Na recente entrevista concedida pelos
colunistas deste site, uma questão me chamou um bocado a atenção:
"Qual foi o melhor profissional da história de Jornada?".
Ao contrário do que alguns pudessem imaginar a princípio, o nome
de Gene Roddenberry, o criador da série e o nome mais visível de
sua história atrás das câmeras, praticamente não foi lembrado
nas respostas. Nesta coluna aproveito para expressar minha opinião
pessoal sobre a qualidade profissional de Roddenberry, sua real
importância na história de Jornada e a sua visão sobre o
que Jornada é --a famosa "visão Roddenberriana".
De fato, meu interesse aqui é construir uma
base para tornar mais claras (e contextualizadas) as opiniões
sobre Deep Space Nine que serão veiculadas mais a frente
em minha coluna.
A explicação é simples: DS9,
dentre todas as séries de Jornada, parece ser a que tem
maior "talento" para provocar discussões e polarizar
opiniões. Ela é considerada por muitos como a visão
"diferente" e "dark" do universo de Jornada.
Em especial, muitos críticos condenam a série por
"destruir" o universo idealizado por Roddenberry.
Quando rascunhando o que seria o artigo
desta semana (que agora se tornou o próximo artigo) eu constatei
que estava "falando grego" em certos pontos. Um artigo
de preparação se fazia necessário.
O título é uma brincadeira e vou utilizá-lo
para agrupar e indicar questões polêmicas no futuro desta coluna
(daí esta ser a "primeira parte").
Mas vamos ao que interessa, serei bastante
breve...
A qualidade profissional de Roddenberry
Alguns o chamam de "visionário", assim como Júlio
Verne. Eu não concordo. Toda a tecnologia de Jornada
deriva (muitas vezes descaradamente) da ficção científica clássica
e mesmo de questões de produção (os teletransportes foram
introduzidos para não termos um pouso de nave por episódio, para
minimizar custos), daí eu acho mais justo creditar a fonte
original da "especulação científica" quando algo
especulado em Jornada se materializa em nosso cotidiano
(como por exemplo os "celulares").
O
fato de Jornada ser mais massificada que a ficção científica
clássica não quer dizer que a autoria da especulação deva ser
dada a ela. Infelizmente vejo isto ocorrer vez após vez entre os
fãs da série. Surge uma acusação de plágio a Jornada,
quando na realidade a outra série em questão e Jornada é
que "beberam da mesma fonte".
De qualquer forma, considero a tecnologia em
Jornada, seja ela tendo origem em referências
especulativas literárias ou em limitações logísticas, bastante
consistente, no sentido de que ela pode ser utilizada sem
enfraquecer o drama subjacente nem causar gargalhadas involuntárias
na audiência.
Entretanto, devo admitir que o crescente uso
da famosa "treknobaboseira" (que tem suas origens na
quarta temporada da Nova Geração --e eu vou deixar para
vocês julgar se a entrada do Brannon Braga nos quadros de
Jornada nesta época tem algo a ver com isto), como um "método
eficiente" de tirar e colocar os nossos em heróis em confusão,
corrompeu um bocado as noções originais de Roddenberry sobre
como deveria ser a tecnologia de Jornada, que de fato era
(e é) excelente.
Eu
considero Roddenberry um roteirista medíocre. Compará-lo com um
mestre, como Rod Serling por exemplo, é completamente absurdo.
Seus roteiros são na maioria um tanto quanto ingênuos e forçados
ao extremo na "mensagem" a ser passada. Só consigo
destacar um único episódio escrito por ele, o piloto original de
Jornada, "The Cage", ainda assim
analisando-o como um piloto de série, descontando todas as óbvias
limitações a que um episódio dessa natureza está sujeito.
O episódio duplo "The Menagerie"
foi construído como um "envelope" para aproveitar o
material do "The Cage", para cortar custos. Este
episódio ganhou o prêmio Hugo (o Oscar da ficção científica)
sendo creditado como sendo escrito integralmente por Roddenberry,
quando na realidade o construtor de tal "envelope" foi
John D. F. Black, um outro produtor da série na época.
Um outro assunto correlato é o de que a série
original foi a única série de Jornada a contar com episódios
escritos por grandes nomes da literatura de ficção científica.
Isto é verdadeiro no máximo até o primeiro rascunho e às vezes
se resumia, no "frigir dos ovos", a um "Pitch".
