No episódio “Tribunal”,
do segundo ano de Deep Space Nine, o Chefe O’Brien se
torna vítima de uma conspiração Cardassiana para condená-lo
por atos de terrorismo por ajudar os Maquis e, conseqüentemente,
manchar a imagem da Federação. É um excelente episódio, um dos
melhores da série, se apoiando em atuações memoráveis –
principalmente de Colm Meaney – e diálogos muito bem escritos.
É interessante também por mostrar o funcionamento do ordenamento
jurídico Cardassiano, muito singular, e seu papel perante a
sociedade.
O intuito desse texto será traçar um paralelo entre o fictício
sistema processual penal Cardassiano (visto no episódio) e o
sistema processual penal brasileiro, com ênfase à importância
do chamado Due Process of Law (Devido Processo Legal) e
explicando brevemente algumas garantias proporcionadas por nossa
Constituição Federal.
O Due Process of Law significa a observância estrita de
princípios processuais como a Busca da Verdade Real, Contraditório
e Ampla Defesa, Presunção de Inocência e outros, que serão
analisados mais à frente.
É de certa forma rara a utilização de palavras inglesas no
Direito Brasileiro, salvo no Direito Comercial, dando-se preferência
para expressões latinas. As expressões inglesas mais comumente
usadas são a Due Process of Law e a Fruits of Poisonous
Tree (“frutos de uma árvore venenosa”, para demonstrar
que o uso de provas ilegais pode macular todo o processo).
O presente texto será dividido em tópicos, dispostos de acordo
com os acontecimentos no episódio “Tribunal”.
1. O Direito de Permanecer em Silêncio:
“Tribunal” começa com O’Brien saindo de férias da estação
espacial Deep Space Nine em companhia de sua esposa Keiko. No
percurso, o Runabout é interceptado por uma nave Cardassiana com
ordem de prisão de O’Brien e o mesmo é levado sob custódia. Já
aqui no começo do mencionado episódio temos uma amostra do
sistema processual Cardassiano quando o oficial encarregado da
prisão diz a O’Brien que é direito dele permanecer em silêncio,
porém esse silêncio pode ser interpretado como sinal de culpa.
Durante séculos foi
muito comum, em diversas culturas de nossa história, a atribuição
de culpa pelo simples silêncio do acusado. Partia-se do princípio
de que se acusado fosse mesmo inocente, ele não se valeria do silêncio,
muito pelo contrário, usando de todas as formas possíveis para
comprovar sua inocência. Por incrível que possa parecer, o
Direito Brasileiro tinha – e ainda tem, logo explicaremos –
uma previsão muito semelhante no art. 186, do vigente Código de
Processo Penal, cujo texto diz: “Antes de iniciar o interrogatório,
o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a
responder às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio
poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa”.
O texto desse artigo
é contraditório, pois ao mesmo tempo garante o direito de silêncio
do réu, porém impõe ameaças pelo exercício desse mesmo
direito. É um verdadeiro absurdo. Imaginemos a situação de um réu
perante o juiz quando este último poderia dizer: “O Sr. tem o
direito de permanecer em silêncio, mas se o fizer...”; note-se
aqui o claro caráter intimidatório desse aviso. O texto legal
mencionado é originário de 1941, quando entrou em vigência o Código
de Processo Penal.
É regra em nosso
direito que se uma lei nova tratar diferentemente da mesma matéria,
expressa ou tacitamente, a disposição legal anterior resta
revogada. Foi o que aconteceu em 1988 ao entrar em vigor a nossa
atual Constituição Federal, que em seu artigo 5º, LXIII, prevê
que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o
de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família
e de advogado”. Essa disposição elevou a nível constitucional
o direito de silêncio do acusado.
A Constituição
Federal é a nossa Carta Magna, a principal fonte de
direito em nosso país, como poder de revogar todas as disposições
infraconstitucionais que lhe forem contrárias. Portanto, a partir
de 1988, passou-se a entender que o mencionado artigo 186, do Código
de Processo Penal, foi tacitamente revogado pela Constituição
Federal no que diz respeito ao aviso de que o silêncio pode ser
usado contra o réu, prevalecendo o entendimento de que não deve
o juiz proferir esse aviso ao assegurar o direito de silêncio.
O Direito de Silêncio também se desdobra no princípio nemo
tenetur se detegere, expressão latina que significa que o
preso não é obrigado a se auto-acusar.
