Aos
verdadeiros heróis do espaço
1º de
fevereiro de 2003
O celular toca. São 13h22. É o meu editor.
- É o seguinte. A Paula acabou de me ligar do jornal e disse que a Nasa perdeu contato com o Columbia. Eu sei que não é seu plantão, mas eu estou indo para lá agora. Como você costuma cobrir essas coisas, se você quiser ir para lá...
- Bem, eu vou ver aqui e, se for o caso, eu mando alguma coisa...
Ao desligar o telefone, só me ocorreu que, para variar, os jornalistas de plantão deviam estar exagerando. Caiu a linha entre a Nasa e o Columbia. E daí? Liguem de novo. Disso a achar que o ônibus espacial explodiu ou coisa do tipo... eu já vi os russos passarem várias horas sem contato com a estação espacial Mir e ela só caiu quando eles quiseram derrubá-la. E todo mundo sabe que o perigo dos ônibus espaciais é na decolagem. Deve estar todo mundo exagerando. Bah.
Não deu tempo nem de ligar o computador e o telefone volta a tocar, desta vez na sala. Logo vem o recado: "O Augusto quer falar com você, ele diz que tem uma notícia urgente". Eu já sabia o que era.
- Alô? E aí, Augusto, tudo bem?
- Tudo indo. Mas preciso te falar uma coisa. O que você ainda está fazendo aí? Vá para o jornal! O Columbia explodiu!
- Bem, o que eu tinha ouvido é que eles perderam contato com...
- Não, você não está entendendo. O Columbia explodiu. Põe na CNN, põe na CNN.
Então eu liguei a televisão. A imagem -- a trilha de fumaça constante e interminável, vagarosamente se dividindo em várias linhas paralelas, com clarões e espasmos ocasionais -- vai ficar na minha memória por pelo menos muitos anos. Possivelmente pela vida toda. E tudo que eu pude fazer foi repetir umas três vezes a frase, "O ônibus espacial explodiu".
E eu comecei a chorar. Aquela imagem, silenciosa, irrefutável. Os astronautas estavam mortos. Não havia o que debater. Não era uma perda de contato. Era uma nave espacial com sete bravos exploradores queimando na atmosfera da Terra. Diante dos meus olhos.
Pode parecer dramático, mas todos os entusiastas da exploração espacial (e estou certo de que muitos dos que estão lendo esse texto o são) sentiram exatamente a mesma coisa, em maior ou menor escala -- a sensação de que talvez nosso lugar não seja mesmo lá fora. A noção de que sete vidas foram perdidas pela presunção de que podemos dominar a natureza e de que o espírito humano é irrefreável.
De vez em quando, a natureza responde a essas pretensões dessa espécie bípede primata que calhou de ser inteligente -- normalmente com violência e contundência incontestáveis. Hoje, ela deu uma dessas respostas. Nossa falibilidade está ainda muito aquém da que precisaríamos para garantir que sair da Terra é um negócio seguro.
Talvez nunca o seja. Há duas semanas, entrevistei um astrônomo da Nasa chamado Donald Brownlee. Ele é o principal responsável pela missão Stardust, que está enviando uma sonda não-tripulada a um cometa para coleta de amostras. E Don pareceu muito convicto de que o lugar dos humanos é a Terra. Ele até aposta em viagens de ida e volta a Marte, asteróides ou outros objetos próximos. Mas nada como a noção grandiosa de "conquistar nosso espaço entre as estrelas".
A trilha de fumaça do Columbia me fez pensar, da forma mais dura possível, que talvez ele tenha razão. Talvez devêssemos mesmo parar de sonhar com o espaço e voltar a pensar na Terra e em como preservar a riqueza que temos aqui. Cada vez que uma desgraça como essa acontece, o sonho dos que, como eu, acreditam na ausência de limites para a expansão da humanidade morre um pouquinho mais.
É irônico que a maioria dos astronautas precise morrer para se tornar herói. Exceto pelos ícones Yuri Gagarin, Neil Armstrong, Buzz Aldrin e meia dúzia de outros figurões da conquista do espaço, ninguém lembra o importante papel que cada missão, que cada homem ou mulher que já foi ao espaço, tem no contexto da exploração espacial -- ou mesmo da história humana.
