Jornada nas Estrelas faz parte da minha vida desde que me entendo por gente. Não consigo me lembrar de uma época em que Federação, Frota Estelar, Kirk, Spock, McCoy e uniformes coloridos para viagens espaciais não fizessem parte do meu mundo. E, no meu mundo, Jornada sempre foi mágica: todos falavam a minha língua – o que fazia todo o sentido do mundo, uma vez que o universo trekker apresenta a tecnologia absurda dos tradutores universais.
Era uma época em que só conhecia minha própria família como admiradora de Jornada, não sabia se existiam outros fãs, tampouco poderia cogitar como era seu relacionamento com a linguagem empregada pelo capitão Kirk e a tripulação da Enterprise. Aos poucos, descobri o trabalho de dublagem e vi que não era coincidência que todos os desenhos e filmes a que eu assistia falassem a minha língua e, aos poucos, desenvolvi um grande amor por essa arte. E é por isso que hoje me ponho como alvo num possível fogo cruzado entre dois grupos de fãs a que pertenço para discutir a dublagem do filme Star Trek (2009), de J.J. Abrams.Antes de nos atermos a uma discussão do filme, abramos um parêntese importante. Há quem reclame de o filme chegar dublado a algumas salas de exibição, principalmente por uma parte mais extremista do fandom que despreza essa arte. No entanto, há dois anos, saiu resultado de pesquisas feitas junto ao público dos cinemas, nas quais se chegou à conclusão de que grande parte das pessoas prefere assistir a filmes em sua própria língua e não com legendas. Nos últimos dois anos, estamos vendo filmes com grande valor comercial chegarem ao Brasil nas duas versões. Não se trata de um caso de indignação, trata-se de um caso de respeito (certo, um caso de querer arrecadar mais dinheiro no Brasil) e de tornar as coisas mais democráticas e de maior alcance. Para os fãs de dublagem, isso é uma conquista, é a chance de não se sentir excluído ao escolher sair para assistir a um filme. Fechemos o parêntese.
Ao pesquisarmos sobre esse trabalho – olhando fichas sobre a produção – temos as seguintes informações: gravado nos estúdios da Delart (Rio de Janeiro), direção de Guilherme Briggs, que também atua no processo de tradução ao lado da tradutora de longa data de Jornada nas Estrelas, Cristina Nastasi. O fã de ambos os assuntos, ao ler essas informações iniciais, logo vive uma belíssima expectativa positiva: com esse comando no time, não há como a dublagem do filme ter ficado ruim! A Delart é um estúdio sério, responsável por várias dublagens de qualidade (atualmente, no Rio de Janeiro, junto com a Wan Marcher seria o estúdio com melhor qualificação no meu ranking pessoal de dublagens preferidas), incluindo aí filmes da Disney. Briggs dispensa apresentações junto ao público trekker: fã da franquia, primeira voz de Worf (Nova Geração) e Quark (DS9), diretor de dublagens consideradas ótimas pelos fãs e um dos dubladores mais queridos da internet, principalmente por seus personagens em desenhos animados (Freakazoid, Daggett de Castores Pirados, Cosmo de Padrinhos Mágicos, etc). Completando as garantias de trabalho de qualidade, uma tradutora experiente e igualmente fã, responsável pelo trabalho de tradução da redublagem da Série Clássica pela VTI Rio.
No aspecto técnico, não tenho muitas reclamações a fazer. Em filmes de ação, muitas vezes o barulho de explosão ou outros efeitos sonoros e sons ambientes acabam por ficar em um volume mais alto do que o das falas, porém esse não foi o caso de Star Trek. Conseguimos ouvir as falas em diferentes trilhas de volumes de som – afinal de contas, não podemos presumir que quem não está no foco principal da cena tenha destaque no áudio. Só me pareceu haver uma rápida “batida de boca” (dessincronia entre imagem e som) de um personagem ponta no momento do ataque à USS Kelvin, porém foi tão rápido e eu prestava atenção a várias coisas ao mesmo tempo, que pode ter sido uma pequena defasagem minha, resultando numa “ilusão auditiva”. Não tive acesso a uma longa lista de elenco, porém me pareceu que, infelizmente, houve, senão repetição, uso de algumas vozes femininas parecidas em vozerios e em pontas bem pequenas. Se não houve, peço desculpas ao diretor por estar falando isso.