Infelizmente constatou-se no episódio em análise que o absurdo
da situação de O’Brien, ao receber a indicação de que seu
silêncio poderia importar em culpa, não estava tão longe assim
de nossa realidade, tendo perdurado por um excessivo tempo entre
1941 e 1988.
2. Tortura:
Ao chegar em Cardássia, O’Brien é desprovido de suas roupas e
submetido à extração de amostra de seu cabelo e de um molar
dentário, prática comum em Cardássia, para fins de arquivamento
de dados sobre o prisioneiro, o que caracteriza em absoluto o uso
de tortura contra o preso.
Por tortura entende-se ser o ato de infringir a alguém intenso
sofrimento físico ou mental. Portanto, não é necessário o
emprego de sofrimento físico, caracterizando a tortura a imposição
de sofrimento inteiramente mental. O fato de O’Brien ser
submetido à nudez compulsória e ter um dente e parte dos cabelos
extraídos já é suficiente para caracterização de sofrimento físico
e, principalmente, mental.
A história da tortura no Direito remete à Antiga Roma tão
somente, e não à Grécia ou Esparta como muitos podem pensar. A
tortura era empregada basicamente para a obtenção da confissão
do acusado. Com a invasão dos povos bárbaros e o fim do Império
Romano, o uso da tortura sofreu modificações e não foi mais
empregada com tanta habitualidade como outrora.
A partir do Século XII, o Direito Romano ressurgiu na Europa e a
tortura voltou a ser empregada, sendo introduzida no Direito Comum
e, posteriormente, no Século XIII, no Direito da Igreja, que usou
e abusou dessa prática durante as inquisições.
Apenas no Século XVIII a tortura foi extinta como medida de obtenção
de provas, mas permaneceu em uso em Portugal e na Espanha até
meados do Século XIX.
No Brasil foram assinados diversos Tratados Internacionais onde
nosso país se comprometeu a abolir a prática de tortura, como a
Declaração dos Direitos do Homem da ONU, em 1948; a Convenção
Inter-Americana para Prevenir e Punir a Tortura, em 1985; e o mais
conhecido Pacto de São José da Costa Rica.
Nossa Constituição Federal contém vários dispositivos que
visam garantir a proteção contra a prática de tortura, como por
exemplo, “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento
desumano ou degradante” (art. 5ª, III) e “é assegurado aos
presos o respeito à integridade física e mental” (art. 5ª,
XLIX). É pertinente mencionar que o nosso Código Penal, também
de 1941, não prevê o crime de tortura, sendo que essa prática
somente se tornou crime tardiamente com o advento da Lei 9455, de
7 de abril de 1997. Antes disso poderia caracterizar os crimes de
lesão corporal ou de constrangimento ilegal se ocorressem os
resultados caracterizadores dessas infrações.
A tortura, prática nefasta, deve ser coibida de todas as maneiras
possíveis, por ser um ato de afronta contra a dignidade da pessoa
humana. No caso do emprego da tortura como forma de obtenção da
confissão do preso, embora se reconheça pacificamente pela
impossibilidade de alguém ser condenado unicamente com base na
confissão (como veremos mais adiante), tal pode prejudicar em
muito a sua defesa, principalmente nos procedimentos do rito do júri.
Aproveitando o ensejo de se ter mencionado o rito do júri, cabe
aqui a breve menção de que, ao contrário do que ocorre nos
Estados Unidos e estamos acostumados a ver no cinema e na televisão,
a competência do corpo de jurados no Brasil se restringe aos
crimes dolosos (intencionais) contra a vida: Homicídio, infanticídio,
aborto, participação no suicídio e genocídio. Esses são os únicos
crimes que serão julgados pelo Tribunal do Júri, que é composto
por sete cidadãos leigos sorteados para essa finalidade. Parte do
fundamento de que os acusados por esses crimes serão julgados
pelos seus pares.
3. Momento do conhecimento do teor da acusação pelo acusado:
No episódio em análise, O’Brien não pode conhecer o teor da
acusação que lhe é formulada até o momento do julgamento. Essa
também é uma prática de afronta contra a possibilidade de
defesa do acusado frente ao Estado acusador, pois não teria a
oportunidade de formular a tempo sua defesa antes do julgamento.
Em nosso ordenamento jurídico, via de regra, salvo nos casos de
flagrante ou decretação de prisão provisória ou preventiva, o
acusado toma conhecimento da acusação através da citação, que
é o ato pelo qual se chama o acusado perante o juiz para o fim de
apresentar a sua defesa.
