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O futuro de Jornada nas Estrelas?

Durante a semana que passou, estive pensando muito no potencial cancelamento de Enterprise e no iminente fim de quase duas décadas de produção ininterrupta de novos episódios e filmes de Jornada nas Estrelas. Confesso ter tido sentimentos confusos a respeito disso.

Tenho a impressão de que a maioria das pessoas irá concordar com o fato de que a terceira temporada da mais nova série da franquia foi a melhor até agora. Não que tenha sido estupenda, ou mesmo comparável aos melhores momentos da história de Jornada, mas ao menos apresentou um foco mais definido e desenvolveu uma linha consistente de histórias, oferecendo, vez por outra, alguns toques de brilhantismo ("Similitude" é o que vem à cabeça quando falo isso).

A despeito da melhora, a concorrência com "Smallville", série baseada na adolescência do Superman, não tem dado a Enterprise nenhuma chance de manter a rede UPN à frente de sua concorrente direta, a WB. Em outras palavras, embora Jornada siga sendo um dos programas de maior audiência na rede de TV da Paramount, ainda assim não rende suficientes frutos para ser mantida --especialmente considerando os altos custos de sua produção.

Olhando pelo prisma da UPN, Enterprise não mereceria sequer um quarto ano. Por outro lado, se a Viacom (companhia que possui tanto a UPN, como a Paramount Pictures, além de Blockbuster, MTV, CBS y otras cositas mas) souber orquestrar bem os interesses conjuntos de suas empresas afiliadas, fará com que a série ganhe ao menos mais uma temporada. Com isso, o programa poderia, após a exibição em rede, ganhar o circuito de syndication e fazer mais alguns tostões, antes de ir ao mercado de DVDs.

Tendo a crer que é isso que vai acabar acontecendo. A não ser que Enterprise subitamente se torne uma febre e amplie largamente o espectro de sua audiência, considero improvável que ela atinja a marca de sete temporadas, como o fizeram A Nova Geração, Deep Space Nine e Voyager. Será a primeira vertente televisiva da franquia a ser prematuramente cancelada desde o fim da Série Clássica, em 1969.

Claro, já desde o final de Deep Space Nine muitos fãs têm procurado apontar culpados para a decadência. Rick Berman e Brannon Braga foram universalmente eleitos como os "anti-cristos" de Jornada nas Estrelas. As principais críticas são a falta de respeito ao espírito original da série criada por Roddenberry e o total vácuo criativo sobre o qual estariam sendo construídos os episódios e a mitologia do programa.

Com efeito, é inegável que não parece mais haver "gás" na atual equipe de produção para gerar segmentos realmente originais --na onda dos ambientalistas, a reciclagem parece ser a palavra de ordem no estúdio de filmagem e, sobretudo, no escritório dos roteiristas. Em contrapartida, tenho sérias dúvidas de que esse seja o real problema na decadência de Jornada nas Estrelas.

Temo que a situação seja muito mais complicada e, no momento, simplesmente incontornável. A verdade é que o público comum --aquele não composto por fãs ultra-especializados e que perfaz a grande audiência dos canais de televisão-- simplesmente não agüenta mais Jornada nas Estrelas. São duas décadas de produção ininterrupta, com vários anos de exibição simultânea de até duas séries diferentes! Com ou sem "Jornada nas Estrelas" no nome, ninguém em sã consciência pode acreditar, mesmo num nível subconsciente, que uma nova produção baseada nesse universo ficcional tenha um propósito criativo, em vez de ser mais um caça-níqueis de uma empresa que quer sugar uma marca até sair o último centavo. Ninguém hoje acredita que Jornada nas Estrelas tenha uma justificativa para continuar sendo produzida.

Caso isso seja verdadeiro (e acho que a audiência parece demonstrar o fato semana após semana), não há nada que Rick e Brannon possam fazer com Enterprise para torná-la um sucesso. Ela está realmente condenada.

E a situação passa a ser análoga à do cancelamento da Série Clássica. Numa tentativa desesperada de salvar o programa, em 1968, os produtores acabaram "idiotizando-o", na tentativa de torná-lo mais atraente ao público. Felizmente a estratégia não deu certo e a série acabou cancelada, salvando essa espetacular criação de se tornar um pastiche que se tornaria mais e mais estúpido a cada nova temporada. O terceiro ano da Série Clássica é considerado a pior, mas ainda manteve dignidade suficiente para que um dia Jornada nas Estrelas pudesse renascer e se tornar o incrível sucesso que acabou sendo.

Diante dessa bela lição tirada do próprio passado da franquia, tudo que posso esperar de Rick e Brannon é que eles não caiam na mesma armadilha de seus predecessores e não "idiotizem" a série a ponto de me fazer desistir dela. Talvez seja uma tola esperança, pois até agora a dupla B&B já deu vários sinais de que tem um plano consistente de estratégias esdrúxulas para tentar "salvar" seu programa. Mostrar T'Pol nua e constranger os personagens têm sido as rotinas favoritas até aqui. Nada que não possa ser superado, mas é bom lembrar que isso não é razão para otimismo: sempre dá para ficar pior.

