Os fãs de Jornada nas Estrelas são, possivelmente, os mais exigentes e precisos que há. Eles não deixam passar nenhum detalhe despercebido, esteja ele relacionado aos roteiros ou à produção. Embora a quarta série da franquia, Voyager, tenha tido ao longo de seus sete anos a qualidade dos episódios questionada por muitos, certamente o mesmo não aconteceu quando o foco da discussão era a qualidade de seus cenários. E há motivos para isso. As equipes de criação e produção asseguraram que mesmo os trekkers mais reacionários admirassem o que viam. Confira neste artigo duplo tudo o que há para saber sobre o assunto – do projeto à demolição.
Os cenários fixos
Quase sempre que se realizavam as gravações da série, as praticidades e o orçamento das locações eram cuidadosamente pesados, para que de fato pudessem ser feitos o desenvolvimento e a descrição da história. Os cenários fixos – ou permanentes – de Voyager eram aqueles usados com mais freqüência, como a ponte de comando, que aparecia em todos os episódios. Além disso, certos roteiros pediam a construção de cenários que retratassem, por exemplo, um aposento em um mundo alienígena ou o interior de uma nave.
A roteirista Lisa Klink explica, sobre o episódio “Resistance”:
“O orçamento também era um problema, porque geralmente construímos dois cenários novos, mas aqui tudo se passa em um planeta alienígena. Eles têm que começar em um lugar e terminar em outro, e estes são os nossos dois cenários. Eles vão para algum outro lugar? Então temos que construí-lo também… Acabamos construindo três cenários: uma praça, a prisão e uma cabine (o quarto do personagem Caylem). Tentamos de todas as formas ambientar [o roteiro] no set da caverna, que é um cenário fixo, mas não conseguimos. Foi um episódio terrivelmente caro”.
Do ponto de vista de um produtor de TV, o chamado “bottle show” requer comparativamente o menor dos preparos; o termo refere-se aos segmentos em que apenas os cenários fixos são usados. Eles são mais econômicos em relação ao tempo, dinheiro e esforço, já que não há novos sets para projetar, construir, equipar e iluminar, e a equipe de produção já conhece as logísticas, como a iluminação e os ângulos da câmera. Por exemplo, o episódio-duplo “Unimatrix Zero” pediu o uso de vários cenários novos (conhecidos como “swing sets”), e diversas seqüências em CGI (gráficos gerados por computador). Em adição, parte do custo mais alto correspondia à contratação de diversos atores convidados e figurantes, e à maquiagem e figurino necessários (a destacar, a dispendiosa criação de drones Borgs). Além da questão dos recursos e custos, a equipe de produção ainda dedicou tempo e esforços adicionais a seu ritmo de trabalho, que, comumente, já era rigoroso. Por conseguinte, não é difícil imaginar por que o episódio anterior, “The Haunting of Deck Twelve”, era um “bottle show”, cujos gastos limitaram-se à escalação do elenco-mirim (as crianças Borgs) e poucos efeitos visuais (a presença alienígena a bordo). Os “bottle shows” de Voyager tinham, ainda, outra vantagem. Eles geralmente se concentravam na interação entre personagens e no seu desenvolvimento – algo que costumava ser deixado de lado na série.
A Rainha Borg (Susanna Thompson), em “Unimatrix Zero”.
Lolita Fatjo, co-produtora e coordenadora de pré-produção (temporadas 1-6) e coordenadora de roteiros (temporada 6), disse:
“Uma coisa que é sempre bem-vinda é o que chamamos de “bottle shows’, o que significa que tudo acontece inteiramente na nave, ou na estação, ou na USS Defiant. Um “bottle show” significa que podemos economizar dinheiro por não termos que construir novos sets, trazer grandes personagens convidados, fazer cenas de batalha, ou qualquer coisa do tipo. A maior parte dos “bottle shows” são orientados nos personagens. É apenas um modo de segurar o orçamento dos episódios. Então, escrever um bom “bottle show” é sempre um bom caminho a seguir” (Fonte: Star Trek Monthly)
Quanto aos cenários fixos, a Plataforma 8 da Paramount Pictures/Viacom abrigava a ponte de comando, sala da capitã e sala de reuniões, além do refeitório e da cozinha anexa (na TV, observa-se que a ponte e as duas salas são diretamente ligadas, o que, de fato, também acontecia atrás das câmeras). Já a Plataforma 9 continha a área de carga e a engenharia principal, além de cenários temporários que eram construídos para episódios específicos e, depois, destruídos.
