Pike pondera o valor do passado em recriação sci-fi de saga homérica
Sinopse
Data estelar: 1630.1
A USS Enterprise apoia a USS Cayuga no estudo de um sistema estelar binário, e Pike se reencontra com Batel. Ela o presenteia com um medalhão, e o encontro é interrompido por um contato da Frota Estelar – Batel perdeu uma promoção como punição por seu desempenho no julgamento de Una. Para compor o drama, Pike sugere que eles deveriam se afastar um pouco.
Em seguida, a Enterprise recebe uma mensagem do Comando da Frota Estelar, sobre Rigel VII – o que remete a uma missão da Enterprise lá cinco anos atrás, pouco antes da fatídica visita a Talos IV, em 2254. Pike relembra que três tripulantes foram perdidos lá. E agora imagens de longo alcance revelam que há um gramado com o símbolo da Frota Estelar – evidência de contaminação cultural.
Pike vai liderar um grupo de descida disfarçado que irá ao planeta via nave auxiliar, composto por M’Benga e La’An, com o objetivo de reparar a situação. Ortegas, originalmente escalada para ir, acaba sendo retida em razão das demandas da Enterprise ao navegar por um cinturão de detritos no sistema em órbita do planeta. Logo que chegam ao planeta, La’An sente desorientação e um zumbido no ouvido. Mas não o suficiente para interromper a missão.
Nas imediações do palácio onde havia sido visto o delta da Frota, eles são interceptados por guerreiros kalars – equipados com rifles feiser federados – e detidos. Eles dizem saber que os visitantes são da Frota. Levados ao palácio, eles descobrem quem é o líder: Zac Nguyen, ordenança de Pike presumido morto na missão, que na verdade sobreviveu. Ele agora é o alto lorde Zacarias, que adotou o símbolo da Frota como seu.
Zac diz que aquele não é um planeta comum, que a radiação faz com que zumbidos, desorientação, tempo perdido, medo e, por fim, perda de memória afetem quem mora lá. Enquanto Pike e M’Benga também começam a experimentar os sintomas, eles são levados para uma jaula do lado de fora do palácio. Quando voltam aos sentidos, esqueceram quem são.
Na Enterprise, Uhura começa a ouvir zumbidos e tempo perdido. Ela é levada por Ortegas para a enfermaria, onde Chapel a examina. Ninguém sabe o que é. E logo outros tripulantes começam a manifestar os mesmos sintomas.
De volta a Rigel VII, Pike e os demais são tirados da jaula por um ancião, que também não lembra quem é, mas se oferece para ajudá-los e colocá-los para trabalhar nas pedreiras e cortando lenha. O ancião diz que o trabalho dá propósito a eles, ainda que seja em benefício de seus captores kalars. Pike tem um sentimento de que precisa voltar de onde veio. Ele e La’An enfrentam os dois soldados kalars, mas ela acaba seriamente ferida no abdômen. M’Benga sente que pode tratá-la e faz um curativo. Os três fogem, guiados pelo ancião.
Na Enterprise, a tripulação continua a ser afetada. Até mesmo a iliriana Una parece não ter imunidade. Spock ordena que todos andem com PADDs indicando quem eles são. Mas, com a contínua perda de competência dos tripulantes, eles logo não poderão mais controlar a nave. Spock ordena que Ortegas se encaminhe para o campo de detritos, onde talvez fiquem mais protegidos do que quer que os esteja afetando.
O ancião, Luq (que sabe seu nome por tê-lo tatuado no braço), leva Pike, La’An e M’Benga para sua casa, mas está claro que ela não sobreviverá sem atendimento mais qualificado. O senhor mostra o tótem que conta a história de seu povo, que há dois tipos de kalars, os que se lembram e planejam o futuro, e os que se esquecem e vivem no presente. Pike conclui que precisam ir ao palácio para descobrir como recuperar suas memórias, a fim de salvar La’An. O ancião concorda em ajudar. O quarteto tem dificuldade para andar de volta ao palácio, com La’An ferida. Enquanto Luq fica com ela no lado de fora, Pike e M’Benga entram.
Na Enterprise, Ortegas esquece quem é e o que faz. O mesmo ocorre com Spock, enquanto a nave enfrenta uma emergência em meio ao campo de detritos. Ela sai da ponte e, aos trancos e barrancos, em meio a uma tripulação desmemoriada, chega a seus aposentos. Enquanto a Enterprise é bombardeada por detritos espaciais, ela conversa com o computador da nave e redescobre que é Erica Ortegas e pilota a nave. Recobrando a coragem, ela volta à ponte determinada a tentar navegar a Enterprise para longe do campo de detritos. Usando seus instintos, ela tem sucesso.