De toda maneira, com a honra mais ou menos intacta, acho que poucos seriam capazes de ir contra a idéia de que o ciclo de sucesso de Jornada nas Estrelas está chegando ao fim. Mesmo considerando o mais otimista dos cenários (Enterprise resiste a sete temporadas), não vejo a Paramount embarcando imediatamente na produção de um outro programa baseado na franquia. E a cinessérie também está longe de ser retomada, com o fiasco de "Nêmesis".

E então chegamos aos meus sentimentos confusos. Por um lado, acho positivo que Jornada possa dar uma parada antes que se torne degradada demais para manter algum respeito diante do público. Por outro, não sei bem quais são as implicações para o futuro desta paixão que, afinal de contas, nos reúne diariamente aqui no Trek Brasilis. Se as produções forem interrompidas, os fãs simplesmente vão voltar para casa, cabisbaixos, esperando dias melhores?

Até uns dias atrás, eu temia que essa resposta fosse afirmativa. Hoje já não temo mais. E o que me fez mudar de idéia foi a iniciativa de alguns fãs extremamente dedicados localizados em Nova York, nos Estados Unidos. Esse grupo acaba de concluir a produção de um episódio inédito da Série Clássica de Jornada. Kirk, Spock e McCoy estão de volta a seus velhos postos, interpretados por novos atores. E, de alguma maneira, ao ver o episódio, pude sentir que a magia daqueles personagens e daquela série ainda está muito viva, a despeito de tudo.

Não foi o primeiro esforço realizado por fãs no sentido de produzir episódios de Jornada. Antes deles, já houve produções ambientadas no século 24 (feitas majoritariamente com atores em cenários digitais inseridos via uso de fundo azul) e pelo menos uma delas, "Starship Exeter", reproduzindo o estilo do século 23. Com a revolução digital, essas produções são as versões modernas das antigas fan-fictions, que tanto impulsionaram o interesse por Jornada durante o hiato de dez anos entre o cancelamento da série original, em 1969, e a estréia do primeiro filme de cinema, em 1979.



Em "Starship Exeter", alguns cenários foram reconstruídos, mas as histórias não se passam na Enterprise. A nave-título é comandada pelo capitão Garrovick e tem um primeiro-oficial Andoriano. Um episódio já foi lançado e pelo menos outros dois estão em produção. O projeto já foi objeto de reportagens em diversos veículos de comunicação nos EUA.

A mais nova produção na linha 'Jornada amadora', "New Voyages", promete expandir ainda mais esse potencial. Além de se aproveitar das bases sólidas da série original, o programa é extremamente refinado em termos de valores de produção. Praticamente todos os cenários da Enterprise original foram reconstruídos, com riqueza de detalhes, e os atores interpretando nossos personagens favoritos, embora distantes da qualidade dos originais, dão um sabor especial à produção.

Os efeitos especiais estão no nível do que se vê modernamente em produções profissionais. E os atores convidados, ao menos no primeiro episódio, são veteranos da Série Clássica! John Winston, que interpretou Kyle na série original, aqui é o capitão Matt Jefferies; Larry Nemecek, que já escreveu vários livros de Jornada, interpreta Cal Strickland; e Eddie Paskey, que interpretou o sr. Leslie, tripulante da série original, aqui aparece como o pai do personagem, almirante Leslie!

O primeiro episódio, "Come What May" é um sucesso absoluto. O site já registra mais de 1,5 milhão de downloads, no mundo inteiro. A equipe pretende lançar um DVD especial com o piloto, e toda a arrecadação será doada para um fundo assistencial de ajuda aos filhos dos astronautas mortos no acidente com o ônibus espacial Columbia. Não há lucro envolvido, enfatizam os produtores, na tentativa de evitar um processo da Paramount.



A equipe já está ativamente envolvida na produção do segundo episódio da série, que deve ir ao ar em 3 de julho deste ano. Em dezembro, deve chegar o segundo episódio de "Starship Exeter", outra produção com sabor Série Clássica.

Claro, que ninguém faça o download esperando encontrar um "The City on the Edge of Forever"; ainda há uma distância enorme de qualidade entre esses episódios amadores e até mesmo a série Enterprise, em termos de roteirização e interpretação. Mas ainda assim se vê um potencial.

Resta saber se a Paramount vai deixar a festa rolar solta ou vai processar e coagir cada grupo de fãs que fizer uma coisa parecida. Se o estúdio for esperto, deve nutrir e incentivar esses "produtores" --contanto que eles não comecem a ganhar dinheiro à custa da marca, esse trabalho será instrumental para manter Jornada viva nos próximos anos, enquanto a franquia ainda não tiver recuperado força a ponto de justificar um produto comercialmente viável.

De um jeito ou de outro, os fãs mais uma vez estão provando que nada --nem mesmo a superexposição e a inabilidade de produtores e estúdios-- podem fazer morrer uma idéia tão poderosa quanto a que permeia Jornada nas Estrelas.

Sorte a nossa.

Salvador Nogueira, jornalista, escreve regularmente sobre
a nova série de Jornada nas Estrelas para o
Trek Brasilis