Um aspecto de Jornada nas Estrelas que já foi muito visto, mas pouco explorado em artigos é a influência do ramo do Direito em diversos episódios.
Para citar exemplos, na Série Clássica já tivemos julgamentos em “Court Martial”, “The Squire of Gothos”, “Space Seed” e até no sexto filme, “A Terra Desconhecida”. Na Nova Geração tivemos julgamentos em “Encounter at Farpoint”, “Justice”, “A Matter of Perspective” e “All Good Things” e audiências em “The Measure of a Man” e “The Drumhead”. Em Deep Space Nine tivemos audiências em “Dax” e julgamentos em “Tribunal”. Em Voyager, finalmente, tivemos audiências em “Death Wish”.
Analisaremos neste texto o episódio “The Menagerie” (A Coleção), que talvez seja o mais apropriado por mencionar a pena de morte, de modo superficial, e o caráter preventivo de uma norma sancionatória. Não são aspectos explorados diretamente pelo episódio, mas estão lá.
Nesse episódio Spock seqüestra o capitão anterior da Enterprise, Cristopher Pike, hoje debilitado e paralítico em conseqüência de um acidente, com o intuito de levá-lo a Talos IV, onde os habitantes tem o poder de concedê-lo a ilusão de plenitude física.
Nesse episódio descobrimos que a penalidade imposta a quem se aproximar de Talos IV é a morte. Parece-me um pouco deslocada do mundo perfeito idealizado por Gene Roddenberry a noção de que a pena capital ainda seja imposta no século 23, única e exclusivamente no caso de descumprimento da proibição de não ir a um determinado planeta.
Na lógica do episódio os habitantes de Talos IV, por serem dotados de excepcionais poderes mentais, são considerados perigosíssimos e, portanto, qualquer forma de contato com eles deve ser coibido.
Mas será que não é forçada em demasia a imposição da pena capital aos infratores?
Para o episódio funcionar perante a audiência não, pois um certo suspense é necessário para prender a atenção e mostrar a gravidade da situação. A audiência fica apreensiva, “será que Spock será condenado à morte apenas por um gesto humanitário, qual seja, buscar o bem estar de seu antigo capitão e amigo?”. O Capitão Kirk, por ser o responsável pelas condutas de sua tripulação, também fica sujeito à condenação e aí a situação se complica ainda mais.
Mas vamos esquecer por um momento o fato de os roteiristas terem inserido esse elemento apenas como intuito de provocar suspense e vamos nos concentrar no fato de que a pena capital existe no universo de Jornada nas Estrelas.
Qual seria natureza jurídica da pena capital imposta aos infratores que tenham ido a Talos IV? Para responder a essa questão vamos fazer uma breve menção às teorias da pena, existentes no nosso mundo real.
Primeiramente temos a Teoria Absoluta, onde a pena é a retribuição justa do mal injusto cometido pelo criminoso. Por essa teoria o delinqüente é punido tão somente porque cometeu um crime; não visa a recuperação social do criminoso.
Em segundo lugar temos a Teoria Relativa, onde o intuito da pena é o seu caráter preventivo. Sabendo da existência de uma penalidade, a sociedade e, principalmente, o eventual infrator ficarão inibidos da prática do ato criminoso. O objetivo aqui é atemorizar.
Em último lugar temos a Teoria Mista (ou Unitária), onde a pena tem caráter retributivo e preventivo. Retributivo porque o infrator receberá uma penalidade por ter cometido a ato criminoso; preventivo porque a imposição da pena servirá para a reeducação e recuperação do criminoso e ainda servir como instrumento de intimidação geral. O Código Penal brasileiro adotou essa teoria.
Analisadas essas teorias concluímos que a pena de morte prevista no episódio em questão se reporta à Teoria Relativa. A pena tem a função de atemorizar a tal ponto que ninguém se atreva a violar a proibição. Mas mesmo assim há uma grande desproporção entre o ato cometido e a pena imposta.
O legislador penal sempre deve cominar as penas de acordo com a gravidade dos crimes, sempre tendo-se em vista o que a sociedade considera ou não como grave, quais condutas são toleradas e quais não o são.
