M’Benga explora o ponto de quebra do espírito humano perante os horrores da guerra
Sinopse
Data estelar: 1875.4
A Enterprise vai ao sistema Prospero para um encontro com a USS Kelcie Mae, a fim de buscar um embaixador da Federação. É Dak’Rah, ex-general klingon que desertou anos atrás. A presença de Rah, conhecido como o “açougueiro de J’Gal” por ter matado seus próprios comandados durante a Guerra Klingon, deixa os tripulantes que tiveram de lutar no conflito contra os klingons desconfortáveis, em particular Ortegas, M’Benga e Chapel. Depois de uma passagem pela ponte, Rah vai até o bar da nave, onde Spock oferece raktajino. Mas o preparado, quente demais, queima a mão do embaixador. Levado à enfermaria, é atendido sem envolver M’Benga, que fica muito perturbado e tem uma crise de transtorno de estresse pós-traumático.
Isso remete a uma lembrança da lua de J’Gal, alguns anos atrás, quando Chapel foi levada à frente de batalha como enfermeira-chefe num acampamento federado. Lá que ela conheceu M’Benga, enquanto ambos serviram sob o comandante Buck Martinez, oficial médico-chefe. Eles tiveram de servir sob as mais desafiadoras circunstâncias, sem equipamento para salvar todos os feridos – alguns dos quais M’Benga preservava em suspensão no acumulador de padrão do teletransporte.
Pike vai à enfermaria para pedir salsinha deltana e consulta M’Benga sobre sua disposição para interagir com Rah, a despeito do passado. Ele e Chapel se dizem dispostos a participar de um jantar a ser oferecido pelo capitão em seus aposentos. A enfermeira diz que eles conseguirão superar isso, o que traz outra lembrança de J’Gal, em que salvaram um soldado em uma cirurgia de peito aberto.
Na porta dos aposentos do capitão, Ortegas hesita em entrar. M’Benga a convence de participar, sugerindo que finjam que a guerra não os incomoda. Mais fácil de falar que de fazer. A falação de Rah sobre diplomacia e paz desgasta os veteranos de guerra. Chapel chega a pedir a Spock que faça o embaixador mudar de assunto. Ela e M’Benga têm mais uma lembrança da guerra. O operado sobreviveu e estava em recuperação, quando M’Benga é abordado por Va’Al Trask, um tenente andoriano de operações secretas. Ele quer ajuda de M’Benga – ou pelo menos o soro inventado por ele para combate –, mas o colega diz que é só um médico agora e recusa.
No jantar, Ortegas se irrita com Rah e sai intempestivamente. Chapel se oferece para ir vê-la, e Pike ordena que M’Benga também vá – mas sua saída é interrompida por Rah, que o pega pelo braço e sugere que façam em algum momento uma sessão de mok’bara, uma arte marcial klingon que, ele descobrira por La’An, M’Benga pratica. O médico diz que checará sua agenda.
Mais lembranças de J’Gal voltam à mente dele, com o alferes operado agora já recuperado, mas totalmente arrasado por estar na guerra. M’Benga faz uma defesa da importância de combater e salvar o lar e o ideal daqueles que eles amam. Trask então chega a passar novas ordens a todo o efetivo para atacar a liderança klingon na lua e tomá-la em definitivo. O alferes operado voltará à frente de batalha. M’Benga quer que ele não vá, mas ele insiste. O médico fica arrasado ao vê-lo partir em uma missão suicida.
De volta à Enterprise, Chapel e Spock conversam a caminho dos aposentos dela. O vulcano está incomodado pelo sofrimento a que ela está submetida. Chapel pede um tempo sozinha.
Mais lembranças da frente de batalha. Os klingons promovem um ataque feroz à base federada. Para usar o teletransporte, eles precisam esvaziar o acumulado de padrão. M’Benga aperta o botão – será para salvar mais vidas. Chapel fica arrasada.
No presente, M’Benga e Rah praticam mok’bara. O duelo é de habilidade e de palavras. Rah quer que M’Benga se junte a ele em uma próxima missão diplomática, como uma mensagem poderosa de paz. O médico não parece disposto. Ele confronta Rah e pergunta se ele de fato matou seus oficiais. Rah diz que matou três deles porque discordava das atrocidades que promoveram – assassinando civis, mulheres e crianças. De algum modo, isso aumenta a fúria de M’Benga, e a sessão quase acaba em um combate real. O médico volta a seus aposentos e ativa o chuveiro sônico ao máximo, enquanto tem mais uma crise de estresse pós-traumático e relembra as últimas horas de J’Gal.