Aqui no Brasil são garantias processuais absolutas o contraditório
e a ampla defesa. O contraditório, para facilitar a explicação,
se divide em contraditório substancial e contraditório formal.
Por contraditório formal entende-se ser direito do acusado de ter
ciência sobre todos os atos processuais praticados, seja sob
forma de citação ou intimação. Por contraditório substancial
entende-se ser o direito de apresentar defesa escrita, indicar
provas e arrolar testemunhas. Portanto, o contraditório significa
total participação no processo, com oportunidade de impugnar
todos os fatos apresentados pela acusação. A não observância
do contraditório pode levar à nulidade do processo, conforme
dispõe o art. 564, do Código de Processo Penal. Já a ampla
defesa significa a possibilidade irrestrita de se defender no
processo, salvo nos casos de provas consideradas ilícitas, seja
por sua natureza, seja pela forma de sua obtenção, que não
podem ser levadas em conta no processo, com exceção apenas em
casos extraordinários onde essa prova seja de suma relevância
para se provar a inocência. A ampla defesa também pressupõe a
presença do acusado nos atos processuais, sendo que se o acusado
não for encontrado e não tiver constituído advogado, ficará
suspenso o processo até que o mesmo seja encontrado.
No episodio, apenas pouco antes do início do julgamento,
O’Brien descobre que está sendo acusado de entregar torpedos à
facção terrorista Maquis para serem utilizados contra os
Cardassianos.
Enquanto isso, na estação Deep Space Nine, o comandante Sisko e
Odo passam a investigar a ocorrência e descobrem que O’Brien
– ou outra pessoa se passando por ele - usou seu comando de voz
para ter acesso à sala de armas e constatam o desaparecimento de
alguns torpedos.
4. Presunção Absoluta da Inocência:
O que chama mais a atenção no sistema jurídico cardassiano é o
fato do veredicto ser proferido antes mesmo do julgamento,
considerando o acusado sempre culpado. Então de que serve o
julgamento ? Como O’Brien vem a descobrir, o julgamento é
apenas uma forma de mostrar à população cardassiana como o
Estado prosseguiu em suas investigações, chegando à conclusão
de culpa. Portanto, verifica-se que o julgamento não é o momento
em que serão ouvidas a acusação e a defesa, com apresentação
de provas e inquirição de eventuais testemunhas, e sim apenas um
ato de ratificação dos procedimentos de investigação e condenação
perante a população, ou seja, o “pão e circo” do povo.
Ultrajante, no mínimo, é o que se pode chamar de tal
procedimento, pois não busca a verdade dos fatos e sim apenas o
senso (equivocado) pela população de que a Justiça foi feita.
A Constituição Federal Brasileira possui um dispositivo de suma
importância no processo penal no artigo 5ª, LVII, que diz que
“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado
de sentença penal condenatória”. Está aqui o Princípio
Constitucional da Presunção Absoluta de Inocência, ou seja, que
o acusado permanece na condição de inocente até a sentença
final onde não caiba mais nenhum recurso, que é o significado do
termo “trânsito em julgado”. E mesmo que alguém seja
condenado injustamente, sempre lhe é possível impugnar a condenação
através de uma ação chamada Revisão Criminal, sem prazo para o
seu exercício e assegurada a indenização pelo Estado pelo erro
cometido (se é que existe quantia que possa reparar os danos de
se manter um inocente em cárcere).
Também é importante frisar que o nosso direito processual penal
tem como intuito a chamada Busca da Verdade Real, ou seja, a
realização de todos os atos possível para se chegar à verdade
dos fatos da maneira como eles ocorreram, afastando-se presunções,
omissões e ficções.
5. Confissão como a Rainha das Provas?
Durante o julgamento de O’Brien, seu advogado Cardassiano, que não
visa defendê-lo, mas simplesmente propiciar o show que se espera
para agradar a população, tenta a todo custo obter a sua confissão,
mostrando à Corte que está arrependido dos atos criminosos
praticados, aliviando assim a sua consciência. O intuito dessa
fase do processo cardassiano é mostrar à população que o
acusado não pode manter sua posição “equivocada” de
inocente frente à infalível Corte, fazendo com que sua confissão
seja interpretada no sentido de que o acusado se ressente dos atos
atentatórios contra o Estado Cardassiano.