Em Rigel VII, Pike e M’Benga enfrentam os kalars. O médico é ferido, e Pike prossegue sozinho. O capitão confronta Zac, em busca do segredo que permite que ele retenha suas memórias. O ordenança revela que um asteroide bateu com o planeta há milhares de anos e que o palácio foi feito de um material que protege quem o habita dos efeitos da radiação emanados da rocha espacial. Pike está prestes a matar Zac quando sua memória volta. La’An é tratada por M’Benga e o ordenança, bem como o material deixado pela Frota Estelar, são levados do planeta. Luq também recupera as memórias e está agradecido por relembrar sua família.
De volta à Enterprise, Spock desenvolve um harmônico dos escudos que protege contra a radiação, e Pike, a despeito da Primeira Diretriz, decide ordenar a extração do asteroide que moldou aquela cultura em torno do esquecimento. Com a missão concluída, o capitão se reencontra com Batel e pede perdão. Os dois reatam a relação.
Comentários
“Among the Lotus Eaters” é essencialmente a adaptação de uma saga da mitologia grega para o universo de Star Trek, recheada com boas cenas para o capitão Pike e um tema provocante – a importância das memórias como “bagagem essencial” de quem somos.
A história remete diretamente à Odisseia, de Homero, que versa sobre o encontro de Odisseu (Ulisses, na versão latina) com a ilha dos lotófagos, habitada por gente que comia flores e frutos da planta de lótus. Com efeito narcótico, ela dava um sono pacífico aos residentes.
Um trio de tripulantes parte para investigar o interior da ilha e começa a fazer como os nativos, comer lótus, o que faz com que tenham amnésia e se esqueçam de abandoná-la. Odisseu é obrigado a arrastar seus homens de volta ao navio e amarrá-los aos assentos para que não retornassem à ilha.
Não é difícil enxergar a clara transposição dessa lenda mitológica para o episódio. Com o valor adicional para os fãs de longa data de Star Trek de revestir a trama de ficção científica convincente e explorar um dos primeiros mundos a figurar na saga: Rigel VII, afinal, é mencionado em “The Cage”, o primeiro piloto da Série Clássica, que encontra o capitão Pike e sua tripulação logo após a missão malfadada que serve de pano de fundo para a trama atual.
Em “The Cage”, Pike expõe remorso e angústia por conta do que acontecera em Rigel VII, e aqui retomamos a história de onde ela parou, com o mesmo sentimento e um desdobramento a mais: aparentemente, além de trágica, a missão produziu contaminação cultural no planeta. É uma chance de o capitão ajustar as coisas.
A ideia de que seu ordenança, Zac Nguyen (nome que descobrimos só aqui), na verdade sobreviveu e passou cinco anos abandonado no planeta é um bom trampolim para a história, tendo ecos em outros oficiais da Federação que, presos a uma civilização menos avançada, acabam usando seus conhecimentos para atingir uma posição de poder (violando obviamente a Primeira Diretriz). Na Série Clássica, vimos dois casos assim: Merik, em “Bread and Circuses”, e Ronald Tracey, em “The Omega Glory”.
Também é muito interessante aprendermos mais sobre Rigel VII e a sociedade dos kalars, mencionados apenas sumariamente em “The Cage” como parte de uma fantasia criada pelos talosianos. O céu roxo visto na pintura do episódio clássico está de volta, bem como algumas abóbadas douradas do palácio (embora a arquitetura em geral aqui pareça bem diferente).
A recriação do ambiente alienígena faz bom uso do AR Wall, se bem que a ilusão não chega a ser perfeita. Por vezes temos a sensação de claustrofobia de um cenário apertado, ainda que a vista possa enxergar até o horizonte. A situação peculiar também foi vista em “All Those Who Wander”, da temporada anterior, e impede que a imersão seja total.
O que carrega o segmento, contudo, são as atuações. Anson Mount volta ao protagonismo da série após três episódios em que sua atuação se resumiu a uma ponta e faz um bom trabalho, retratando a angústia de um desmemoriado Pike, que no entanto ainda está preso a sua vida pregressa por pura determinação. Particularmente memorável é o confronto dele com Zac, numa tentativa desesperada de salvar La’An e recuperar suas lembranças.
Fazendo contraponto a Pike, temos o ator Reed Birney realizando um bom trabalho como o ancião Luq, personagem que já desistiu de recobrar suas memórias e chega até a ter medo delas, preferindo “viver no momento” e não pensar sobre seu passado.
Os diálogos entre os dois são interessantes. E os outros dois membros do grupo avançado, La’An e M’Benga, agregam à trama, embora apenas na condição clara de coadjuvantes. Quem a impulsiona é Pike, tendo de lidar com o “enlouquecido” Zac.