Essa área da Paramount tem sido o lar de Jornada nas Estrelas desde 1977, quando Gene Roddenberry e o estúdio preparavam o lançamento da série Jornada nas Estrelas: Fase II. Embora os cenários fixos para aquele seriado tivessem sido erigidos nas plataformas 8 e 9, eles nunca foram utilizados. Na verdade, a franquia acabou indo para o cinema, de modo que, após uma reciclagem, os sets foram usados em Jornada nas Estrelas – O Filme. Novas reciclagens eram empreendidas a cada novo filme, até que, com o lançamento de Jornada nas Estrelas: A Nova Geração em 1987, as plataformas passaram a abrigar cenários verdadeiramente fixos.
Depois das filmagens do último episódio daquela série no início de 1994, os cenários foram mais uma vez adaptados para a gravação de Jornada nas Estrelas – Generations e, assim que se amarrou a produção no final de maio daquele mesmo ano, os cenários de A Nova Geração foram finalmente demolidos para dar lugar aos de Jornada nas Estrelas: Voyager, que foram confeccionados literalmente no mesmo local que os anteriores; a ponte da Voyager, por exemplo, ocupava o mesmo espaço da Enterprise-D, assim como os corredores, a sala de transporte e a engenharia.
Rick Sternbach, o ilustrador e projetista de Voyager, comentou sobre isso:
“Uma vez que [A Nova Geração] tinha acabado, nós reconstruímos os cenários para o filme. Uma vez que o filme terminou, o processo começou do zero de novo. Rasgar, martelar, cortar, demolir. E a Voyager nasceu. Minha primeira exposição a Jornada foi em 1978, trabalhando no primeiro filme. Eu já vi essa cena muitas vezes.”
Richard James, o projetista dos cenários interiores de Voyager, ateve-se a um conceito muito particular, usado em todos os outros seriados de Jornada: os sets das produções televisivas típicas têm apenas três lados; raramente eles terão uma quarta parede que os torna em salas fechadas, e a câmera filma de onde a parede que falta estaria. Mas, em Jornada nas Estrelas, a maior parte dos cenários fixos têm seis lados: quatro paredes, um piso inteiramente detalhado e um teto inteiramente detalhado. Assim, o trabalho extra envolvido na construção e planejamento das logísticas compensavam pelo fato de esses cenários transmitirem ao telespectador um incrível senso de realismo: não importa o ângulo do qual a câmera filme, sempre haverá uma sensação de complemento. Contudo, os cenários foram também projetados para ter paredes que pudessem ser removidas, caso a câmera precisasse ser posicionada em certos lugares.
A chamada “wild wall”, parede que compõe um cenário fixo, mas pode ser removida.
Em Voyager, a construção dos cenários fixos originalmente visava compreender aqueles que já haviam sido estabelecidos nas séries anteriores: a ponte, a engenharia principal, a enfermaria, a sala de reuniões e o alojamento da tripulação – este, com um desenho modular adaptável a cada indivíduo. O uso contínuo desses aposentos não se tratava – e ainda não se trata – de falta de inspiração ou imaginação; os fãs adoram e inclusive esperam a sua presença, muito embora esperem também uma atualização de conceitos e originalidade. A Nova Geração introduziu a sala do capitão à fórmula, portanto a sala da capitã Janeway faria parte dos cenários permanentes, como também o fariam o refeitório e, mais tarde, o holodeck e o laboratório de astrométricas.
Em entrevista ao Trek Brasilis em 2 de maio de 2001, Rick Sternbach comentou:
“Não é tão difícil criar novas aparências se você entende o material com que está começando. É um pouco uma questão de balancear, entre inventar algo muito, muito novo que talvez seja um pouco radical demais e inidentificável, e algo que parece bastante com as velhas coisas que já vimos. Alguns dos melhores designs deveriam te remeter, ao menos subconscientemente, a algo anterior”.
