Na data em que são comemorados os 44 anos de Jornada nas Estrelas: O Filme, lançado originalmente em 7 de dezembro de 1979, o Trek Brasilis traz um texto a respeito da histórica trilha sonora do longa, publicado originalmente em 2019 no volume zero da Coleção Trek Brasilis.
A trilha que traduziu Jornada nas Estrelas
O compositor Jerry Goldsmith, em seu auge criativo, concebeu para a estreia de Star Trek nos cinemas aquela que talvez seja a obra-prima de sua fantástica carreira.
Por Fernando Penteriche
“Eu nunca seria um especialista na série como a maioria dos fãs é; até hoje não sei direito o que é um klingon.”
Jerry Goldsmith podia até não saber o que era um klingon em 1979, quando foi contratado por Gene Roddenberry para criar a trilha sonora de Jornada nas Estrelas: O Filme, mas com certeza compreendeu a visão que o criador de Star Trek tinha das aventuras da USS Enterprise e traduziu isso com enorme competência, ao compor um poderoso conjunto de músicas que se refletiriam em praticamente todas as futuras encarnações da saga.
A história de Goldsmith com Jornada nas Estrelas começa nos anos 1960, quando o compositor foi sondado por Roddenberry para escrever a música de “The Cage”, o primeiro piloto da série, em 1964. Como estava ocupado, indicou para essa missão Alexander Courage, um colega já veterano em Hollywood que era arranjador, mas também compositor. Courage fez então o tema de abertura da série, com as mais famosas quatro notas e fanfarra da televisão mundial. A Série Clássica de Jornada contou ainda em sua equipe musical com nomes de peso, como Fred Steiner, Sol Kaplan, Gerald Fried e George Duning. Foram eles que compuseram o som singular e inesquecível que marcou as três temporadas do programa original.
De volta a 1979, Jerry Goldsmith, então com 50 anos, era conhecido como um tremendo compositor, tanto para televisão, como para o cinema. Sujeito que gostava de inovar, tinha feito uma trilha sonora totalmente fora do padrão para Planeta dos Macacos (1968), mas em Alien, O Oitavo Passageiro (também de 1979) havia entregado ao diretor Ridley Scott algo mais clássico para o terror espacial.
Robert Wise, o diretor de Jornada nas Estrelas: O Filme, havia trabalhado com Goldsmith em O Canhoneiro do Yang-Tsé (1966), e os dois já tinham afinidade. Logo de cara, foi decidido que o tema da série original de Star Trek não entraria na nova trilha e que o compositor teria de desenvolver alguma outra coisa. Curiosamente, devido ao excesso de trabalho e ao tempo exíguo (poucos meses entre a chegada dele na equipe e o lançamento nos cinemas), Jerry trouxe Alexander Courage para ajudá-lo nos arranjos, e os dois decidiram que usariam sim o tema clássico de Jornada, mas nas sequências envolvendo a narração de William Shatner para o diário do capitão. Além de Courage, mais um compositor da Série Clássica se juntou ao time, Fred Steiner, que ao final não foi creditado e disse que seu trabalho foi o equivalente ao de um ghost-writer (autor que é pago para produzir uma obra assinada por outra pessoa) em algumas poucas sequências.
Para Jornada nas Estrelas: O Filme, Goldsmith resolveu que, nesse projeto, iria deixar seu pensamento modernista um pouco de lado e embarcar numa pegada mais tradicional. “Quando você para e pensa, o espaço é muito romântico”, disse à época. “É como o Velho Oeste, com a diferença de que você está num universo infinito e tudo o que importa é descobrir o que tem pela frente, e as novas vidas. Eu acho que a premissa básica de Star Trek é essa. É bondade, e um mundo melhor para se viver junto aos demais.”
Embora Wise nunca tenha pedido a ele músicas como as de Star Wars (1977), então sucesso absoluto nas lojas de discos, Jerry entendeu que esse seria o caminho a seguir e criou um tema romântico, além de musicar várias passagens do filme que estavam mais ou menos já prontas. Ao ouvir o material, os produtores recusaram o produto. O diretor Robert Wise afirmou que não havia um tema principal forte nas músicas, e Goldsmith chegou a sugerir que ele fosse atrás de outro compositor, o que Wise se negou a fazer. Aproveitando um espaço de dez dias de folga entre as gravações, Jerry criou então aquela que se tornaria a música que é a cara da fase cinematográfica de Jornada nas Estrelas, posteriormente também usada como tema de abertura da série A Nova Geração (1987).
Representando musicalmente a visão utópica de Roddenberry para o futuro da raça humana, “ela era rítmica, mas não militarista; moderna, porém acessível aos tradicionalistas; e expressava o indômito espírito que sempre norteou a tripulação da USS Enterprise”, escreveu certa vez o especialista Jeff Bond.
