É sempre bom ver o lançamento de um novo livro sobre Star Trek no Brasil, sobretudo quando escrito por um autor brasileiro. Por isso, a chegada de Jornada nas Estrelas: Por Dentro da Série Clássica, de Antonio Carlos dos Santos Gomes, deve ser festejada. Focada na Série Clássica, a obra traz uma análise geral da série, além de sinopses, comentários e fotos dos 79 episódios produzidos entre 1966 e 1969, além do piloto original “The Cage”, filmado em 1964. Infelizmente, o livro traz também alguns problemas e ressalvas, muitos deles fruto dos novos tempos que vivemos – mais sobre isso adiante.
Para começar, a apresentação é fenomenal. Em formato de 16x23cm e com capa dura, o acabamento é excelente. A ilustração da primeira capa, bem como o design do livro, leva a assinatura de Will, o designer mais trekker do Brasil (ele é o diagramador e criador do projeto gráfico dos livros da Coleção Trek Brasilis e do fanzine Diário de Bordo, do fã-clube NovaFrota BR, para citar apenas os exemplos correntes de sua contribuição ao cenário nacional de Star Trek).
Usando bom tamanho de fonte e visual arejado em suas páginas, além de bom uso das imagens e de vinhetas gráficas, consiste em leitura agradável e suave. O único senão da apresentação do livro é que o crowdfunding mencionava o papel das páginas internas como couchê, mais adequado para obras com bom uso de imagens, mas a opção acabou sendo o offset (popular “sulfite”), que tira um pouco do brilho. Ainda assim, é de se festejar que uma obra de 318 páginas coloridas (a campanha de arrecadação falava em 384) e capa dura chegue aos fãs a preço acessível (R$ 60, ao menos no crowdfunding). Sabemos que não é fácil.
Um dos destaques da obra é a contribuição do editor, Silvio Alexandre, com boxes explicativos dos títulos originais de cada um dos episódios. “Achei apropriado sugerir ao seu autor, o Antônio Carlos, que inserisse em cada episódio a referência do título. Ele aceitou de pronto e me deixou à vontade para fazer do jeito que eu achasse melhor”, explicou Alexandre. “Quando fui editor das adaptações da Série Clássica, pela Editora Mercuryo (selo Unicórnio Azul), em 1995, fiz uma primeira tentativa de esclarecer essas dúvidas e apaziguar a curiosidade. O tempo passou e agora retomei o projeto que está sendo pulicado (sic) neste livro.”
O CONTEÚDO
Após os tradicionais agradecimentos, o livro conta com um prefácio assinado por Luiz Navarro, presidente da NovaFrota BR, em que ele festeja a amizade com o autor e destaca a importância dele no fandom, além de sugerir que os leitores comprem o livro – uma sugestão meio peculiar para quem já está com o livro comprado e em mãos (meu caso), mas que pode funcionar para os que estejam apenas folheando em algum ponto de venda, ainda indecisos sobre a aquisição.
Em seguida, vem uma apresentação, feita pelo editor Silvio Alexandre, seguida pela introdução do autor – onde começam os problemas, provavelmente gerados pelo uso de ferramentas de IA (Inteligência Artificial) na confecção do texto.
A estrutura dura e sistemática dos capítulos, a começar pela apresentação, numerada quase como texto de livro didático, já dá pistas de seu possível uso. Mas a confirmação vem quando lemos que a “série envolveu consultores científicos que ajudaram a moldar a narrativa, incluindo figuras como o Dr. Michio Kaku, físico teórico e futurista, autor de best-sellers” (pág. 15). Ocorre que Michio Kaku nunca prestou consultoria a qualquer série de Star Trek. Famoso divulgador científico, ele já abordou muitos temas relacionados à franquia em seus vídeos, livros e palestras, mas nunca foi consultor oficial do programa. É um caso típico de “alucinação” de IA, em que a máquina correlaciona elementos de forma imprecisa. Nesse caso, ninguém pegou o erro antes que o livro fosse para a gráfica – um dos problemas da obra é a revisão, que deixou escapar bastante coisa, de erros de digitação aos gramaticais, que se somam aos de informação, como o citado acima.