Diante do massacre, inclusive do alferes que antes ele salvara e do tenente Trask, M’Benga decide voltar ao combate, usando seu soro. Deixando um dispositivo de ativação de teletransporte com Chapel, ele pede que não seja trazido de volta antes do necessário – M’Benga irá concluir a missão, custe o que custar.
No presente, Una vai a Pike com uma proposta de mudança de curso, levando a Enterprise mais cedo à Base Estelar 12, para evitar mais atritos pela presença de Rah. Na enfermaria, o klingon visita M’Benga. O médico o confronta acusando-o de dar a ordem para matar qualquer um que não fosse um soldado klingon. Então M’Benga revela que foi ele quem matou os oficiais superiores de Rah enquanto ele fugia – o médico no fim foi o “açougueiro de J’Gal”, e Rah nunca pagou pelo que fez. Ele abre uma caixa e nela há uma d’k tagh klingon – a mesma com quem M’Benga havia atacado os comandantes klingons em J’Gal. Há um confronto, e a adaga acaba no peito de Rah, morto.
Chapel testemunha em favor de M’Benga, dizendo que foi Rah quem começou a briga, o que é corroborado pelas amostras de DNA na faca, que indicam que pertenceu ao “açougueiro de J’Gal”. Pike procura M’Benga, que reforça a versão de que não começou a briga. Mas conta que Rah vivia uma mentira, assassinou crianças e pergunta: se eu tivesse começado a briga, teria sido tão ruim?
Comentários
“Under the Cloak of War” é o mais visceral episódio de guerra já feito em Star Trek. Não é pouca coisa, tendo em vista os vários segmentos espetaculares da franquia que lidaram com o tema sob os mais variados ângulos, sobretudo em Deep Space Nine. Mas aqui temos os nervos completamente expostos, e os personagens não são poupados de expor os limites de sua humanidade – sobretudo Joseph M’Benga, a estrela da história.
Babs Olusanmokum faz mais um trabalho incrível como o médico-tornado-guerreiro-tornado-herói-traumatizado, com a ajuda de um roteiro afiadíssimo, uma direção intensa e uma edição que dá excelente dinâmica à história, com a intercalação entre o presente a bordo da Enterprise e o passado na frente de batalha na lua J’Gal.
A experiência traumatizante já havia sido abordada antes no começo da temporada, em “The Broken Circle”, quando também fomos introduzidos ao “soro do supersoldado” de M’Benga. Aqui, as respostas que ficaram devendo lá dão textura e relevância ao que sabemos do personagem e de seu passado.
Como em alguns dos melhores episódios da franquia, de “A Private Little War” a “In the Pale Moonlight”, não há respostas fáceis para os dilemas dos personagens. M’Benga ganha um antagonista à altura de seu drama na forma do ex-general klingon, agora embaixador, Dak’Rah. É interessante como os dois, de algum modo, se espelham em diversos lances de sua trajetória como adversários – um como o sujeito que aproveitou a fama de “açougueiro de J’Gal” para reconstruir sua imagem como pacifista, e o outro como o que era na verdade o “açougueiro”, mas escondeu esse fato por não poder suportar o que havia feito.
Ambos estão escorados sobre uma mentira, construída “sob o manto da guerra”. E o episódio não faz esforços para escolher lados, deixar claro quem tem razão ou criar um aspecto de vilania indiscutível para um lado ou para outro. Não há dúvida que no passado Dak’Rah foi um criminoso de guerra brutal. Não está claro, contudo, que ele não esteja reformado. Em muitos momentos seu desejo pela paz parece ser sincero e, embora haja um senso de oportunismo em sua defecção e conversão em defensor da paz, aparentemente ele fez muito bem ao processo de pacificação após a guerra.
Já M’Benga esteve totalmente justificado em agir como agiu no passado, durante o conflito, inclusive atacando os comandantes klingons sob as ordens de Dak’Rah. Mas isso não torna automaticamente correta sua decisão de assassinar o agora embaixador – e foi exatamente isso o que ele fez, embora haja alguma dubiedade até mesmo na construção da cena, que vemos apenas através de um vidro fosco, sem perceber nada além de vultos em uma altercação. Ou torna? Justiça pelas próprias mãos pode, em alguma circunstância, ser justiça? Sobretudo em situações extremas como esta? O episódio faz bem em não fugir dessas questões e também de não respondê-las – cada espectador fará seu próprio juízo.
