“A.I.: ARTIFICIAL INTELLIGENCE”:
O mais novo esforço do “Peter Pan Hollywoodiano” chega cheio de expectativa, principalmente por se tratar de um produto baseado em um dos muitos conceitos inacabados do mestre Stanley Kubrick. Mas não se iludam, mesmo com inúmeras “referências Kubrickianas” e a maioria dos elementos do argumento original do cineasta, a produção é em sua essência 100% Spielberg: expositiva, manipulativa e capaz de produzir cáries massivas nas primeiras filas do cinema. Saibam mais detalhes, sem precisar da ajuda da “fada azul” no processo, nas linhas abaixo.
O conceito de “A.I.” é parcialmente baseado no conto de Brian Aldiss: “Supertoys Last All Summer Long” e intriga Kubrick desde os anos 70. Uma longa amizade colaborativa (a distância) com Spielberg produziu um argumento de 90 páginas, que seria a base para o filme. Kubrick iria produzir e Spielberg dirigir (Kubrick considerava o tema mais de acordo com a sensibilidade do amigo) mas tal parceria não se concretizou e Kubrick tencionava ele próprio dirigir o filme após filmar “Eyes Wide Shutt”. Após a repentina morte de Kubrick, Spielberg retomou o argumento e compilou (com a permissão da família de kubrick) todo o material do projeto, da própria residência de Kubrick. Escreveu o roteiro (algo que não fazia desde “Close Encounters Of The Third Kind” de 1977) e dirigiu esta “versão censura livre” do argumento.
Por uma questão de justiça, devo dizer que a idéia de utilizar o conceito de um “pinóquio positrônico” foi de Kubrick (ele inclusive se referia ao projeto simplesmente como “Pinóquio”) e que o polêmico epílogo também constava do argumento do cineasta. Apesar disto fica difícil acreditar que, se dirigido por Kubrick, o filme teria uma estrutura formal de conto de fadas (por vezes trazida a tona com “a sutileza de 100 dispositivos do juízo final”) e mesmo se o final (bem como todo o restante do filme) seria tão “explicadinho”, não dando nenhuma chance ao expectador de “completar o filme”, uma das muitas características do mestre Kubrick.
(Digo isto pela fixação, bem conhecida do público, que Spielberg tem com relação a história do boneco de madeira e pela impressão que fica de que o epílogo do filme foi escrito com o único propósito de deixar um “gosto bom” na boca da audiência. O que seria também consistente com o trabalho passado de spielberg.)
O filme se divide em 2 grandes atos e um pequeno e polêmico epílogo.
PRIMEIRO ATO:
Em uma terra do futuro, em que o derretimento das coletas polares levou a submersão de uma boa parte dos continentes e a uma severa política de controle de natalidade, o uso de seres com inteligência artificial (os chamdos “Mechas”) nas mais diferentes atividades é um fato concreto. De fato, a sofisticação de tais “Mechas” é fantástica, sendo a real capacidade de sentir emoções, o próximo grande passo em sua evolução.
Neste mundo, Monica(Frances O’Connor), definha (mental e fisicamente) frente a perspectiva de que seu único filho natural, portador de uma doença incurável para a ciência do momento, nunca possa acordar de seu sono criogênico e voltar ao lar. Seu marido lhe dá um presente, um menino-andróide, com real capacidade de amar. O nome do andróide é David (Haley Joel Osment), e o seu companheiro espera sinceramente que, com a ajuda de David, ela possa preencher seu vazio afetivo e retomar a sua vida.
Após alguns problemas iniciais, Monica acaba por aceitar David e imprime nele a sequência de códigos que o fará amá-la de forma incondicional para sempre. Ele a chama de mãe pela primeira vez e parece que tudo vai ficar bem. Eis que o filho natural do casal (surpresa!) emerge curado do seu sono criogênico e volta ao lar. A rivalidade dos dois “irmãos” torna-se insustentável para Monica e ela opta por seu filho natural. Ela não devolve David a empresa que o manufaturou (pois isto levaria a sua destruição) e o abandona (literalmente) no bosque, tendo como único companheiro o fiel ursinho (e “Mecha”) Teddy.
