DS9 2×23: Crossover

O universo do Espelho ataca de novo, em continuação de episódio clássico

Sinopse

Data estelar: 47879.2.

Kira e Bashir, regressando de uma missão, passam por uma espécie de perturbação no interior da Fenda Espacial. Após finalmente efetuarem a difícil travessia, eles ficam surpresos por não encontrar Deep Space Nine na vizinhança da fenda, mas sim orbitando Bajor.

Rapidamente, eles percebem estar em um universo alternativo, um em que a humanidade foi feita escrava de uma brutal Aliança Klingon-Cardassiana. Uma versão alternativa de Kira, chamada simplesmente de Intendente, comanda a Terok Nor desse universo, tendo uma versão alternativa de Garak como seu primeiro oficial.

Bashir é imediatamente jogado no setor de mineração, comandado pelo Mirror-Odo (a versão alternativa de Odo), onde encontra o Mirror-O’Brien (também conhecido como “Smiley”, ou “Sorriso”) fazendo a manutenção do lugar. Por outro lado, a Intendente fica completamente fascinada com Kira e lhe conta que foram as reformas do Mirror-Spock (iniciadas após o episódio da série original “Mirror, Mirror“) que propiciaram a queda do Império e o surgimento da Aliança Klingon-Cardassiana, da qual a Bajor desse universo é membro. Bashir e Kira decidem recrutar a ajuda de Smiley nos transportes para tentar voltar para casa com esse método. Smiley, no entanto, diz que não vai ajudar Bashir.

Kira procura ajuda do Mirror-Quark a respeito do transporte, porém, logo em seguida, ele é preso por facilitar a fuga de escravos. Então, chega ao bar, com a sua tripulação, o Mirror-Sisko, que presta serviços de pilhagem e de alcova para a Intendente. Ela manda matar o Mirror-Quark e avisa a Kira que os transportes desse universo foram modificados para impedir novas travessias. A Intendente também diz que promoverá uma festa à noite em homenagem à major.

De volta aos seus aposentos, Kira encontra o Mirror-Garak, que quer o posto da Intendente. O cardasssiano diz que vai matar a Intendente, colocar Kira no lugar dela e depois fazê-la renunciar em seu favor. Ele diz que deixaria Kira e Bashir partirem após a parte dela ser honrada. Kira conta do ocorrido ao Mirror-Sisko, tentando conseguir ajuda, mas ele diz que as artimanhas do Mirror-Garak não são novidade alguma e não se compromete em ajudar.

Após um grave acidente no setor de mineração, ocorre uma fuga em massa dos escravos e Bashir consegue escapar, matando o Mirror-Odo no processo. Bashir encontra Smiley e, finalmente, consegue convencê-lo a ajudar Kira e ele a fugir, concordando em levar o outro O’Brien com eles para casa. Entretanto, sua fuga é interrompida por guardas klingons, que os levam a presença da Intendente na festa.

A Intendente, furiosa com a morte do Mirror-Odo, ordena que o Mirror-Garak mate os dois. Antes de o cardassiano os levar para a execução, Smiley explica a ela por que ajudou Bashir em primeiro lugar, dizendo que, seja lá como for o lugar de onde Bashir veio, ele tem de ser melhor do que esse em que ele vive. O Mirror-Sisko finalmente se sensibiliza e ajuda na fuga de Bashir e Kira e acaba fugindo também com sua tripulação, reforçada por Smiley. Kira e Bashir conseguem recriar as condições do acidente original e conseguem voltar para casa.

Comentários

É muito difícil produzir uma sequência de um clássico e ao menos igualar (quanto mais superar) a qualidade do original. DS9 conseguiu realizar essa mágica aqui em “Crossover”, em que oferece um retrato mais complexo e perturbador dos personagens regulares de Deep Space Nine, em uma premissa “E se…?”, do que aquele oferecido dos personagens da série original, no clássico (indicado ao prêmio Hugo) “Mirror, Mirror“. Saiba mais detalhes, sem ter a necessidade de fazer nenhuma “travessia” para um universo paralelo, nas linhas abaixo.

(DS9 ainda faria tal “mágica” mais uma vez, quando produziu em sua quinta temporada uma espécie de sequência ou revisita ao clássico episódio da série original “The Trouble With Tribbles“, intitulada “Trials and Tribble-ations“.)