O assunto principal do meu texto, contudo, são os personagens principais do filme. No fórum desta casa, eu critiquei bastante o desenvolvimento, interpretação e criação deles. Minha percepção sobre o assunto não mudou: continuo não conseguindo sentir-me identificada com eles, ainda destaco Uhura e McCoy como melhores, além de, após assistir novamente à obra cinematográfica de Abrams, Christopher Pike. Excetuando-se esses, os personagens pouco me dizem. Minha análise dos dubladores leva em consideração esse aspecto, afinal de contas, por mais que um dublador possa dar mais cor a um personagem um tanto apagado, ele é um dublador, não um fazedor de milagres!
O ator Chris Pine interpreta um jovem James Kirk que, tanto pelas situações do roteiro quanto por seu próprio trabalho de criação, não passa de um adolescente rebelde, brigão e metido a conquistador. Novamente, não o acho parecido com o Kirk de Shatner, parece-me mais um estereótipo do adolescente que cresceu sem o pai, que, em vez de tentar provar ao mundo seu valor, resolve simplesmente que não se importa com que os outros pensem, mas é só chegar alguém mais velho, uma possível figura paterna, para sentir-se determinado a mostrar das maneiras mais tortas que, na verdade, é um grande sujeito. Não se sabe como, mas a figura paterna em questão – Christopher Pike – se convence com aquela exibição de “coragem e determinação”, que não é nada mais nada menos que uma briga de bar contra quatro brucutus cadetes da Frota.
O responsável por dar uma voz brasileira a esse personagem é Marcelo Garcia, um dublador que vem se destacando nos últimos dez anos como dos melhores de sua geração. Ele confere ao jovem Kirk a prepotência da rebeldia, em muitos momentos sua voz dá a dimensão real de um garotinho que não gosta de ser contrariado, mas que finge que não está nem aí para a opinião alheia. Percebemos também a determinação e a insubordinação do personagem nos momentos em que são necessários, a galhofa no momento do Kobayashi Maru, o “falar fofo” no momento da língua anestesiada. Sua voz combinando perfeitamente com a expressão facial e corporal de Pine, além de também combinar com a aparência do ator original. Uma escolha simplesmente aprovadíssima. Em suma, um dos destaques da dublagem brasileira de Star Trek.
Uhura vem representada por Priscila Amorim, outro grande destaque na dublagem carioca. Vale salientar que Amorim é responsável por nada mais nada menos que a voz de Starbuck na dublagem da nova série de “Battlestar Galactica”, uma personagem feminina forte, que exigiu bastante tanto da atriz Katee Sackhoff quanto de sua voz brasileira. Nossa querida xenolinguista desse filme não é simplesmente a beleza feminina negra que está sempre na ponte e com uma ou outra fala que poderia ter sido proferida por qualquer outro personagem. No filme de Abrams, Uhura ganha um papel de destaque, passa a ser uma jovem mulher apaixonada, determinada e profissional competente. Priscila Amorim, no auge de sua experiência, consegue passar na voz todas as características e emoções dessa nova Uhura, que tanto me fizeram admirá-la e esperar que o papel seja mais bem desenvolvido nos filmes futuros. A melhor dubladora feminina do longa, sem sombra de dúvidas.
Para fechar os destaques, Hélio Ribeiro (cujo principal “boneco” é Steve Martin) e sua voz inconfundível no papel de capitão Pike. Bruce Greenwood emociona com esse papel e Ribeiro consegue passar o ar paternal e professoral de Pike quando acompanhado de James Kirk. Ou mesmo sua admiração por George Kirk, na cena da briga de bar. Se os olhos de Greenwood expressam o “mover de engrenagem” (citado por Luiz Castanheira em seu NutCast) e se o ator nos faz sentir nítidas sua verdade e convicção em estar nesse papel, a voz de Ribeiro as transporta para a nossa realidade tupiniquim. Não há como duvidar que, assim como Greenwood, Ribeiro “é também” o capitão Christopher Pike.
Juntamente a Hélio Ribeiro, Mauro Ramos nos emociona no papel do vulcano Sarek, não comprometendo a interpretação de Ben Cross e fazendo a fala sobre ele amar a esposa e esse ser o motivo de ter casado com ela soar ainda mais real para mim, pois não soou como algo jogado. Percebemos a verdade do sentimento e da dificuldade de falar abertamente sobre o assunto. Seu belo desempenho não foi uma novidade, uma vez que Ramos dispensa muitas apresentações, embora eu cite os seguintes trabalhos: dublador de Yagami em “Death Note” (anime), do Shrek em “Shrek Terceiro”, dentre vários outros trabalhos primorosos.