As evidências de que IA foi usada na confecção do texto seguem pipocando ao longo da obra. Algumas em particular foram especialmente chamativas a este leitor-escritor. O texto da pág. 28 abre com o seguinte: “‘Charlie X’ mostra as sensações e crises que compõem a adolescência. Com grande conteúdo dramático, também busca demonstrar que a tendência à civilização não é inata no ser humano, mas adquirida pelos costumes.”
Agora, veja você que incrível coincidência. O primeiro parágrafo da resenha publicada no Trek Brasilis sobre este episódio começa assim: “‘Charlie X’ mostra com clareza as sensações e crises que compõem a adolescência, graças aos superpoderes de Charles Evans.” E mais adiante, no segundo parágrafo, segue com isto: “O episódio também busca demonstrar que a tendência à civilização não é inata no ser humano, mas adquirida pelos costumes.”
Mais adiante, na página 48 do livro, o texto abre assim: “‘What Are Little Girls Made Of?’ aborda temas relacionados à natureza da identidade humana, a busca pela imortalidade e as questões éticas envolvidas no uso da tecnologia para criar cópias artificiais de seres humanos. E propõe pela primeira vez na série a explorar a dicotomia entre máquinas a seres humanos.”
Já a resenha correspondente do TB começa deste jeito: “‘What Are Little Girls Made Of?’ se propõe pela primeira vez na série a explorar a dicotomia entre máquinas e seres humanos.”
Esses dois exemplos chamaram a minha atenção porque foram duas resenhas que eu mesmo escrevi. Não fiz uma busca sistemática nem mesmo pelas páginas do Trek Brasilis, muito menos por outras que estejam à disposição na internet, mas acho improvável que não haja outras instâncias do tipo ao longo do livro. Por outro lado, também vale ressaltar que não se trata de algo sistemático. Você não encontrará comentários extraídos do Trek Brasilis (ou, suponho eu, de qualquer outro site) em todos textos da obra.
Acredito que as instâncias de plágio detectadas e exemplificadas aqui não sejam intencionais, mas fruto do uso de modelos de linguagem, como ChatGPT e similares, na redação do texto – é um risco que se corre ao lançar mão dessas ferramentas para produzir textos. É uma reflexão e um cuidado que cada autor hoje precisa ter, caso opte por não fazer as coisas “à moda antiga”. Também é um problema que poderia ter sido mitigado, e daria mais credibilidade à lisura da criação, se ao menos o uso de IA estivesse claramente explicitado na obra – o que não é o caso.
Apesar disso, há muito que apreciar. O visual é bonito e os textos em geral são fluidos, ainda que mantenham uma estrutura repetitiva e pouco criativa. Os erros mais chamativos são desprezáveis e toleráveis, e poderiam ter sido corrigidos com uma revisão mais atenta do material.
A obra adota a ordem de exibição original pela rede NBC (hoje a mais consagrada, disponível em streaming e em home video), usando cerca de três páginas para navegar por cada um dos episódios da série, dos quais cerca de 70% consistem na sinopse, quebrada em intertítulos, além de breves comentários. Em alguns momentos, o livro chega a dourar a pílula demais – todos amamos Star Trek e em particular a Série Clássica, onde tudo começou, mas não é obrigatório ser elogioso em “The Alternative Factor”, por exemplo. Um pouco mais de perspectiva e senso crítico, sem repetir tanto lendas do folclore trekker, fariam bem ao texto.
De todo modo, trata-se de uma introdução atraente e razoavelmente completa do seriado original para fãs que estão por agora adentrando a franquia ou que gostariam de ler um pouco mais sobre as reflexões que cada episódio pode trazer aos espectadores.
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