Na história do Direito, a confissão era considerada como a
Rainha das Provas, pois acreditava-se que tinha valoração
superior a qualquer outro meio de prova, principalmente por se
respaldar nas próprias palavras do acusado. Temerário era esse
pensamento, pois na maioria das vezes a confissão era obtida por
meio de ameaças e torturas. Inocentes eram condenados não porque
eram realmente culpados, mas sim porque não conseguiram resistir
ao sofrimento que lhes foi imposto. Sabemos que o homem-médio, ou
seja, o homem comum dentro dos perfis da sociedade, não resiste
às torturas e ameaças a que é submetido, confessando qualquer
coisa apenas para se livrar do sofrimento.
Hoje não se pode mais atribuir à confissão o caráter de Rainha
de Provas, assim como também não se pode de modo algum atribuir
valorações diferentes aos meios de prova existentes, como
inquirição de testemunhas, exame do corpo de delito, perícias,
provas documentais etc. As provas devem ser valoradas caso a caso
de acordo com poder de convicção do juiz ou dos jurados, que são
os destinatários das provas.
6. Admissão de provas em qualquer fase do processo / Novos fatos:
No episódio, Odo se voluntaria para oferecer assistência na
defesa de O’Brien. Como ele era oficial encarregado da segurança
na estação Terok Nor (atual DS9), recebeu atribuição para
oficiar perante os julgamentos, atribuição essa ainda vigente
mesmo após o término da ocupação cardassiano em Bajor. A
presença de Odo já é por si só um pesadelo para o advogado
Cardassiano nomeado para O’Brien, pois como já foi dito, ele
está interessado apenas na condenação de seu cliente, enquanto
que o Odo faz o possível para prolongar o julgamento em busca da
verdade dos fatos da maneira como ocorreram.
Em certo momento Odo se manifesta sobre os fatos obtidos de que
alguém falsificou a identificação de voz de O’Brien para
obter acesso ao compartimento de armas na estação DS9 e furtar
torpedos que seriam entregues aos terroristas Maquis. Nesse
momento, a Magistrada avisa a Odo que esse procedimento é
totalmente irregular, pois o momento do julgamento não é hora
para apresentação de novos fatos ou provas.
Em nosso Direito o procedimento é semelhante em alguns
procedimentos diferenciados, mas por outros fundamentos que não o
do sistema Cardassiano. No rito comum, por exemplo, é possível a
apresentação de documentos durante qualquer fase do processo. No
rito do júri, por outro lado, o artigo 475, do Código de
Processo Penal, dispõe que “durante o julgamento não será
permitida a produção ou leitura de documento que não tiver sido
comunicado à parte contrária, com antecedência, pelo menos, de
três dias (...)”. O intuito desse dispositivo é evitar que uma
das partes (acusação ou defesa) seja pega de surpresa com a
apresentação da nova prova, pois deve estar já preparada
durante o julgamento para se defender do teor das provas
apresentadas. Quanto ao novo fato, se for apresentado e seja
reconhecido como essencial para a decisão da causa e não puder
ser realizada imediatamente sua verificação, o juiz dissolverá
o conselho de sentença integrado pelos jurados e determinará as
diligências necessárias para a verificação desses fatos,
conforme dispõe o artigo 477, do Código de Processo Penal.
Ao final do episódio, Sisko descobre que um Cardassiano disfarçado
de humano gravou a voz de O’Brien e a modificou para obter
acesso à sala de armas. Resta comprovado que todo julgamento não
passou de uma armação para demonstrar ao povo cardassiano que a
Federação não era capaz de conter os atos terroristas dos
Maquis, sendo necessário o uso de força mais agressiva contra os
mesmos.
Conseguindo prender e desmascarar o Cardassiano, Sisko o leva
pessoalmente para Cardássia para apresentar a nova evidência
perante a Corte para demonstrar a inocência de O’Brien.
Quando a magistrada cardassiana vê o infiltrador ingressando no
salão de julgamento sob custódia de Sisko, imediatamente enxerga
o risco de toda a armação ser exposta perante o povo,
desacreditando o “infalível” sistema jurídico cardassiano.
Antes que o dano seja causado, ela imediatamente absolve O’Brien
sob a alegação de que o mesmo demonstrou ser uma pessoa honesta,
com fortes laços familiares e que sua absolvição caracteriza na
verdade uma reabilitação, mais importante do que uma condenação.
Suas palavras de absolvição são de uma hipocrisia única, mas
conseguem preservar, dubiamente, o crédito da Corte.
Concluindo, podemos constatar a importância de todas essas
garantias processuais e constitucionais presentes no Direito
Brasileiro, sendo imprescindível a sua observância em um
verdadeiro Estado Democrático de Direito.