Quando Nana Visitor foi procurada por Ben Robinson, com a oferta de escrever um livro sobre as mulheres de Star Trek, ela não poderia imaginar o que o livro Star Trek: Open a Channel: A Woman’s Trek se tornaria.
Em vez da ideia inicial de ser um livro mais voltado para ilustrações e alguma biografia das personagens femininas de todas as séries, fomos agraciados com um passeio pela história de Star Trek pelos olhos das mulheres que fizeram parte desse universo, seja atuando, dirigindo, escrevendo ou simplesmente assistindo. Tudo isso devido às entrevistas iniciais que surpreenderam a autora com a quantidade e qualidade de informações coletadas. O livro começou a tomar forma quase por conta própria. Mas isso provavelmente aconteceu graças à sensibilidade da Nana de perceber a riqueza do material que ela tinha em mãos e a capacidade dela de perceber que poderia escrever sobre muito mais do que um livro de biografias sobre as mulheres de Star Trek.
Em Star Trek: Open a Channel: A Woman’s Trek, cada uma das séries, começando é claro pela Série Clássica, tem o seu capítulo. Conforme vai avançando nas décadas e falando sobre as séries em ordem cronológica, Nana coloca em perspectiva como era a sociedade naquele momento e o que significava ser mulher. Qual o papel esperado de cada uma de nós, e principalmente como era ser uma mulher trabalhando no showbiz naquele contexto.
E, minha gente, as histórias não são para os fracos de estômago. Após ler esse livro não é possível sair dele sem ter um mínimo de admiração por essas mulheres por tudo o que elas passaram e pelo que ainda passam. A autora conta que até a década de 90 era meio que normatizado as mulheres serem assediadas e compelidas a dormirem com produtores e diretores para conseguirem papéis. Existiam (e de certa forma ainda existem) o que ela chama de caixas, onde as mulheres eram rotuladas conforme a sua beleza (ou falta dela), idade, etnia, cor de cabelo, entre tantos outros. Se a mulher não tivesse o padrão desejado, não tinha chance de conseguir papéis importantes.
Nos primórdios de Star Trek e ainda nos anos 80 de A Nova Geração e até mesmo nos anos 90, o mote era a racionalização de que a vida era assim e que, portanto, as mulheres tinham que aceitar todas as situações pelas quais passavam, porque era o que se esperava delas. Hoje temos movimentos como Me Too que escancararam muitos desses vícios e crimes cometidos contra as mulheres, mas antes elas não poderiam se dar ao luxo de não querer dormir com um produtor para conseguir um papel, ou se constranger a tirar a roupa na frente de um bando de homens. Do contrário suas carreiras não teriam futuro, afinal tinha uma fila de garotas à espera de uma oportunidade e prontas para fazerem o que fosse necessário. Ninguém era insubstituível.
Outra questão levantada é com relação à idade. Conforme o tempo vai passando, as mulheres vão perdendo oportunidades até que não são mais chamadas para nenhum papel. Com 40 anos você já é considerada velha. Coincidência ou não, está em cartaz no cinema o filme chamado A Substância, com Demi Moore, e trata exatamente disso — e além. O filme é um soco no estômago e, apesar do estilo meio terror, especialmente do meio para o final do filme, a escolha do modo de contar a história tem um propósito muito claro de chocar e fazer as pessoas pararem para refletir. Que sociedade é essa que faz com que as mulheres não se amem (tampouco sejam amadas) pelo que elas são, mas tendo que se submeter a dezenas de intervenções estéticas para se parecerem mais jovens, mais bonitas, mais amadas. Assim como o livro da Nana tem que ser lido, esse filme tem que ser visto.
Embora o showbiz, e principalmente o modo como as mulheres são retratadas nas histórias nas séries mais novas, tenha evoluído em relação ao que víamos especialmente nas cinco primeiras séries de Star Trek, a luta das mulheres continua e parece não ter fim. Se por um lado as atrizes mais novas sentem que são menos vezes colocadas em caixas e tampouco são questionadas se são fodíveis o suficiente para merecerem um papel de destaque, por outro ainda temos um evidente racismo. Atrizes negras e de descendência latinas e asiáticas contam a dificuldade em conseguir papéis de destaque durante sua carreira. Até chegarem a Star Trek, pelo menos. Com tantos relatos positivos no livro em relação a isso, fica evidente que as mulheres estão de fato tendo espaço em Star Trek, em papéis de destaque, com suas personagens verdadeiramente sendo desenvolvidas e sem estereótipos. A própria Nana coloca isso de forma muito positiva, indicando que a partir de Discovery ela finalmente não sente que estamos vivendo num mundo masculino — e isso é um progresso.