E há muita coragem – e virtude, por parte dos produtores – em apresentar a tripulação da Enterprise com toda a sua humanidade, inclusive naquilo que há de mais deplorável. Convenhamos: não é possível olhar para M’Benga com os mesmos olhos após este episódio.
No fim, trata-se de uma exploração poderosa do que a guerra faz com as pessoas – ela quebra suas almas. Para além do transtorno de estresse pós-traumático, quadro psiquiátrico que vem sendo cada vez mais conhecido por conta dos traumas trazidos por ex-combatentes, o segmento mostra a dificuldade que é conviver consigo mesmo depois que a guerra transformou aqueles que tomaram parte nela.
As metáforas abundam no episódio. A luta de mok’bara entre M’Benga e Dak’Rah faz o espelhamento dos dois, e o médico ao fim menciona a biocama quebrada na enfermaria, indicando que ela está agora funcionando, mas inevitavelmente voltará a pifar, porque há certas coisas que não se pode consertar, mas meramente gerenciar – ele está falando de si mesmo e da chaga incurável que os horrores da guerra criaram nele.
O segmento também enriquece nosso conhecimento sobre Christine Chapel, quando descobrimos que ela conheceu M’Benga em J’Gal e vemos o início do relacionamento de amizade e camaradagem entre os dois. Na função de coadjuvante, Jess Bush mais uma vez faz um bom papel, como também faz Melissa Navia, retratando os traumas de guerra de Ortegas por um outro ângulo. Infelizmente para a pilota, temos menos do que ela merece em termos de atenção. Mas a opção por não trazer alguma história de guerra especificamente dela decerto ajudou a manter o segmento mais focado (e o orçamento sob controle).
Mais uma vez vemos Strange New Worlds se beneficiar muito do AR Wall para criar um episódio mais econômico. São cenas na nave e em J’Gal, onde tudo se passa em um cenário efetivo, mas claramente limitado, contornado pelo muro de painéis de LED que gera o fundo virtual. Funciona bem e revela a forma como episódios mais contidos de Star Trek podem ser produzidos a contento no século 21, sem ter de quebrar a banca com cenários detalhados ou locações. Ajuda também o ritmo da trama, conduzida com maestria pelo diretor Jeff W. Byrd, que não deixa o espectador se cansar pelas limitações da produção. Pelo contrário, é um segmento que rouba o fôlego da audiência por conta de sua tensão cortante o tempo todo. Não há instante em que se possa recostar na cadeira e relaxar. A sensação é de tragédia iminente – que se confirma ao final.
O ator convidado Robert Wisdom faz um excelente papel como Dak’Rah, como uma espécie de esfinge – um verniz de civilidade e pacifismo que por vezes apenas em um instante parece entregar uma fúria interior (como quando ele recebe o copo fervente de raktajino, ou durante o mok’bara) antes de voltar à atitude habitual. E que delícia ver Clint Howard mais uma vez na franquia! Ele faz ótima figura aqui como o comandante Buck Martinez, oficial médico-chefe do destacamento em J’Gal.
Por falar na Guerra Klingon, interessante mais uma vez a mescla entre referenciar os eventos de Discovery e trilhar caminho próprio em Strange New Worlds: o segmento usa na recapitulação cenas de “Battle at the Binary Stars”, segundo episódio da primeira temporada de Discovery, e menciona o lema de guerra de T’Kuvma, mas retrata naves federadas e o visual klingon à moda própria de Strange New Worlds – eis aí ao menos alguns klingons que, durante a guerra, não cortaram os cabelos!
Com mais um episódio focando largamente M’Benga e, em certa medida, Chapel e Ortegas, restaram apenas pontas para os demais tripulantes da Enterprise – inclusive Pike, que, além de representar aqui os mais puros ideais da Federação, tem pouco a fazer. Esta sem dúvida foi uma temporada muito mais leve para Anson Mount que a primeira, o que acaba prejudicando seu protagonismo na série. Isso, contudo, não afeta a qualidade deste episódio em si, que por sua ousadia, dramaticidade e execução pode facilmente figurar entre os melhores de Strange New Worlds.
Avaliação
Citações
“War, it doesn’t leave you. It can bury itself, but it’s always there.”