Cenários “fold and hold” & “swing”
Por motivos práticos, devido à falta de espaço, qualquer set necessário para cenas no holodeck eram construídos na Plataforma 16. As plataformas 8 e 9 simplesmente não tinham como acomodar novos ambientes. Como alguns desses cenários eram usados com certa periodicidade, eles eram desmontados e armazenados em uma localidade fora do lote para reutilização posterior (daí o nome “fold and hold sets”). Um exemplo disso é a casa usada na novela holográfica gótica de Janeway, vista nos primeiros episódios da série. Já os cenários de uso único e imediato, em episódios específicos, são chamados de “swing sets” e também costumavam ser construídos na Plataforma 16.
“Endgame” e a demolição dos cenários fixos
Com o fim da série em vista, entre março e abril de 2001, os cenários fixos de Voyager começaram a ser demolidos. Em certas instâncias, eles foram substituídos por sets que incorporaram o episódio final da série, “Endgame”. Raramente em Jornada nas Estrelas os elementos que compõem os cenários são aproveitados. Com a exceção de pequenos objetos e itens de decoração, tudo é simplesmente destruído por tratores.
Sobre essa questão, o cartógrafo estelar de Jornada, Geoff Mandel, disse em entrevista exclusiva ao Trek Brasilis em 14 de setembro de 2002:
“Os cenários de Voyager poderiam ser reconstruídos do nada em uma semana se houvesse uma necessidade para eles — todas as plantas existem, e se há uma coisa que a equipe de construção de Jornada sabe fazer, é recriar cenários de episódios anteriores. Como um exemplo, nós reconstruímos a câmara da Rainha Borg do nada não uma, mas duas vezes, enquanto eu trabalhei para Voyager: para “Unimatrix Zero” e então para “Endgame”. Seria muito caro manter cenários como aquele montados por meses seguidos só para o caso de você ter a oportunidade de usá-los! Também, você precisa lembrar que os cenários em si são relativamente finos — basicamente madeira compensada, dois por quatro, e tinta. Eles não durariam muito em uma atração de tráfego pesado como a “Star Trek: The Experience”, e de fato todos os cenários da Enterprise-D em Las Vegas tiveram de ser reprojetados com suportes de aço e materiais “do mundo real”. Mesmo os adesivos foram protegidos por coberturas de Plexiglas!”
O processo de demolição
Foi gradual, porém rápido, o processo de desmantelamento dos cenários fixos da série. Ele se deu nas seguintes etapas:
22 de março de 2001 – O laboratório de ciências da Voyager estava sendo demolido; tratores grandes pararam ao lado da Plataforma 9 e a equipe de demolição teve um dia cheio, removendo toda a madeira contraplacada e o Plexiglas. A idéia era abrir espaço para os cenários do último episódio da série, “Endgame”.
26 de março de 2001 – Esse foi o último dia de filmagens no cenário do refeitório, que, aparentemente, começou a ser demolido momentos mais tarde.
28 de março de 2001 – Foi filmada a última cena na sala da capitã, talvez aquela em que a personagem interage com a sua contraparte do futuro em “Endgame”. O cenário foi então adaptado para abrigar a sala do capitão da USS Rhode Island, que incluía um grande painel iluminado da galáxia produzido por Geoffrey Mandel.
29 de março de 2001 – Na Plataforma 8, as equipes demoliram o refeitório e os aposentos da capitã, que tinham sido temporariamente convertidos na cabine de Harry Kim na USS Rhode Island. O turboelevador também foi destruído, assim como o corredor que levava a ele. O campo de estrelas (na verdade, um tecido preto coberto com pequenos pedaços de alumínio) foi retirado, como também o foram a tela verde (usada para as seqüências de efeitos visuais) e a grade de luzes. Na Plataforma 9 foi construído um quarto de hospital, no qual Tuvok estava sendo tratado em “Endgame”. Esse set foi erigido no espaço deixado pelo laboratório de ciências. Também na Plataforma 9, todos os painéis de controle e monitores iluminados estavam faltando no cenário da engenharia.