No Brasil, embora poucos saibam, há previsão da pena de morte no Código Penal Militar, no caso de traição em período de Guerra Externa. A própria Constituição Federal ao proibir a pena de morte no art. 5ª, XLVI, faz uma ressalva “salvo em caso de guerra externa declarada…”. E, para quem está curioso para saber como se aplicará a pena de morte, o Código de Processo Penal Militar dispõe que será através de fuzilamento (!!!). Parece ou não fora da nossa realidade? Não é preciso dizer que essa pena de morte nunca foi aplicada e espero que jamais o seja. O correto seria uma atenuação dessa pena para uma de prisão por tempo prolongado, pois a pena de morte é incompatível com o direcionamento da Sociedade e, por conseqüência, do Direito no mundo moderno. O Estado não pode deter o poder sobre a vida e a morte das pessoas; é por demais perigoso e pode ficar sujeito à arbitrariedades.
É perfeitamente compreensível que muitos cidadãos preguem ser a pena de morte uma das soluções para evitar a prática de crimes mais graves, como o homicídio doloso qualificado (intencional e grave), por exemplo. Ainda mais porque atualmente parece que a imposição da pena de prisão não está sendo suficiente para coibir a prática de crimes, pois impera a noção de impunidade por parte dos criminosos. A pena de morte teria função preventiva, tão somente. Mas o grande problema é que se um condenado, nem que seja apenas um em um milhão, seja na verdade inocente e venha a morrer em conseqüência da condenação, toda a credibilidade do sistema cai por terra. Inocentes já foram condenados no passado, hoje ainda o são e nada impede que no futuro isso ocorra de novo. É um risco muito grande.
Citaremos aqui um exemplo real, que não trata da pena de morte, mas demonstra como erros no processo podem ser fatais. Há alguns anos um sujeito qualquer foi condenado à pena de reclusão em regime fechado (presídio de segurança máxima) e estava foragido. Ele tinha um nome muito comum na nossa sociedade e nos autos do processo criminal não havia uma única foto dele como, por exemplo, em uma cópia do R.G. que deveria estar anexa aos autos e não estava. O Juiz expediu o mandado de prisão e as autoridades policiais bateram na porta da pessoa errada, que tinha o mesmo nome do condenado foragido. O inocente foi arrastado à força para fora de sua casa e levado ao Carandiru sem ter oportunidade de se defender. Seu advogado fez tudo o que podia o mais rápido possível para conseguir soltá-lo, mas quando ficou comprovado o engano já haviam se passado meses e o inocente já havia contraído o vírus da Aids durante a permanência no cárcere. O Estado foi condenado a pagar-lhe uma indenização. Mas não há indenização alguma que repare esse erro. Indiretamente o inocente foi condenado à morte.
Não entraremos no mérito de que a pena de morte pode ser uma solução devido ao aumento do número de crimes, à lotação excessiva nos presídios, à impunidade de muitos criminosos etc. Pode até ser que a imposição da pena capital seja uma das possíveis soluções contra o aumento da criminalidade, mas acredito que o preço para sabermos a resposta pode custar caro no final.
No final de “The Menagerie” a Frota Estelar abranda a proibição e expede um permissivo relativo à visita ao planeta pelo fato das circunstâncias serem extraordinárias naquele momento (incrível como os roteiristas encontram soluções rápidas quando percebem que o tempo de duração do episódio está terminando). Kirk e Spock ficam livres da condenação e ao capitão Pike é dada uma nova vida na forma de uma ilusão. Pena que em nosso mundo nem sempre as histórias tenham um final feliz como esse.
Para quem tiver interesse em conhecer melhor as ciências do Direito Penal e do Direito Processual Penal brasileiros é recomendada a leitura de algumas obras que além de serem bem acessíveis estão entre as melhores e mais completas já publicadas:
– Flávio Augusto Monteiro de Barros: Direito Penal, Parte Geral, vol. 1, Editora Saraiva;
-Guilherme de Souza Nucci: Código Penal Comentado, Editora RT;
-Guilherme de Souza Nucci: Código de Processo Penal Comentado, Editora RT;
-Julio Fabbrini Mirabete: Processo Penal, Editora Atlas.
Artigo originalmente publicado no conteúdo clássico do Trek Brasilis.