Eu mesmo admito a ignorância. Antes do acidente do Columbia, confesso só estar familiarizado com Ilan Ramon, e isso só por conta da publicidade em torno de seu ineditismo -- o primeiro astronauta israelense no espaço. Não fosse pela tragédia, eu provavelmente passaria a vida sem nunca ter ouvido falar de Rick Husband, Michael Anderson, Laurel Clark, David Brown, William McCool e Kalpana Chawla, os seis astronautas que morreram junto com Ramon enquanto o Columbia incandescente encontrava seu destino no solo do Texas.
E eles são heróis. E nos lembram agora que todos os outros que já voaram, e todos os que ainda estão por voar, também são heróis. São pessoas como essas que, na vida ou na morte, sustentam o mais ambicioso dos projetos humanos -- o de transcender sua própria origem e ampliar os limites de seu domínio além do que a natureza nos designou.
Não pela conquista. Não pela arrogância. Mas pela sabedoria de buscar um futuro melhor para a humanidade. A derradeira missão do Columbia tinha um caráter única e exclusivamente científico -- a meta era saciar a curiosidade, o desejo de aprender e a ânsia de poder melhorar a vida dos bilhões que vivem neste planeta. A bordo do veículo, os astronautas conduziram experimentos japoneses, canadenses, norte-americanos e europeus. Ilan Ramon havia nascido em Israel. Kalpana Chawla havia nascido na Índia. No espaço, não importa se você está numa nave americana, chinesa ou russa; a Terra é uma só e a humanidade é uma só.
Nenhum empreendimento humano conseguiu gerar mais esforço de cooperação entre diferentes povos que a exploração espacial. Com os satélites de comunicação, o mundo ficou menor; com as tripulações internacionais, o mundo ficou um só. E o mundo hoje chora a perda do ônibus espacial Columbia e de sua tripulação.
Em 1986 aconteceu uma tragédia similar, quando o ônibus espacial Challenger se transformou numa bola de fogo um minuto após o lançamento, matando seus sete tripulantes. Eu me lembro do fato, mas não posso nem começar a comparar o grau de envolvimento pessoal que tive com o episódio de então e o de agora. Mas a memória daquele dia negro, e os que se seguiram, ainda nos serve de lição. As mesmas sensações, as mesmas preocupações, as mesmas tristezas marcaram as duas tragédias. Na época, o programa do ônibus espacial foi interrompido por dois anos e oito meses. O pessoal na Nasa sofreu longos anos para recuperar a credibilidade perdida e trazer de volta às pessoas a idéia de que o sonho da conquista do espaço pode e deve ser uma realidade.
E eles conseguiram. Por 14 anos tivemos quatro a cinco vôos de ônibus espaciais anuais, todos com sucesso absoluto. Os ônibus espaciais levaram o telescópio Hubble à órbita terrestre, lançaram a sonda Galileo, realizaram inúmeros experimentos, visitaram a estação Mir e serviram à construção do maior projeto espacial conjunto da história da humanidade: a Estação Espacial Internacional.
Não podemos esquecer tudo isso ao lembrarmos os tristes eventos de 1º de fevereiro de 2003. A natureza nos desafia, e nós respondemos ao desafio. Tem sido assim desde que o primeiro homem pisou sobre a Terra e assim será até que o último seja banido do Universo. O acidente com o Columbia não foi o primeiro, nem será o último da história humana no espaço.
Talvez o lugar do homem não seja mesmo entre as estrelas. Mas gente como Rick Husband, Michael Anderson, Laurel Clark, Ilan Ramon, David Brown, William McCool e Kalpana Chawla acreditava que era. E a bravura e a determinação desses homens e mulheres são mais inspiradoras que qualquer atitude resignada ou conformista. Os sete tripulantes da missão STS-107 morreram pelo que acreditavam. E não morreram em vão.
Godspeed, Columbia.
Salvador
Nogueira, jornalista, escreve regularmente
sobre
a nova série de Jornada nas Estrelas para o Trek
Brasilis
|