“Crossover” é, de fato, uma sequência de “Mirror, Mirror”, pois a sua premissa básica é derivada diretamente da cena final no “universo do Espelho” em que Kirk tenta convencer o Mirror-Spock a pregar reformas políticas no Império. Quase um século depois, vislumbramos os resultados de tais reformas neste episódio de DS9.

A ideia de que o Mirror-Spock se tornou uma figura similar a Edith Keeler, em “The City On The Edge Of Forever“, que teve sucesso em sua cruzada pela paz e desarmamento, mas que, ainda assim, trouxe o completo holocausto a toda a humanidade daquele universo, é, ao mesmo tempo, genial e absolutamente perturbadora. Bravo!

(Entretanto, o fato de que os que eram escravos e que agora escravizam os que os escravizavam continuam a adotar os mesmos métodos e estilo de vida dos seus antigos senhores é, provavelmente, mais medonho ainda, sugerindo um eterno ciclo de guerra, fome e morte.)

(Provavelmente, nada é mais sintomático sobre esse “universo do Espelho” do que as cenas justapostas dos terráqueos comendo como porcos, a Intendente sendo banhada em leite por vulcanos e Mirror-Sisko pilhando o bar do Mirror-Quark para dar de beber aos seus homens.)

A trama do episódio foi do tipo “mais simples impossível”, favorecendo ricas caracterizações em uma atmosfera perturbadora com um sem número de texturas que pessoas menos gabaritadas teriam muita dificuldade de empacotar em uma hora de TV. Apesar de achar o final um pouco corrido (ainda que, neste caso, esta seja uma melhor solução do que ir para o formato de um episódio duplo, uma decisão sempre difícil), não há problemas em aceitar o acidente na estação de mineração (a razão de existir daquela Terok Nor) como uma suficiente cortina de fumaça para permitir a fuga. O eterno clichê trekker da “recriação exata do acidente que nos trouxe aqui para nos levar de volta ao lugar de onde viemos” também não fere em nada a premissa “E se…?” do episódio.

Agora vamos ao que realmente importa: os personagens!

Lembrando que as versões alternativas dos personagens e as suas interações (entre eles e com Bashir e Kira) foram escolhidas para extrair o máximo de drama da premissa “E se…?” subjacente, por exemplo, contrastando relacionamentos e acontecimentos rotineiros do nosso universo com aqueles que vemos distorcidos no episódio. Novos detalhes “cismam” de pipocar a cada assistida (característica comum do trabalho de Fields), tornando impossível (e ao mesmo tempo inútil) esmiuçar completamente o episódio.

Bashir teve um papel extremamente secundário, essencialmente o de ser o “típico cidadão da Federação” e fazer a ponte com Smiley, o “típico escravo da Aliança”. Mas ver Bashir todo sujo, rasgado e fedido mandando a Federação para o inferno, antevendo repercussões quanto à presença de Smiley em sua volta com Kira ao próprio universo, foi um verdadeiro clássico.

O Mirror-Garak é propositalmente mais raso do que o Garak original. É extremamente direto e pouco sutil, vingativo e sedento pelo poder.

O Mirror-Odo, referido simplesmente como “Supervisor”, usa armas, é completamente odioso e brutal, com “regras de obediência” (cuja desobediência é punida com tapas no rosto) e ainda possui claramente capacidades metamórficas. Em seu discurso final, a Intendente traça um aterrador paralelo entre os dois Odos e deixa transparecer uma afeição entre os dois.

(Perguntas nunca respondidas: existe um Dominion ou equivalente nesse universo? Como são eles?)

O Mirror-Quark se revela um nobre, trabalhando na libertação dos escravos, mesmo sugerindo a Kira a possibilidade de enviá-los para o outro universo. Não sabe o que é latinum e parecia ter uma relação muito melhor com a Intendente do que aquela que existe entre os reais Quark e Kira.

Enquanto Bashir foi posto imediatamente no trabalho escravo, Kira foi colocada em uma posição de extremo conforto e liberdade de ação. O fato de ambos chegarem à mesma conclusão sobre o “universo do Espelho” só depõe a favor da atmosfera do episódio. O fato de Kira ter jogado limpo o tempo todo com a Intendente, aliado a pequenos pontos, como quando ela diz que a sua Bajor pode aprender um pouco com a Bajor desse universo e de que ela sente medo da Intendente, põem em dúvida — se ela tivesse que realmente escolher entre seguir o plano do Mirror-Garak ou não — que decisão ela escolheria.