(A guerra, ela não te deixa. Você pode enterrá-la, mas está sempre lá.)
Christine Chapel
“Some things break in a way that can never be repaired. Only managed.”
(Algumas coisas quebram de um jeito que nunca pode ser consertado. Apenas gerenciado.)
Joseph M’Benga
Trivia
- Este episódio foi filmado em maio de 2022.
- O roteirista Davy Perez está com a série desde a primeira temporada e este é seu quarto episódio, depois de trabalhar em “Memento Mori”, “All Those Who Wander” e “Among the Lotus Eaters”. Sem muita cerimônia, ele inseriu seu próprio nome no cânone, ao mencionar neste episódio os “Acordos Perez”.
- O diretor Jeff W. Byrd faz sua estreia em Strange New Worlds, depois de ter dirigido “Rosetta”, da quarta temporada de Discovery.
- Byrd revelou que filmou três ou quatro versões da luta final, inclusive uma em que se podia ver a luta toda e M’Benga matando Dak’Rah. Foi uma opção dos produtores escolher a versão ocultada pelo vidro fosco.
- O título do episódio vem de uma declaração do físico Albert Einstein (1879-1955): “É minha convicção que matar sob o manto da guerra é nada mais que um ato de assassinato.”
- Clint Howard faz aqui seu quinto papel em Star Trek, depois de ter vivido Balok em “The Corbomite Maneuver”, da Série Clássica; Grady em “Past Tense, Part II”, de Deep Space Nine; Muk em “Acquisition”, de Enterprise, e um órion em “Will You Take My Hand?”, de Discovery. Ele é o ator com maior intervalo de tempo em atividade na franquia – 56 anos, entre a filmagem de seu primeiro episódio, em junho de 1966, e seu quinto, em maio de 2022.
- A Base Estelar 12, destino da Enterprise neste episódio, fica próxima à Zona Neutra Romulana e foi mencionada diversas vezes em Star Trek, a começar por “Space Seed”, da Série Clássica.
- A USS Kelcie Mae é uma nova classe de nave estelar, com a incomum configuração de uma nacele. Outras naves com esse estilo são a USS Kelvin, de Star Trek (2009) e a USS Archer, vista no piloto “Strange New Worlds”.
- A primeira e a segunda temporadas de Discovery revelaram que os klingons raspavam seus cabelos na época do conflito com a Federação, mas aqui, nas cenas de flashback, vemos klingons com cabelos, ao estilo estabelecido em Strange New Worlds.
- A segunda temporada de Discovery estabeleceu que Pike e a (maior parte da) tripulação da Enterprise ficaram de fora da Guerra Klingon. Um romance (não canônico) publicado em 2019, The Enterprise War, abarcou o que a nave esteve fazendo no período.
- O bar da Enterprise tem sintetizadores de alimentos e bebidas que lembram os replicadores de A Nova Geração, embora façam o mesmo barulho que faziam os sintetizadores da Série Clássica.
- Este episódio marca o primeiro uso do apito naval e a primeira aparição do café klingon, raktajino, na série.
- O alferes que M’Benga e Chapel salvam em J’Gal era morador da cidade de New Angeles, na Lua, que abriga estaleiros de naves estelares.
- O ataque gorn a Finibus III, mencionado aqui por M’Benga ao falar da biocama quebrada, foi retratado em “Memento Mori”, da primeira temporada.
Ficha Técnica
Escrito por Davy Perez
Dirigido por Jeff W. Byrd
Exibido em 27 de julho de 2023
Título em português: “Sob o Manto da Guerra”
Elenco
Anson Mount como Christopher Pike
Ethan Peck como Spock
Jess Bush como Christine Chapel
Christina Chong como La’An Noonien-Singh
Celia Rose Gooding como Nyota Uhura
Melissa Navia como Erica Ortegas
Babs Olusanmokun como Joseph M’Benga
Rebecca Romijn como Una Chin-Riley
Elenco convidado
Robert Wisdom como Dak’Rah
Clint Howard como Buck Martinez
Saida Ali como Jix
Ryan Allen como Polk
Carolyne Das como piloto líder
Rong Fu como Jenna Mitchell
Kyle Gatehouse como Va’Al Trask
Jose Gutierrez-Solana como Alvarado
Brendan Jeffers como Inman
Alex Kapp como computador da Enterprise
Vanessa Smythe como Harper
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Edição de Maria Lucia Rácz
Revisão de Susana Alexandria