Discovery retorna (passados seis meses na história) para o seu episódio-piloto de fato, executando-o com eficiência e brilho, nos fazendo questionar os rumos da trama e as motivações dos envolvidos até após o seu encerramento. Ela traz novos personagens cheios de potencial, em particular o seu capitão Gabriel Lorca (em uma muito feliz escalação na pessoa de Jason Isaacs). Insere Michael Burnham na tripulação da titular nave estelar de forma crível e funcional. Termina grande sobre os temas de exploração de Jornada nas Estrelas enquanto beira a quebra da quarta parede tocando a inspiração que isso traz aos seus inúmeros fãs, ainda que sempre incluindo um tempero próprio que a atração trabalha no sentido de estabelecer e tornar mais prontamente reconhecível (incluindo aqui e ali um curioso senso de humor e um sortido de idiossincrasias nos seus personagens).
Em uma franquia tão gigantesca quanto Jornada nas Estrelas, é importante escolher (e seguir!) uma premissa que force o grosso da sua escrita em formas e caminhos distintos dos já visitados anteriormente. Burnham é um personagem único nesses 51+ anos da marca, ela não é uma não-oficial comandante protagonista (como informações iniciais da produção pareciam apontar), ela é uma ex-presidiária e ex-primeira-oficial protagonista. Filtrar os acontecimentos por uma perspectiva tão específica e tão distinta traz um benéfico diferencial (entre outros) para a série, pois assim Burnham fica próxima ao nível de entendimento dos acontecimentos do espectador, isso naturalmente vai fazer a mente do espectador se envolver e trabalhar mais, o que é sempre desejável. Além disso, Discovery é uma nave científica cheia de cientistas com uniformes da Frota, algo que Lorca terá que lidar para dar conta da sua missão de vencer a guerra com os klingons (outro diferencial da premissa!). O tenente Paul Stamets (Anthony Rapp) é o principal representante desses cientistas e peça crucial nos experimentos conduzidos a bordo de Discovery, sendo extremamente vocal (justificadamente) na sua insatisfação (potencializada pelos acontecimentos do episódio, com a presença forçada de Burnham ali e a perda de um amigo querido).
(A jovem cadete Sylvia Tilly (Mary Wiseman) acaba se tornando colega de quarto de Burnham, com potencial para se tornar uma brilhante engenheira, porém com (ainda indefinidos) problemas de socialização e subordinada direta de Stamets. Uma espécie de alívio cômico inicialmente.).
No episódio, a nave de prisioneiros de Burnham é resgatada pela Discovery e enquanto ela sofre reparos, a nossa protagonista é recrutada por Lorca para trabalhar temporariamente na engenharia da nave no misterioso projeto capitaneado por Stamets (misterioso com: seguranças com insígnias negras, alertas negros, estufas na engenharia, glóbulos fluidos passeando pela nave a noite etc). Nesse ínterim, a nave irmã da Discovery, USS Glenn, que estava realizando os mesmos tipos de experimentos, sofre um terrível acidente com a perda de todos a bordo (inclusive do melhor amigo de Stamets e seu parceiro em toda a pesquisa, tomada pela Frota Estelar com o inicio da guerra). Um grupo, formado por Stamets, Tilly, Burnham e a chefe de segurança da Discovery Landry (entre outros), aborda a Glenn e recupera materiais (alguns de origem desconhecida pelo grupo) do projeto, para tanto escapando de uma misteriosa criatura que poderíamos descrever como uma Lesma-Touro e que chamaremos de Júnior para encurtar (Notem que o Júnior trucidou uma dúzia de klingons, provavelmente investigando a nave a deriva, antes do pessoal da Discovery chegar.).
Ao final do episódio, Burnham se encontra com o capitão (no escritório dele) e diz que está pronta para seguir viagem com os demais presos (e cumprir a sua pena) e diz ainda que “sabe” (como o espectador “sabe”) que Lorca a trouxe a bordo da Discovery para que ela participe no desenvolvimento de alguma arma biológica proibida no esforço de guerra para ter sua sentença de prisão perpetua reduzida de alguma forma, em essência por não ter nada mais a perder (e ser útil e descartável) e diz que não pode aceitar o convite do capitão para permanecer a bordo nesses termos e reafirma os seus juramentos como oficial da Frota Estelar e cidadã da Federação. Lorca diz que ela está errada e na engenharia da nave explica que o projeto de Stamets é um propulsor orgânico baseado em esporos e não uma arma de destruição em massa.
Ele diz sim que ele precisa vencer a guerra, mas que isso é só o começo da aplicação da tecnologia, capaz de fazer uma nave estelar ir e voltar de outro quadrante em meros segundos. Um discurso de Lorca sobre exploração bem na veia de Jornada nas Estrelas e um diferente entendimento do papel de Burnham na Batalha das Estrelas Binárias (e de sua postura em relação à Frota Estelar e à Federação) convencem-na a ficar. De volta a sua cabine, Burnham encontra Tilly com um total jeitinho de trekker e que lhe diz que deseja ser capitã de sua própria nave um dia, tirando inspiração de Giorgiou para isso. Essas duas cenas sendo intercaladas pelo disparo do senso de morte de Saru (agora primeiro oficial da Discovery) com a certeza da permanência de Burnham a bordo da sua nave e a derradeira revelação na cena final de que Lorca mantém, em um laboratório da Discovery, uma coleção de espécimes alienígenas vivos (inclusive o próprio Júnior, transportado a bordo por Landry antes da destruição da Glenn por Lorca) e mortos (incluindo um esqueleto de um Gorn, cadáveres de voles cardassianos etc). Jornada com tempero próprio, mas definitivamente Jornada ainda assim.
Mais algumas pitadas:
– É razoável supor que Lorca teve algo a ver com a passagem da nave carcerária pela nebulosa e com a subsequente infestação que a desabilitou, mas não com a morte da piloto (cuja execução, com perdão do trocadilho, trouxe uma bem vinda nota de humor negro aos procedimentos). Digna de menção é a aparente resignação de Burnham em face da morte eminente ali;
– A chefe de segurança da Discovery Ellen Landry (Rekha Sharma) se saiu como a mais unidimensional do bando. Robótica e linha dura ao extremo e sem texturas até aqui. Será uma conhecida de longa data de Lorca? Será mais do que isso?
– Entre as amoras e o chazinho de Saru e o pingo (aparentemente castrado), os biscoitos da fortuna e a coleção de Lorca, estamos bem servidos de esquisitices. Em particular, um “caçador de klingons” com um pingo de estimação é uma coisa muito inspirada e engraçada (a ideia dele ser uma “criatura das trevas” foi também interessante e deixa a pergunta de como ele feriu os seus olhos… algo a ver com luz talvez?). Enfatizando, o personagem de Lorca, com seus tons de cinza, veio pra ficar;
– A Glenn estava em um estágio mais avançado do experimento e os equipamentos trazidos a bordo da Discovery devem esclarecer o motivo (será que veremos um dia um esforço análogo por parte dos klingons?);
– Nós vemos, quando Burnham está dentro do cubo de reação, imagens de onde aqueles esporos que a circulam naquele momento estiveram antes. As imagens não estão necessariamente sincronizadas com as falas de Lorca. Burnham parece avistar: um planeta com um Obelisco dos Preservadores (de The Paradise Syndrome), a Base Estelar XI (de Court Martial e de The Menagerie) e a Instalação de Mineração de Janus VI (de The Devil In The Dark), todos os episódios da série original de Jornada nas Estrelas. Todas as escolhas bastante curiosas dos produtores;
– Burnham diz a Tilly que Amanda lia Lewis Carroll para ela e Spock na casa deles em Vulcano. Uma referência direta ao episódio Once Upon a Planet da Série Animada de Jornada nas Estrelas;
– A tecnologia do propulsor orgânico baseado em esporos em si não nos assusta (dramaturgicamente falando) por esse ser essencialmente o piloto da série e o relato da sua premissa. O que importa de fato é o que se faz com ela. Indo além, o episódio nos mostra algo extremamente instável e perigoso, ainda em desenvolvimento, ou seja, muito longe do seu potencial pleno. Alertando os continuístas de plantão, essa tecnologia já nasce com a perfeita desculpa para ser descartada eventualmente, como muitas similares já o foram na história de Jornada nas Estrelas. (Será que os esporos vão trazer uma compreensão mais profunda do (s) universo (s) como um todo? Será que eles serão associados eventualmente a alguma forma de consciência (cósmica)?);
– O sistema de segurança baseado em sopro não é mesmo muito seguro ou fez parte da estratégia de Lorca nos fazer pensar isso? Mas nos faz pensar… E se uma impressão de retina fosse necessária, como estariam os olhos de Tilly nessa altura do campeonato?
– Saru (agora primeiro oficial da Discovery) continua um personagem diferenciado ainda que 100% dentro da tradição dos outsiders de Jornada nas Estrelas (sentimos uma proximidade dele com Odo neste estágio). A sua última conversa com Burnham é emocionante, com palavras muito bem escolhidas e muito bem atuadas e que preparam perfeitamente o encontro final dela aqui com Lorca (será que um dia veremos Saru como parte de alguma revolução em seu planeta natal?);
– Numa comparação direta com o Barclay de A Nova Geração, Tilly parece ser mais funcional e com maior inteligência emocional. Ainda não ficou claro se ela possui alguma condição médica específica;
– Além de Saru, a navegadora Keyla Detmer (Emily Coutts) também faz parte da tripulação da Discovery.
Discovery segue confiante e passando confiança, com uma protagonista definitivamente trekker de raiz e que devido a um erro pontual de sua parte e a guerra com os klingons, agora segue um caminho que nenhum personagem com essa mentalidade poderia transitar. Curiosamente, Gabriel “Príncipe da Escuridão” Lorca não a vê como “A amotinada” ou como “Aquela que começou a guerra com os klingons”, mas sim alguém com extremo potencial e capaz de tomar decisões corajosas em extremas circunstâncias. Alguém que ele quer junto a ele.
“Leis universais são para lacaios. Contexto é para reis.”
STAR TREK DISCOVERY
EP 0103 CONTEXT IS FOR KINGS
GRAU: B (3/4)