipada com rádio subespacial
Mais popular nave de passageiros de sua época
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Obviamente, poucas (possivelmente
nenhuma) dessas especificações irão sobreviver ao lançamento
da nova série. De cara, já podemos destruir a noção de nave de
passageiros. A Enterprise do capitão Archer será uma nave de
exploração. Outros dados que devem cair são a capacidade de
transporte (950 pessoas é gente demais!) e o comprimento da nave.
De qualquer maneira, sejam quais forem as especificações técnicas
da nova velha Enterprise, ninguém deve se descabelar por conta da
cronologia. Já houve coisas muito piores em Jornada (como
a súbita mudança de aparência da raça Trill, ou a transformação
dos "Vulcanianos" em "Vulcanos") e ninguém
chorou por causa disso. Portanto, fiquem tranquilos --o terremoto
já passou, e, ao que tudo indica, o franchise vai sobreviver.
Que venha a SS Enterprise!
Salvador
Nogueira, jornalista, escreve regularmente
sobre
a nova série de Jornada nas Estrelas para o Trek
Brasilis
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