Não tenho informações de quem tenha dublado Scotty, porém não se podem tecer grandes críticas negaticas à sua atuação. Nos vários momentos de humor do papel, consegue convencer a plateia de que aquele é um momento de rir, sem grandes esforços. O que é lamentável é o desenvolvimento do engenheiro no próprio roteiro, tornando-se apenas alívio cômico em tiradas pouco inspiradas.
Assim como no elenco original, a dublagem traz pontas especiais, como a belíssima voz de Miriam Ficher em Amanda, a mãe de Spock, personagem que coube a Winona Ryder. Apesar de uma pequena participação, nota-se o brilhantismo da atuação de Ficher em suas poucas falas. Infelizmente, o brilho é ofuscado por sempre contracenar com Spock, pois nos soa muito mais natural que Spock com a voz de Briggs seja pai de Amanda de Ficher do que o contrário. Ricardo Schnetzer – mais conhecido como a voz oficial de Tom Cruise no Brasil – também faz uma ponta de luxo (maior do que a de Ficher), no papel do segundo em comando da Narada, deixando-o bem mais ameaçador que Nero.
Posso estar enganada, porém creio que ouvi a voz de um dublador de Jornada dos tempos da VTI logo no início da transmissão, na cena da batalha da Kelvin com a Narada. Juro que ouvi a voz de Ricardo Juarez no engenheiro da nave condenada. Para quem não se lembra, Juarez foi responsável pela voz de Tom Paris em Voyager. Se ele não estava presente, novamente peço desculpas ao diretor.
Seria ótimo escrever todo um texto apenas com elogios. Contudo, não podemos fechar nossos olhos para participações menos memoráveis no elenco de dublagem. Uma das maiores decepções nessa produção foi, sem dúvida alguma, o desempenho de Guilherme Briggs. Sabendo de seu talento e competência em inúmeros trabalhos, apesar de antemão percebermos que sua voz não se encaixa perfeitamente no ator Zachary Quinto, sentimo-nos inclinados a deixar esse “detalhe” de lado. Porém, uma vez que acompanhamos a projeção, é inevitável um sentimento de frustração. Essa impressão de que a voz de Briggs não combinará com o rosto de Zachary Quinto é logo constatada: sua voz é muito grave, não nos convencendo de, caso Quinto falasse português, o faria com voz similar. O personagem, pelo que aparenta a história do filme, estaria no equivalente humano a 20 e alguns anos de idade e o ator tinha por volta de 30 anos durante as filmagens, já Briggs está beirando a casa dos 40, com uma voz que está envelhecendo. Fica-nos a impressão de que Spock tem uma voz mais velha que seu próprio corpo, o que torna o trabalho desse normalmente ótimo dublador não convincente.
Fãs de dublagem cansam de dizer que tal combinação não é o que há de mais importante, o que importa realmente é a interpretação, pois bem: Briggs interpreta o personagem de maneira monocórdia e sem convicção. Nesse ponto, a fraca atuação de Quinto pode ser usada como referência, uma vez que pela primeira vez na história da franquia, Spock aparece não como um personagem que controla suas emoções, mas sim como alguém completamente inexpressivo.
Um dublador não tem por obrigação – e muitos acreditam tratar-se até mesmo de uma impossibilidade – salvar um personagem. No entanto, ao saber que o dublador responsável por aquele papel é um fã da Série Clássica, é impossível não vir à tona uma vontade de que ele pudesse emprestar pelo menos à voz do personagem as nuances necessárias para que possamos nos sentir mais próximos de Spock e torná-lo uma pessoa e não apenas um personagem unidimensional. Aliando-se a isso, a entonação do dublador/diretor/tradutor em algumas frases não respeita as leis da prosódia brasileira, tendo momentos em que Spock afirma e, ao final da fala, a voz de Briggs em vez de fazer uma linha descendente, faz uma ascendente, o que causa uma sensação de frase interrogativa, algo totalmente inapropriado ao que está sendo dito. Em outros momentos, em vez de parecer que está falando normalmente – por mais que tente suprimir sua emoção –, nossa impressão é de que o Primeiro Oficial está, em verdade, fazendo locução. Possivelmente o acúmulo de funções tenha deixado o diretor – que é o próprio a ser dirigido – menos atento a esses fatos.
Outro momento triste da dublagem é o fato de Leonard Nimoy não ser dublado por Márcio Seixas(dublador do personagem no estúdio VTI), mas sim por Jomery Pozzoli. Muitos fãs comentam o rosto enrugado, a voz cansada, o quanto Nimoy envelheceu durante esses anos em que não esteve à frente das câmeras. Com o Spock Prime de Pozzoli temos a impressão de que a sua voz não guarda o mínimo resquício do vigor de Seixas ou do tom grave de Briggs. Resultado disso: um personagem que aparenta uma maior fragilidade do que no original.
Algo que sempre é relevado por fãs de dublagem – inclusive por mim – na maioria das vezes, porém que é digno de nota: se dois dubladores fazem o mesmo personagem, tanto a voz deve guardar alguma semelhança quanto o sotaque deve ser parecido. Seria o mais lógico a se esperar, não é? Entretanto, por mais que haja envelhecimento de Spock e ele tenha passado por tantos mundos, nada justifica a mudança drástica de sotaques que Spock jovem e Spock idoso apresentam. E como a voz ficaria tão diferente assim? Por mais que o vigor comece a esmaecer ao longo de várias décadas, deve haver ao menos um eco distante, que a identifique com a voz mais jovem. Caso que não ocorre entre Briggs e Pozzoli.
Para aqueles que ficaram revoltados com a recusa de Marco Ribeiro em dublar Milk, em “Milk – A Voz da Igualdade”, então, não assistam, mesmo que seja para apresentar a franquia aos filhos ainda pequenos, a Star Trek dublado. É de Ribeiro a responsabilidade de dar vida ao Leonard McCoy, de Karl Urban. Como esse ator faz um trabalho exemplar em McCoy, fazendo-nos praticamente visualizar o antigo Magro (de DeForest Kelley), Marco Ribeiro peca nos momentos de rabugice de seu personagem, dando pouca ênfase a essa característica tão marcante, como também em vários momentos falta-lhe incutir em suas falas a convicção com que Urban diz seu texto, por mais que soe absurdo em alguns momentos. Contudo, pode-se dizer que tem um desempenho razoável ao longo da projeção, não comprometendo de todo o trabalho de Urban.
Os dois últimos pontos negativos da dublagem são as interpretações de Chekov e Nero. A bem da verdade, pouco podemos, de fato, falar do trabalho de Gustavo Pereira (Nemo em “Procurando Nemo” e Ian em “Se Liga, Ian”), já que o personagem russo pouco fala ao longo do filme. Contudo, é nítido que o sotaque por ele escolhido nos remete mais a alguém falando um portunhol misturado com francês (ou então uma estranha combinação de galego e catalão). Não sabemos exatamente como é o sotaque de um russo falando português do Brasil, porém é impossível não fazer uma relação entre o apresentado por Pereira e uma das já referidas misturas. Uma vez escolhido o sotaque, esperamos que o mesmo seja mantido em todas as falas do personagem – por menores que sejam –, porém em uma de suas falas, ao final de um dos comunicados que Chekov faz à tripulação da Enterprise, ele termina sua frase com um forte carioquês, não forçando uma diferente fonética ao português brasileiro, como outrora, o que o faz soar como a maioria de seus companheiros de bancada.
Por último, o Nero brasileiro não nos convence que é uma ameaça, assim como não é capaz de nos comover ao contar sua triste história familiar do futuro. Mesmo que Eric Bana não nos tenha presenteado com uma excelente interpretação, não conseguimos deixar de lamentar que o dublador não desperte em nós qualquer emoção através de sua voz. No lado dos romulanos, Schnetzer realmente nos faz temer por nossos heróis, ao encarnar o segundo em comando da Narada.
Seguindo o padrão do Trek Brasilis de avaliação, eu daria 3.0 de 4.0 para a dublagem desse filme. Tiro 1.0 das atuações dos dois dubladores do Spock, pois emprestam suas vozes a um dos mais importantes personagens não só do filme, como de toda a franquia, assim como da interpretação apagada do dublador de Nero, o principal antagonista da tripulação de nossa querida Enterprise.
Excetuando-se esses pontos e a pouca rabugice e convicção do McCoy de Marco Ribeiro, é uma boa dublagem, com um elenco de peso dentre os profissionais da área no Rio de Janeiro, gravado em um de nossos melhores estúdios da atualidade. Para quem curte dublagem ou para quem quer apresentar a franquia a um público mais amplo, não deixa de ser uma boa pedida assistir a esse filme dublado, embora não se possa dizer que foi um trabalho feito com perfeição.