A Intendente é dotada de uma incrível presença e domínio da situação, ainda que essencialmente a um passo da total loucura a cada ponto. O supremo sentimento narcisista que Kira desperta nela (sem falar no subtexto de lesbianismo) só serve para tornar ainda mais complexa a personagem. A cena que melhor descreve a personagem é aquela em que o Mirror-Quark é trazido à sua presença após o interrogatório. Ela mostra sentir grande empatia pelo Ferengi, manda matá-lo de forma rápida e indolor e, enquanto ainda ouvia os gritos de misericórdia do Mirror-Quark, fala a Kira, casualmente, sobre os planos para a festa que ela está organizando em homenagem à major. O seu desgosto pela violência se choca de forma brutal com a sua ordem para o Mirror-Garak executar Bashir e o Mirror-O’Brien.

O Mirror-Sisko se revela um verdadeiro achado, tanto em termos do episódio quanto em direções que seriam tomadas com o verdadeiro Sisko no futuro da série. Suas expressões faciais, sua linguagem corporal e suas risadas são extremamente perturbadoras, o tipo do cara que você não quer ao seu lado nem que ele AME você. Sua pose de pirata e benfeitor da sua tripulação, que pegou um atalho, pela cama da Intendente, para fora do trabalho escravo se revela extremamente frágil — e ele bem sabe disto, o que fica claro para a audiência desde que a Intendente o chama pela primeira vez no comunicador. Ainda assim, ele precisa da conversa de Kira, de um klingon escarrar no rosto de um dos seus homens e do discurso do Mirror-O’Brien para tomar partido.

O depressivo Mirror-O’Brien acaba sendo o destaque do episódio (apesar do reduzido tempo de tela). Desde a sua recusa em ajudar Bashir em primeiro lugar até a sua afirmação de que “eu sou um homem decente”, que é absolutamente dolorosa de se ouvir, até o seu discurso final à Intendente, em que ele explica por que acabou ajudando o doutor no final, Smiley acaba por oferecer um grande senso de credibilidade e fechamento ao episódio.

A direção de David Livingston é absolutamente fenomenal e a sua “Terok Nor altenativa” deste episódio é tão atmosférica e perturbadora quanto a “Terok Nor de cinco anos passados” de James Conway, em “Necessary Evil“. Além da sua já familiar técnica de “aproximação e separação” (já discutida em “The Maquis, Part I“), aqui ele utiliza uma família de angulações extremas para transmitir um senso de realidade alterada.

Observem que, logo após o primeiro “crossover” com Kira e Bashir no explorador, ele muda as angulações para transmitir o senso de que “algo” mudou. Quando os klingons se transportam a bordo, ele literalmente coloca a “câmera no chão” para elevar ao máximo possível essa impressão. As cenas envolvendo as duas Kiras são tão boas (ou melhores) do que os melhores sonhos dos espectadores, simplesmente desconcertantes. O seu domínio técnico é patente por todo o episódio. Tomem por exemplo a cena em que o Mirror-Sisko enfrenta o klingon Telok: logo em seguida, entra a “Intendente”, tomando todas as atenções. Quando a câmera dá um close no rosto de Kira para pegar a reação da major, pega também, ao fundo, o Mirror-Sisko e o Klingon ainda de frente um para outro com os rostos apenas virados para vislumbrar a entrada da comandante daquela Terok Nor. Sensacional! (Recomendações também para todos os envolvidos com os cenários, com um muito inspirado símbolo para a Aliança e iluminação criando uma atmosfera espetacular, especialmente na estação de mineração.)

Os atores mataram a pau, do realístico El Fadil até o impiedoso Robinson, do brutal Auberjonois ao bondoso Shimerman, da estonteante Visitor em dose dupla até o melhor Brooks de toda a série (até então), sem falar no incrivelmente tocante Meaney. Talento para dar e vender!