O distanciamento da maioria destes autores
com a produção de uma série de TV era tanto que eram necessárias
maciças reformulações no material original (ainda que todo o
esforço fosse feito para manter o nome do autor original com crédito
de "written by", por motivos de prestígio para a série
e para fazer média com a comunidade literária). Os maiores
problemas com estes autores eram os elementos que levavam a orçamentos
ridiculamente acima da realidade de produção da série e
problemas na caracterização dos personagens (problemas de
"vozes", por exemplo). Quem rescrevia? Todo mundo com
algum tipo de crédito de Produtor ou Editor de Roteiros/Histórias.
A real importância de Roddenberry na história de Jornada
Ele criou Jornada nas Estrelas, mas este é o quadro geral.
Vamos aos detalhes.
Gene escreveu e produziu o piloto original
de Jornada, "The Cage", o exemplo mais
puro de sua visão. Em relação à Série Clássica, criou
e foi produtor responsável direto pelos roteiros (em ordem de
produção) até o episódio "Dagger of the Mind".
Daí em diante permaneceu creditado como produtor-executivo da série.
Uma
coisa absolutamente misteriosa era como Roddenberry tirava inúmeras
e longas férias da produção da série --quando já era somente
produtor-executivo-- e nunca tinha o seu crédito revertido para
consultor (o que é normal nestes casos).
Com relação à Nova Geração, ele
criou a série e tocou os roteiros na primeira temporada, mas
permaneceu creditado como produtor-executivo até o final da
quinta temporada (mesmo após a sua morte, que ocorreu durante
esta temporada).
Na segunda temporada os aspectos executivos
da série foram absorvidos em sua maioria por Berman e os
criativos por Hurley e Snodgrass. Roddenberry continuava enfiando
a mão aqui e ali, mas infinitamente menos do que na primeira. A
partir da terceira temporada uma situação se estabeleceu,
motivada por uma decisão pessoal ou pela sua doença, de ser de
fato consultor. Seu crédito só não foi modificado, acredito eu,
por carinho e respeito.
Quanto aos filmes, após a lambança de
bastidores do primeiro filme, Roddenberry foi colocado como
consultor nos filmes seguintes, para benefício de todos. Cinema não
era a praia dele, ele mesmo reconheceu isso antes de morrer.
Ele não tem nada a ver diretamente com DS9
ou Voyager.
Algo sobre a famosa "visão Roddenberriana"
O próprio Gene nunca foi claro em "escrever as leis básicas
do universo de Jornada" (na realidade nunca pareceu
dar duas opiniões iguais sobre o assunto, o que é provavelmente
o maior problema de todo este assunto --O PRÓPRIO RODDENBERRY
NUNCA FOI CAPAZ DE FECHAR A QUESTÃO), por isso aqui vai um
apanhado básico do exposto em tela. Não são regras que se
aplicam em cada situação mas observações provenientes
da minha continua exposição à série.
- Uma visão otimista do futuro. Nos anos 60
o medo de um holocausto nuclear era extremamente concreto (o próprio
Roddenberry fez tal holocausto parte da história de Jornada),
as pessoas temiam REALMENTE pelo futuro da humanidade, mostrar
semanalmente um futuro utópico de paz e exploração, com ausência
de preconceitos, era um convite ao mesmo tempo ousado e irresistível.
Talvez a real grande contribuição de
Roddenberry a Jornada.
- O ser humano é uma entidade ao mesmo
tempo insignificante perante o universo e ao mesmo tempo única e
especial em si mesma. Falha, mas com a capacidade de evoluir (para
uma forma de vida não-corpórea? --Talvez). Porém o início,
meio e fim de tal evolução não estão DE FORMA ALGUMA
relacionados com as noções de Deus, religião ou fé.
-
Todas as formas de vida conscientes partilham noções básicas
(além da forma humanóide e da língua inglesa) e carregam papéis
básicos perante o universo. Conflito entre seres conscientes é
fruto da dificuldade em identificar tais similaridades. Não
existe conflito inevitável entre seres conscientes.
- A suprema glória da criação reside na
infinita diversidade e em suas infinitas combinações. Sem dúvida
o mais significativo truque publicitário da indústria do
entretenimento.
O
exemplo "em tela" mais claro de tal "visão"
é o "The Cage" e a Nova Geração(especialmente
as três primeiras temporadas). Roddenberry sempre vislumbrou a série
como uma coisa muito mais sedada e cerebral do que foi a série
original. Ele tinha vários problemas com cenas de ação e humor
no contexto de Jornada.