STS 1×02: Calypso

Saga da mitologia grega ganha adaptação futurista a bordo da Discovery

Sinopse

Um módulo de fuga vaga pelo espaço com um tripulante a bordo, assistindo a um desenho animado antigo de Betty Boop, em estado crítico, até ser encontrado e resgatado pela USS Discovery.

O resgatado é levado à enfermaria, desacordado, e lá desperta. A nave parece deserta, e ele procura algo para usar como arma e se defender. Trata-se claramente de alguém envolvido num conflito. Ele é interpelado por uma voz, que se apresenta como Zora, e se mostra no comando das operações de nave. Ela prepara um traje que vá servir nele e explica que tirou todas as cicatrizes dele, exceto uma, pela qual ele aparentava ter estima, por jamais ter retirado mesmo após anos.

De início ressabiado, o estranho recém-chegado vai aos poucos passando a confiar naquela voz misteriosa — um sistema de inteligência artificial da nave. Ele diz a Zora que em seu mundo ele é chamado de Astuto (Craft). Uma tatuagem em seu corpo indica que ele é originário de Alcor IV, planeta que, na época da construção da USS Discovery, não tinha habitantes humanos como ele.

Astuto revela que está há dez anos em uma guerra contra inimigos que ele chama de V’draysh, e que o módulo de fuga — assim como os arquivos de mídia armazenados nele, como o desenho da Betty Boop que ele não sabia desligar — pertencia a esses adversários. Zora, por sua vez, revela que a Discovery foi ordenada a ficar ali, parada, em meio a uma região turbulenta do espaço, por mil anos.

Os dias vão se passando, e Zora cuida de Astuto, preparando refeições, jogando xadrez, conversando e fazendo companhia. Ela revela que é apenas a inteligência artificial da nave, e não uma pessoa real, mas claramente um elo de apreciação mútua — e talvez algo mais — vai se formando entre eles. Astuto não pode partir na nave auxiliar disponível, que está sem manutenção há mil anos, e a própria Discovery tem ordens de ficar lá parada e não pode levá-lo até Alcor.

Nisso, Zora apresenta a Astuto seu filme favorito, Cinderela em Paris (Funny Face), com Audrey Hepburn e Fred Astaire, recriando a obra em projeção holográfica na ponte da Discovery e explicando o apelido da protagonista no musical — “Funny Face” (“Cara Engraçada”).

Depois de tanto tempo, Astuto decide que toda a dedicação de Zora para com ele merece retribuição e decora todos os movimentos da dança do filme, convidando Zora para dançar com ele na ponte. Ela recria o holograma de Audrey Hepburn, mas Astuto quer dançar com Zora, não com Audrey. A inteligência artificial explica que não tem uma “aparência”, mas Astuto aposta que ela pode “imaginar” uma, e assim ela o faz.

A dança procede e se torna um momento romântico. Quando Astuto percebe que está se apaixonando, ele se lembra da mulher e do filho à espera dele em Alcor IV e se afasta. Zora fica sentida, diz que ela não é real, que ele não está fazendo nada de errado, mas os dois sabem que é mentira.

Resignada, Zora passa a trabalhar na manutenção da nave auxiliar para que Astuto possa voltar a seu planeta. O momento de despedida é emotivo, envolto em gratidão, amor e saudade. Zora pergunta se, caso fossem amantes, ele lhe diria seu verdadeiro nome, e Astuto responde que, se ela fosse sua amante, ela poderia, de acordo com o costume de seu povo, escolher o verdadeiro nome dele. Ao que ela responde: “Isso eu já fiz.” E lá se foi Astuto numa nave auxiliar batizada no casco de Funny Face…

Comentários

“Calypso” é um dos episódios mais intrigantes e inspirados da primeira leva de Short Treks, contando uma história apaixonante e com começo, meio e fim, que na prática acompanha dois personagens, um dos quais é apenas uma voz. Não se trata de feito trivial, e é um início auspicioso para as contribuições do escritor Michael Chabon, vencedor do prêmio Pulitzer, à franquia de Jornada nas Estrelas.

A história é francamente inspirada na mitologia greco-romana, e não disfarça. O título, Calipso, entrega tudo. No mito, descrito na Odisseia de Homero, Odisseu (ou Ulisses, para quem prefere o nome romano) é um náufrago que chega à costa de uma ilha habitada por uma ninfa do mar, Calipso. Ela o acolhe e se apaixona por ele. Tenta fazer de tudo para agradá-lo, mas o herói resiste, sem esquecer sua pátria, sua esposa e seu filho. Finalmente forçada pelos deuses a libertar Odisseu, Calipso fornece os recursos para que ele construísse uma jangada e voltasse para casa. É a trama do episódio, exatamente. E se for verdade o que dizem sobre a imitação ser a maior forma de elogio, Homero está festejadíssimo aqui.