Para comportar uma orquestra com 98 instrumentos, Goldsmith levou seu pessoal para os estúdios da 20th Century Fox, maiores que os da Paramount. O filme tinha data marcada para estrear, 7 de dezembro de 1979, e em novembro daquele ano as gravações musicais ainda estavam sendo feitas, em ritmo acelerado. Como a produção do filme foi bem tumultuada, muitas vezes a orquestra se reunia e não tinha nenhum pedaço dele para assistir.
Para que dezenas de músicos não ficassem ociosos, várias vezes eles regravaram trechos que já tinham sido feitos, sempre buscando aperfeiçoar o material. Um instrumento novo que Jerry incorporou à trilha de Jornada nas Estrelas: O Filme foi o blaster beam. Dispositivo criado e manipulado por Craig Huxley, um cara que já tinha atuado em dois episódios na Série Clássica quando criança, “Operation: Annihilate!” (onde viveu o sobrinho de Kirk) e “And the Children Shall Lead”, emitia um som de golpe eletrônico metalizado, que foi usado nas sequências com V’ger. “Era um barulho tão imponente e estranho que imediatamente estabelecia que V’ger fosse uma entidade incompreensível e alienígena”, disse o mesmo Bond em seu livro The Music of Star Trek, de 1999. “Podemos ouvir esse blaster beam nas cenas em que aparece a enorme nuvem de V’ger, uma indicação de que estamos lidando com uma entidade com características de um deus”, completou.
A peça de seis minutos que faz fundo à contemplativa sequência em que o almirante Kirk (William Shatner) inspeciona por fora a Enterprise, numa nave auxiliar pilotada por Scotty (James Doohan), foi marcante para Goldsmith. “A versão que está no filme, e no álbum lançado nas lojas, traz a sequência que gravamos na íntegra, sem edição alguma. Eu amo quando temos longas cenas sem efeitos especiais ou diálogos, apenas a música ao fundo. Em muitos filmes é preciso fazer contas matemáticas, além de composição musical, para ver como vai se encaixar tudo. Assim é difícil deixar fluir. Mas neste caso não, deu para eu me divertir e compor de verdade.”
Os trabalhos para o filme contaram ainda com uma música com agressiva atmosfera tribal para os klingons, aqueles que Jerry não sabia ao certo o que eram, mas que conseguiu, com toda a sua experiência, retratar de forma marcante. “Foi algo instintivo. Eles eram brutais, uma característica primitiva, eram os caras maus”, contou.
Já para as sequências em Vulcano, durante o ritual do Kolinahr de Spock, Goldsmith trabalhou numa linha de música não emocional, se é que isso é possível. “Eu acho que consegui fazer o que queria, mas foi muito difícil. Música não é sobre isso, música serve para expressarmos emoções.” Já o tema romântico, que serviu como o tema de Ilia e Decker, foi usado no filme inicialmente como uma abertura antes dos créditos, numa tela totalmente preta (na Edição do Diretor, lançada originalmente em 2001 e depois, com diversas melhorias e em alta definição em 2022, estrelas foram acrescentadas), seguido do impactante tema principal nos créditos iniciais.
O trabalho de Jerry Goldsmith foi indicado ao Oscar de Melhor Trilha Sonora Original em 1980, mas não venceu. Lançado junto com o filme, em 1979, o LP do primeiro longa de Star Trek foi um sucesso de vendas, trazendo o som do retorno triunfal da USS Enterprise em nove faixas, com 37 minutos de músicas. Em 1986, o LP saiu em CD, com o mesmo conteúdo, em formato digital. Nas comemorações dos 20 anos do filme, em 1999, a Columbia Records trouxe às lojas um CD duplo, desta vez com 18 músicas em 64 minutos num dos discos. O segundo CD do box apresentava a versão estendida de Inside Star Trek, uma espécie de avô dos podcasts apresentando narrações de William Shatner, DeForest Kelley, Nichelle Nichols e Gene Roddenberry (numa entrevista com Isaac Asimov), lançado antes em 1976 no formato vinil.
Produzida pela gravadora La-La Land Records em 2012 de maneira limitada a 10 mil unidades, a então edição definitiva da trilha de Jornada nas Estrelas: O Filme trouxe em um CD triplo todas as versões anteriores (exceto o material de Inside Star Trek) e ainda as músicas recusadas escritas por Jerry Goldsmith antes da criação do tema principal, além de alguns bônus interessantes para os fãs. Quando a edição de diretor foi relançada em Blu-ray e 4K em 2022, a Paramount Music colocou nas lojas, e nas plataformas de streaming musical, um novo CD com faixas remasterizadas.
Depois do primeiro Jornada para o cinema, Jerry musicou mais quatro aventuras de Star Trek para a tela grande e criou o tema da série Star Trek: Voyager. O artista nos deixou em 2004 e, mesmo com uma carreira tão incrível, a trilha sonora de Jornada nas Estrelas: O Filme é, sem discussão para muitos, seu melhor trabalho. Para eles, assim como uma vez esteve escrito no pôster deste filme, não há comparação.