30 de março de 2001 – Outro cenário “swing” foi construído próximo aos destroços do refeitório: uma parte da ponte de comando da USS Rhode Island. Foi o primeiro cenário de ponte feito por Geoffrey Mandel, que disse estar “irracionalmente orgulhoso dos gráficos que piscavam”. Ele acrescentou: “À medida que entrava na plataforma, as luzes pareciam muito brilhantes, e de repente eu percebi que as enormes portas da Plataforma 8 estavam abertas à luz do sol. Pela primeira vez em 14 anos você podia ficar em um lado da plataforma e ver o outro lado!”
3 de abril de 2001 – O refeitório e os aposentos da capitã se foram completamente – até mesmo os carpetes e tábuas do piso haviam sido arrancados. A equipe de construção recolocou e pintou o piso. A placa dedicatória da Voyager (instalada em uma parede da ponte) foi removida. Mandel conta: “Nenhuma surpresa, considerando o excelente souvenir que daria”. Além disso, um grupo de executivos da Paramount posaram para algumas fotos na cadeira da capitã. Na Plataforma 9, a equipe de construção aplicou alavancas e parafusadeiras no nível superior da engenharia. Enquanto jogavam toneladas de madeira pintada e metal no andar de baixo, ouviam músicas antigas no rádio. O núcleo do reator ficou por mais algum tempo, mas sem o seu revestimento, revelando todo o seu interior oco.
5 de abril de 2001 – O cenário da engenharia da Voyager agora não passava de uma armação de madeira. Começou a demolição da área de carga/hangar/holodeck, que formavam um único set – o qual havia permanecido praticamente intocado desde A Nova Geração. As alcovas de regeneração Borgs foram empacotadas e colocadas em um armazém, para possível uso futuro.
6 de abril de 2001 – Foi realizada uma festa surpresa para os membros da equipe de produção de Voyager que estavam se aposentando, como o designer Richard James. Para dar um maior senso de irrealidade, os figurinistas colocaram vários objetos gigantes por todo o cenário iluminado da ponte, como uma enorme roleta, um sarcófago egípcio e uma taça de Martini. Elenco e equipe inteiros sentaram-se a mesas dobráveis ricamente cobertas com toalhas prateadas e douradas. Os Borgs que havia participado das filmagens de “Endgame” também estavam lá, como também estava Alice Krige (inteiramente vestida de Rainha Borg), ao lado de Jeri Ryan e Robert Beltran.
9 de abril de 2001 – Esse foi o último dia oficial de filmagens. A equipe da segunda unidade ainda tinha algumas cenas para terminar, mas, de forma geral, foi o último dia para a maior parte deles, inclusive os atores. Alguns membros da equipe de produção, como os artistas cênicos Michael Okuda e Jim Van Over, já haviam começado a trabalhar na nova série [Enterprise]. Na Plataforma 8, foram filmadas as últimas cenas na ponte de comando, mas, ao mesmo tempo em que se filmava, o esqueleto da nova nave Enterprise já estava se levantando onde o refeitório da Voyager e os aposentos da capitã uma vez ficaram. Anteparos e vãos de portas já estavam posicionados para abrigar os novos corredores. Repórteres e equipes de filmagens ficaram seguindo os atores por todos os lugares, relatando o último dia de trabalho, embora o elenco parecesse indiferente ao destino dos cenários.
11 de abril de 2001 – A festa de encerramento de Jornada nas Estrelas: Voyager foi realizada no ‘W’, um hotel em Los Angeles. Algumas personalidades da franquia estavam presentes como John de Lancie (Q), Majel Barrett Roddenberry (viúva do criador da série original, personagem recorrente e a voz do computador), Chase Masterson (Leeta, em Deep Space Nine), Armin Shimerman (Quark, em Deep Space Nine) e Brent Spiner (Data, em A Nova Geração).
23 de abril de 2001 – O último episódio da série foi exibido nos Estados Unidos. O prefeito de Los Angeles declarou oficialmente o Dia Jornada nas Estrelas: Voyager.
Dados extraídos do Janet’s Star Trek Voyager site: http://www.star-trek-voyager.net/index.htm
Artigo originalmente publicado no Trek Brasilis em 23 de junho de 2003.