Alguns podem achar que é uma má ideia pegar uma clássica história e convertê-la num conto ambientado em Jornada nas Estrelas de forma tão transparente. Este escriba considera a iniciativa, além de honesta (há muito plágio em Hollywood, mas muito menos admissões), inspirada. Amores impossíveis sempre foram uma boa história, e esta aqui é tão boa quanto as melhores que há. E, por falar nisso, não custa lembrar que, em termos elementares, praticamente todas as histórias já foram contadas, pelo menos desde Shakespeare. O maior mérito está em como a história é contada (ou recontada). E aqui “Calypso” brilha lindamente, produzindo 18 minutos de uma história bonita e emocionante, que faz a mistura perfeita entre o “velho” e o “novo”, trocando uma ninfa por uma inteligência artificial, e o oceano pelo espaço.

Além disso, para quem é fã da franquia, o episódio traz alguns “easter eggs” que apresentam os primeiros lampejos da história sobre o que poderia se passar no século 33, mil anos após Discovery. É intrigante ver Astuto (Craft), como um humano, combatendo os V’draysh, uma transliteração da palavra “Federation”. Que versão distorcida da Federação seria esta? E por que humanos de Alcor IV a estão combatendo, numa guerra que dura dez anos? É impossível não se intrigar com esses vislumbres, ainda que provavelmente eles não sejam abordados nem na segunda temporada de Discovery, nem em qualquer outra produção no futuro da franquia. (Embora, claro, a gente nunca diga nunca em matéria de Star Trek, e algum tipo de conexão seja esperado em algum momento para explicar como a Discovery foi parar no século 33, após ficar mil anos abandonada.)

O roteiro maravilhoso de Michael Chabon (baseado em história dele e de Sean Cochran, escritor da equipe de Discovery) se combina à excelente atuação de Aldis Hodge, interpretando Odisseu/Ulisses/Craft/Astuto, e de Annabelle Wallis, que faz a voz de Zora. Agora, se você achou que a versão visual da personagem é a cara da voz, na vida real a dançarina é outra atriz: Sash Striga. Também há de se reconhecer o bom trabalho do diretor Olatunde Osumsanmi para fazer uma limonada tão boa com tão poucos limões — um único ator em cena, e só os cenários fixos de Discovery.

Em termos de efeitos visuais, encantam as sequências que tornaram Cinderela em Paris um holograma tridimensional, um dos poucos momentos em que o episódio deve ter ficado mais carinho um bocadinho. Sem falar que agora Betty Boop, Fred Astaire e Audrey Hepburn fazem parte do cânone de Jornada nas Estrelas. Mas, no geral, o que sustenta “Calypso” é a história simples, tocante e visceral, que não tenta reinventar a roda, mas coloca belos enfeites nela, rejuvenescendo um mito que já apaixona a humanidade há quase 3.000 anos e que certamente será lembrado enquanto ainda houver humanos para se lembrarem dele.

Avaliação

Astuto – “Zora? I don’t know where you are or exactly what you are. I don’t know if I’ll make it home or what I’ll find when I’ll get there. But I know you saved my life, healed my body. You reminded me what it means to be Human…” (“Zora? Eu não sei onde você está ou exatamente o que você é. Eu não sei se vou chegar em casa ou o que encontrarei ao chegar lá. Mas eu sei que você salvou minha vida, curou meu corpo. Você me lembrou do que significa ser humano…”)

Zora – “Please, Craft. No poignant ironies. This is hard enough already.” (“Por favor, Craft. Sem ironias pungentes. Isso já é suficientemente difícil.”)

Trivia

  • Depois de escrever este episódio, Michael Chabon foi integrado à equipe de roteiristas que está desenvolvendo a série que retratará o futuro de Jean-Luc Picard.
  • V’draysh foi confirmado como uma corruptela de Federation por Michael Chabon no Twitter.
  • Com 18 minutos, este é o mais longo da primeira bateria de Short Treks, composta por quatro segmentos.
  • A referência à Odisseia, de Homero, não para só na trama, e vai até o nome do personagem, Craft. Odisseu é chamado de “crafty Odysseus” (na tradução inglesa do original grego) ou “astuto Ulisses” (na tradução brasileira publicada mais recentemente pela Cia. das Letras).
  • Este é o primeiro episódio a revelar algo sobre o século 33 do universo de Jornada nas Estrelas.

Ficha Técnica

História de Sean Cochran e Michael Chabon
Roteiro de Michael Chabon
Direção de Olatunde Osunsanmi
Exibido em 8/11/2018
Produção: 102

Elenco

Aldis Hodge como Craft/Astuto
Annabelle Wallis como Zora
Sash Striga como Zora holodançarina

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