O livro talvez não tivesse a intenção de ser um livro feminista, mas os relatos nos levam a refletir a respeito. Impossível não se solidarizar com as histórias vividas pela própria autora. Ou então Terry Farrell e Chase Masterson, que por serem colocadas na caixa de “bonitas” acabavam sendo invisíveis para todas as outras coisas. Como saber atuar não era necessário para esse rótulo, as pessoas não conseguiam ver além da moça bonita. Masterson conta que as pessoas se surpreendiam quando descobriam que ela tinha se graduado e que tinha um papel principal em uma peça de Shakespeare no seu currículo. Ou até mesmo Mary Wiseman, contando o ódio de uma parcela dos fãs que foi destilado em relação a Tilly por ela não se encaixar nos padrões que eles achavam que as personagens de Star Trek deveriam seguir. Ela tinha curvas demais, o cabelo longo demais. Claramente essa parcela de fãs não entende nada o que realmente significa IDIC. E é de cortar o coração que as atrizes tenham que passar por isso e que ainda existam pessoas que têm esse tipo de pensamento, e pior, tenham a coragem de divulgar abertamente nas redes.
Mas o livro é muito mais do que isso. Nana examina quase todas as personagens femininas de cada série, inclusive analisando episódios-chave das personagens, que mostraram desenvolvimento para elas, ou até mesmo oportunidades perdidas e abominações, especialmente em se tratando da Série Clássica e A Nova Geração. Essas análises ainda são suportadas pelas visões das próprias atrizes ou até mesmo de produtores e escritores. E essa é uma das grandes surpresas desse livro. As análises sobre as personagens são muito bem-feitas e embasadas — a cereja do bolo.
No capítulo final temos relatos de entrevistas feitas com mulheres, fãs do universo de Star Trek, contando o quanto foram influenciadas de diversas maneiras pelas personagens femininas. Embora eu admire muitas dessas personagens, e até as atrizes, quando comecei a assistir às séries já estava em uma idade que pouco me influenciou diretamente. Mas eu consegui realmente vivenciar o que significam todos esses relatos quando minhas filhas assistiram aos primeiros episódios de Discovery e passaram a brincar fazendo da minha cama a ponte da USS Shenzhou com elas nos papéis de Michael Burnham e da capitão Philippa Georgiou. Na minha infância eu tinha a Mulher-Maravilha como referência, mas meus dois filmes favoritos de todos os tempos, Os Goonies e E.T., têm como personagens principais o Mike e o Elliot, ambos meninos. Ou seja, eu queria fazer parte daquelas histórias, mas não me sentia representada em nenhuma delas. Por isso a representatividade é tão importante, e Star Trek sempre foi capaz, de uma forma ou de outra, de trazer um pouco disso. Hoje em dia é muito mais evidente, com as séries Discovery e Strange New Worlds, mas até mesmo a Série Clássica conseguiu ser pioneira ao colocar Uhura, uma mulher negra, na ponte, ainda que ela não tivesse muitas falas, nem histórias significativas. Mas foi o suficiente para inspirar tantas mulheres a quererem ser muito mais do que a sociedade as permitia.
Infelizmente algumas personagens ficaram de fora, seja porque a Nana não conseguiu entrevistar as atrizes, ou porque foram cortadas pelo editor da versão final devido ao tamanho do livro, como foi o caso da entrevista feita com a atriz de Picard, Michelle Hurd.
A boa notícia é que Nana abriu um perfil no instagram específico para contar alguns relatos que não entraram no livro. Você pode acessar por aqui: Nanaopenchannel. E mais, segundo entrevistas com a autora, ela pretende fazer um documentário a respeito, inclusive com novas entrevistas.
Enquanto isso, eu mais que recomendo a compra e leitura do livro Star Trek: Open a Channel: A Woman’s Trek. Foi uma longa espera, mas valeu cada minuto. É um livro para ler e reler algumas vezes, e principalmente se falar sobre o assunto.
Aqui no Brasil ele só pode ser achado por enquanto em formato digital, podendo ser adquirido através do site da Amazon e somente em inglês.