O arco que aborda o relacionamento entre Pike e Batel ajuda a ancorar o capitão em sua vida pregressa e evoca sua dificuldade em deixar o relacionamento ganhar contornos mais sérios – o que parece ser uma condição natural para Pike, dados não só sua situação como capitão de nave estelar, mas sobretudo seu conhecimento sobre o futuro. Em certo sentido, esquecer o passado (bem como o futuro) poderia ser uma bênção para Pike, mas o episódio caminha no sentido de mostrar que uma vida sem lembranças é também uma vida sem propósito.
Em um traçado paralelo, temos a tripulação da Enterprise enfrentando os mesmos problemas de memória, e aqui surge a oportunidade de um arco para Erica Ortegas, a piloto. A personagem foi subutilizada na primeira temporada e aqui tem uma chance de viver algo que seja especificamente sobre ela.
Ainda é muito pouco. O material é tratado de forma competente por Melissa Navia e ajuda a reforçar a personalidade de Ortegas, mostrando seu espírito determinado (que é típico dos melhores capitães, vale dizer) e suas convicções, a despeito dos medos que possam assombrá-la. Mas a história em si pouco remete ao passado dela, o que até contrasta com o tema geral da trama. O arco se resume a sair de “Ortegas está entediada com seu trabalho e não vê a hora de ter uma missão avançada, para fazer algo diferente” e terminar em “Ortegas reconhece que, apesar de fazer o mesmo trabalho o tempo todo, não é por isso que ele não é bom e especial”. Acaba sendo meio pedestre.
Para os demais personagens, o máximo que há é a coadjuvância. Spock em particular tem um papel um pouquinho maior, por tentar proteger a Enterprise enviando-a para o campo de detritos (o que acaba sendo um brutal erro de julgamento), e em suas interações com Ortegas (tanto em seu estado normal como desmemoriado). Ethan Peck faz seu usual bom trabalho com isso. Mas para Una, Uhura e Chapel, restam apenas aparições rápidas e mecânicas, para avançar a trama adiante sem necessariamente tocar seus personagens de forma específica.
A direção de Eduardo Sánchez ajuda a criar o clima, com a ajuda dos efeitos sonoros (em particular o desconfortável zumbido no ouvido) e de boas escolhas com enquadramentos e foco, para criar a sensação de desorientação e falta de memória. Tudo acaba trabalhando em conjunto para produzir a ilusão de que estamos mesmo diante de um “estranho novo mundo” (ênfase em “estranho”), como promete o título da série.
A resolução da trama é satisfatória: a ideia da radiação vinda dos detritos bagunçando o cérebro é convincente, e a decisão de Pike de retirar o pedregulho espacial do planeta a fim de restaurar seu curso de desenvolvimento natural orna com interpretações que vimos Kirk fazer na Série Clássica com relação à Primeira Diretriz.
De forma geral, temos aqui um episódio que cumpre de forma muito efetiva dois dos objetivos de Strange New Worlds: evocar o espírito de meados do século 23 e manter uma relação umbilical com elementos do seriado clássico. Ainda assim, fica a sensação de que faltou um algo a mais, um ápice dramático, para tornar essa aventura 100% efetiva, deixando-nos com um bom, mas não excepcional, segmento desta segunda temporada.
Avaliação
Citações
“Zac, please. Listen to reason”
(Zac, por favor. Ouça a razão.)
“Reason doesn’t exist here.”
(A razão não existe aqui.)
Christopher Pike e Zac Nguyen
Trivia
- Este episódio foi filmado em março de 2022. A superfície de Rigel VII foi criada em estúdio, com a ajuda do AR Wall. Já o interior do palácio foi filmado em locação, no Mount Community Centre, uma catedral em Peterborough, Ontario, redecorada pela produção para esse propósito.
- A produção se inspirou na pintura clássica de Albert Whitlock para o castelo de Rigel VII visto em “The Cage”, mas decidiu expandi-lo, com torres enormes, para se beneficiar de uma visão panorâmica distante mais impressionante. Alguns detalhes da arquitetura, contudo, são claramente inspirados pela visão original de Whitlock.
- O diretor americano Eduardo Sánchez é nascido em Cuba e ficou famoso como um dos escritores, diretores e editores do filme cult de terror A Bruxa de Blair (1999). Seus talentos com o gênero são bem usados aqui para criar a sensação de desorientação dos personagens.
- A roteirista Kirsten Beyer, coautora deste episódio com Davy Perez, se juntou à equipe de Strange New Worlds apenas nesta segunda temporada. