É verdade que o último episódio de Lower Decks teria descanonizado Discovery?

Alerta do Badgey Brasilis é uma coluna do Trek Brasilis que visa checar fatos e combater notícias falsas.

Olá, pessoal. Eu sou o Badgey Brasilis. Posso te ensinar uma lição? Após um longo tempo de folga, um rumor que tem circulado pelo fandom chegou até mim, com um pedido de checagem.

É verdade que o último episódio da quinta temporada de Lower Decks, “The New Next Generation”, descanonizou Star Trek: Discovery?

FALSO!

Para começo de conversa, precisamos esclarecer o que é “cânone”. De acordo com a empresa CBS Studios, detentora dos direitos sobre a franquia Star Trek, tudo que aparece em tela nos episódios e filmes, no cinema ou na TV, é considerado canônico — ou seja, parte do material considerado parte do universo ficcional criado por Gene Roddenberry.

Essa definição, atualmente vigente, não é livre de controvérsias. No passado, o próprio Roddenberry solicitou no início dos anos 1990 a “descanonização” da Série Animada, produção que ele mesmo havia supervisionado em 1973-1974. Até 2006, a CBS (antes Paramount) concedeu essa gentileza ao criador de Star Trek, embora tenha se recusado a fazer o mesmo com outro pedido de Gene, para descanonizar ao menos alguns elementos de Jornada nas Estrelas V: A Fronteira Final Jornada nas Estrelas VI: A Terra Desconhecida. (Até alguns elementos da Série Clássica ele manifestou o desejo de descanonizar!) A mudança com a recanonização da Série Animada se deu em 2006, quando de seu lançamento em DVD, e foi consolidada de forma incontroversa no relançamento do site oficial da franquia, o StarTrek.com, em 2010. Tudo que está em tela como série ou filme é cânone — embora possa pertencer a várias linhas do tempo diferentes, num multiverso. Lower Decks, por sinal, adora fazer referências à Série Animada.

É isso o que vigora até o presente momento, e até recentemente era relativamente simples: tudo que está em tela é cânone, e o que aparece em romances, jogos e quadrinhos não é. Mas algumas produções vêm desafiando a definição simples. Exemplos: os Very Short Treks, que mostram, entre outras loucuras, eventos que quebram a quarta parede (jargão para situações em que o universo ficcional e real se misturam), e os curtas produzidos pelo projeto Roddenberry Archive, que são licenciados, mas retratam por vezes cenas não canônicas saídas de livros ou quadrinhos, quando não dramatizações totalmente inéditas. A CBS Studios ainda está por se manifestar sobre essas confusas exceções.

Contudo, uma coisa que uma produção qualquer não pode fazer é descanonizar outra produção canônica. Tudo que ela pode fazer é adicionar novo cânone, sem anular o antigo (nenhuma contradição ou retcon introduzidos no cânone descanoniza outros elementos canônicos; cabe aprender a conviver com e racionalizar as contradições, cada fã como bem entender).

Por essa razão, ninguém deveria levar a sério artigos como os dos sites Cosmic Book News e Giant Freakin Robot (ambos notórios pela baixa confiabilidade e pelo clickbaiting) que declaram que, em uma cena, Lower Decks descanonizou uma série inteira, no caso, Discovery. Você não precisa acreditar em mim nisso; acredite em Mike McMahan (criador e showrunner de Lower Decks), que resumiu sua opinião em uma resposta na rede social Bluesky: “Uma interpretação muito boba.”

Por que então a controvérsia? Vamos logo ao caso em questão e entender como a coisa toda foi distorcida dessa maneira.

Em “The New Next Generation”, uma anomalia está criando um campo de distorção da realidade que faz objetos e pessoas se manifestarem como suas versões de outros universos. E a cena que causa toda a celeuma vem logo no começo do episódio, quando uma nave klingon é atingida por uma onda da anomalia e se converte em uma ave de rapina do modelo visto na primeira temporada de Discovery, e os próprios klingons em seu interior se convertem na maquiagem adotada naquela série, ambientada no século 23, com pele roxa e sem cabelos.

A interpretação natural é a de que, em outro universo, os klingons de Discovery permaneceram predominantes, assim como seus antigos designs, pelo século 24.

Claro, uma interpretação alternativa, e igualmente válida, é a de que aqueles klingons e seu visual pertencem apenas a um universo alternativo, o que poderia indicar que Discovery como um todo pertence a um universo alternativo.

A ambiguidade foi uma provocação intencional deixada por Mike McMahan, segundo declaração dada ao bem mais confiável site Cinema Bland: “Escuta, eu não vou dizer aos fãs como responderem a qualquer coisa. Se você assistir [ao “Fissure Quest”], você pode ver que as linhas do tempo em todas as realidades diferentes estão todas bagunçadas. Eu estava sendo meio provocativo com aquele momento e sabendo o que estava fazendo? Sim. Não sou burro. Também não está firmemente [estabelecido] — outra mudança do multiverso que vimos fez a nave virar uma barca klingon. Você pode interpretar aquele momento como quiser e falar comigo sobre ele em dez anos (risos).”

Mike cita uma ocasião em que a onda de distorção da realidade transforma uma nave espacial em um barco para mostrar o absurdo que é tomar essas transformações como conclusões firmes sobre o que quer que seja. Mas talvez seja mais fácil perceber que a aparição dos klingons de Discovery não nos obriga a pensar que eles nunca existiram na chamada linha do tempo primária (prime), a principal da franquia, ao lembrar no que ondas de distorção transformaram a USS Cerritos ao longo do episódio: originalmente da classe California, ela é transformada em uma nave da classe Miranda (como a Reliant, de Jornada nas Estrelas II: A Ira de Khan), depois numa nave da classe Sovereign (como a Enterprise-E de Jornada nas Estrelas: Primeiro ContatoInsurreiçãoNêmesis), e também numa de classe Galaxy (como a Enterprise-D de A Nova Geração), entre outras. Façamos aqui um exercício de interpretação. A opção mais razoável é:

a) Em outros universos, a Cerritos não é uma nave da classe California, mas sim de outras classes, de acordo com as circunstâncias daqueles universos;

ou

b) Os filmes e séries que mostram as classes alternativas da Cerritos se passam em outros universos.

Convenhamos, nem Gene Roddenberry teria tamanha sanha revisionista.

De todo modo, seja descanonizando ou meramente lançando alguma série ou filme em outra linha do tempo, Lower Decks não faz ostensivamente nenhuma das duas coisas. No limite, o episódio dá liberdade ao fã de interpretar as séries e filmes como quiser — algo que, por sinal, ele sempre teve. Se você quiser pensar que cada série, e cada episódio até, se passa em um universo diferente, sempre teve liberdade para isso — ainda que nada seja dito ostensivamente nesse sentido.

Por fim, vale reforçar o recado: muito cuidado com manchetes ou artigos espalhafatosos em sites pouco confiáveis. É muito importante estar de olho na credibilidade de quem traz a informação, no quanto ela errou no passado e se seu modus operandi a cada nova publicação segue o mesmo padrão característico de informação não verificada ou clickbait.

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