Este primeiro segmento é o melhor do filme, com um ritmo bastante sedado e tomadas de câmera com extrema fluidez(lembrando o estilo de Kubrick). Aqui temos inúmeras “citações” ao mestre, como por exemplo a frequente utilização de superfícies espelhadas e tomadas através de meios transparentes ou translúcidos (e mesmo com homenagens específicas a filmes de Kubrick). Uma certa arquitetura “Futurista-Retrô” também faz sentido e é bem-vinda. O que não funciona nada bem é uma certa indulgência de Spielberg que retira completamente (e de forma risível) o marido de Monica de qualquer tipo de discussão (pais ausentes são figuras recorrentes na obra de Spielberg) algo que se amplifica ao longo filme, aparentemente trazendo um complexo de Édipo de trás das câmeras para a frente delas. O funcionamento de David parece ser exatamente o necessário para fazer a trama funcionar em seus termos, o que faz alguns segmentos, como o da “refeição”, parecerem completamente artificiais. O fato de Teddy parecer pisicologicamente mais sofisticado que David (aparentemente para contribuir com o alívio cômico) só torna as coisas ainda piores.
Grandes mudanças de cenário, como ocorrem nas mudanças dos atos deste filme, são típicas da escola de Kubrick mas o choque entre a tentativa de drama humano deste primeiro ato e a atitude de conto de fadas do restante do filme é extrema demais. Fica muito difícil aceitar o filme tanto como uma discussão sobre a condição humana (na lnha de uma questão que é levantada didaticamente logo início do filme sobre a obrigação – ou não – do ser humano de retornar o amor dado a ele incondicionalmente por sua criação) ou como um completo conto de fadas em que cardumes de peixes “dão carona” a “garotinhos mecânicos”. O filme falha em ambas as frentes.
(Foi um grave erro do roteiro tratar uma questão tão complexa exclusivamente sob o ponto de vista de David, ignorando o ponto de vista dos pais a maior do tempo. Fica clara a centralização do filme em David, pois torna mais fácil a manipulação emocional do público. O roteiro escolheu o caminho mais fácil e comercial.)
SEGUNDO ATO:
David está decidido a encontrar a tal “fada azul” (aquela mesma de “Pinóquio”) para que ela o transforme em um menino de verdade, para que ele possa voltar para a sua mãe. Ele é preso pelos caçadores da “feira de pele”. Na arena de tais “feiras”, “Mechas” desgarrados (sem licença de operação e normalmente em mau estado de conservação) são destruídos das formas mais cruéis e bizarras possíveis, para o deleite da platéia de “Orgas” (humanos). Quando chegou a vez de David, a platéia se impressionou com os sentimentos do andróide, aparentemente um menino real, e acabou por destruir o lugar com raiva dos organizadores. David foge na companhia de Gigolo Joe (uma versão andrógina de Fred Astaire, vivida por Jude Law), um “Mecha amante” com problemas mal resolvidos com a justiça.
Joe acredita saber onde achar as respostas de David, dai eles partem para Rouge City, uma versão estilizada e não menos bizarra de Nova Iorque, onde eles visitam um “sabe-tudo” digital chamado “Dr. Know”. Ai temos a cena mais constrangedora do filme. Uma espécie de refugo do parque temático de “Jurassic Park”, este tal “doutor” (com voz de Robin Williams para “melhorar” ainda mais a situação) traz a tona a história de Pinóquo, com “a sutileza de uma verbete de dicionário”, frente a um David que fica histérico quando vislumbra o holograma da boa fadinha da história (a partir dai as referências do andróide a “fada azul” começam a encher cada vez mais o saco até o final do filme). Entretanto uma mensagem enigmática do tal “doutor” indica o caminho a seguir, pelo menos segundo a idéia de que Manhattan é “o fim do mundo”.