A promessa do Mirror-Sisko de tentar organizar uma espécie de revolta contra a Aliança teria consequências mais à frente, no episódio “Through The Looking Glass“, da terceira temporada. Apesar de a Aliança descobrir a existência da Fenda Espacial neste episódio, não tivemos nenhum desenvolvimento sobre isso ao longo da série, algo do tipo uma incursão ao Quadrante Gama no “universo do Espelho” e uma invasão em larga escala ao nosso universo.

(Será a Fenda Espacial uma constante através dos universos? Essa pergunta também nunca foi respondida durante a série, mas “tenho fé” que sim.)

(O cruzador klingon que perseguia o explorador entrou na Fenda Espacial no final? Se entrou, por que ele também não fez a travessia?)

A única cena que destoa da intensidade do episódio é a cena inicial entre Kira e Bashir no explorador — ainda que seja interessante por trazer um eco de uma cena, do piloto da série, “Emissary“, entre os dois e menções à amizade de Bashir com O’Brien e do interesse de Bashir por Jadzia — que perde feio se comparada à intensidade do restante do episódio. Tal tempo de tela poderia ser gasto para oferecer um maior “setup” (envolvendo a colônia de Nova Bajor) para o episódio “The Jem’Hadar” ou mesmo para oferecer um vislumbre, via algo relacionado aos profetas, por exemplo, para o que iria acontecer no próprio episódio “Crossover”.

O episódio sofre também das regras simplificadoras de “Mirror, Mirror” (e de outros episódios que invocam uma premissa “E se…?”) que garantem que as versões alternativas dos personagens ocupem uma mesma região do espaço que os seus originais, uma simplificação com a qual qualquer fã de sci-fi já aprendeu a conviver. Aqui não aparecem nem Mirror-Bashir nem Mirror-Jadzia, que aparecerão em “Through The Looking Glass“.

Croosover” é um colossal vencedor por apresentar, dentro da sua proposta, uma sólida base para uma intrigante questão: da forma como as versões alternativas dos personagens são apresentadas neste episódio, não seria possível que os reais personagens de DS9, que nós conhecemos, pudessem chegar a tais extremos, desde que a história tivesse transcorrido um pouco diferente?

Avaliação

Citações

“The players are all the same, but… everyone seems to be playing different parts.”
(Os atores eram todos os mesmos, mas… todo mundo parecia estar em diferentes papéis.)
Kira

“You’re the perfect gift for the girl who has everything!”
(Você é o presente perfeito para a garota que já tem tudo.)
Mirror-Garak 

Trivia

  • Este episódio (assim como suas sequências) é baseado no mesmo universo paralelo do episódio da segunda temporada da série original, “Mirror, Mirror“. DS9 retornaria ao “universo do espelho” por mais quatro vezes, nos seguintes episódios: “Through the Looking Glass“, da terceira temporada, “Shattered Mirror“, da quarta temporada, “Ressurection“, da sexta temporada, e “The Emperor’s New Cloak“, da sétima temporada.
  • Nana Visitor tem ótimas lembranças do episódio, especialmente nas filmagens da cena da banheira, em que, “por uma tremenda coincidência”, a equipe responsável usou, na água da banheira, a ÚNICA substância capaz de desgrudar os tapa-seios de Nana.
  • O Mirror-Quark morre no episódio. Em cada episódio subsequente relativo ao “universo do Espelho”, excetuando-se “Ressurection“, da sexta temporada, morre a versão alternativa de um ferengi.

Ficha Técnica

História de Peter Allan Fields
Roteiro de Peter Allan Fields e Michael Piller
Dirigido por David Livingston

Exibido em 16 de maio de 1994

Título em português: “Espelho, Espelho Meu”.

Elenco

Avery Brooks como Benjamin Lafayette Sisko
René Auberjonois como Odo
Nana Visitor como Kira Nerys
Colm Meaney como Miles Edward O’Brien
Siddig El Fadil como Julian Subatoi Bashir
Armin Shimerman como Quark
Terry Farrell como Jadzia Dax
Cirroc Lofton como Jake Sisko

Elenco convidado

Andrew Robinson como Garak
John Cothran, Jr. como Telok
Stephen Gevedon como um klingon
Jack R. Orend como um humano
Dennis Madalone como o marauder

Balde do Odo

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Edição de Muryllo Von Grol
Revisão de Nívea Doria

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