Chegando na, quase totalmente submersa, ilha De Manhattan, David encontra um outro David em um prédio (que posteriormente se revela o centro de pesquisas da empresa que construiu David), ainda parcialmente fora d’água. Obviamente não existe nenhuma conotação metafísica envolvida e o outro David é apenas um outro andróide do mesmo modelo (o “nosso” David é o protótipo da “série David”). O “nosso” David fica perturbado com a perda da sua “unicidade” e arranca a cabeça do seu “irmão” na base da marreta. Dai que chega o seu criador, o cientista que projetou o andróide e (antes que alguem possa dizer: “ASTROBOY!”) revela que ele tinha um filho tembém com nome David, que morreu e cuja imagem o “nosso” David ostenta. O cientista diz que eles o estiveram oservando o tempo todo e que ele (e sua equipe) estão fascinados com a forma que ele utilizou um conto de fadas para orientar a sua vida. Ele deixa David por um instante para avisar os seus verdadeiros “pais e mães” que o “filho pródigo” retornou. David entra na outra sala e vislumbra uma “linha de montagem de Davids” e mesmo de uma versão feminina do andróide com emoções. Totalmente confuso David se joga ao mar em uma tentativa de suicídio, o filme parece terminar PELA PRIMEIRA VEZ!
Dentro do mar um cardume de peixes “dá uma carona” (podem acreditar!) a David, até um parque de diversões submerso, em que ele encontra uma estátua da “Fada Azul”. Resgatado por Gigolo Joe no “anfibocóptero” (roubado anteriormente da polícia) ele diz ao amigo que encontrou a boa fadinha, porém Joe é preso e David volta para o fundo mar no aparelho. Ocorre um desabamento da roda gigante e o veículo fica preso na vizinhança da estátua. David permanece pedindo, dia após dia, para que a boa fada o transforme em um menino de verdade. Neste momento o filme parece terminar PELA SEGUNDA VEZ!
Continuamos com inúmeras referências a Kubrick, desde a “feira de pele” (aparentemente uma tentativa de resgatar a “velha e boa ultra-violência” de “Laranja mecânica”, porém sem a pegada necessária aqui) até a o visal estilizado de “Rouge City” (que acabou com “carinha” de cinemão, MUITO menos audacioso do que aquele originalmente concebido por Kubrick).
Gigolo Joe foi uma grande decepção, caricato e aguado ao extremo. Acho que o ursinho Teddy era mais esperto (talvez o único personagem interessante de todo o filme).
A partir do momento em que David encontrou um outro dele, e nada surpreendente aconteceu, foi torcer para o filme acabar, pois nada mais iria me interessar.
(Eu sinceramente ficaria mais contente sem aquele “clone da lua em forma de balão” mas, como diria Spielberg: “indulgência pouca é bobagem”)
EPÍLOGO:
Após 2 mil anos, David é recuperado do gelo pela atual forma de vida dominante da terra: “Mechas super-evoluidos”. David é uma espécie de “elo perdido” para eles, que rapidamente o revivem e o trazem “para dentro” da sua consciência coletiva. David está novamente em casa e até tem um real encontro com a sua “Fada Azul” (com varinha de condão e tudo mais E EU NÃO ESTOU BRINCANDO QUANTO A ISTO!). Os “Mechas”, que não são bobos nem nada, dizem (em uma mentira deslavada) que podem trazer de volta a vida (incluindo ai as suas memórias) pessoas já mortas, desde que possuam um fragmento de DNA. Imediatamente o “ursinho Teddy” traz um tufo de cabelo da mãe de David, obtido no começo do filme. Os “Mechas” apenas dizem que devido “A UM MONTE DE TECNOBABOSEIRA” sua mãe viverá apenas um dia nestas condições. Ele diz não se importar. Finalmente David tem “este último dia” com a simulação de sua mãe, até que ela “morre”. Finalmente David também vai dormir e finalmente sonhar.
O filme parece acabar PELA TERCEIRA VEZ e acaba!
O epílogo falha em capturar senso de deslumbramento que o “Mechas” deveriam ter ao encontrar o seu verdadeiro “elo perdido”, o primeiro de toda uma nova geração de “Mechas”, e falha, ainda mais miseravelmente, em deixar no ar uma simples questão: “o que é real?” Se enrola todo e dá um tiro no proprio pé com AINDA MAIS exposição e AINDA MAIS explicação.
Espero que o próximo projeto inacabado do mestre Kubrick, que vier a ser produzido, tenha melhor sorte. Este aqui foi parido com um terminal caso de dupla personalidade, sendo a Edipiana, a dominante.
RECOMENDAÇÃO: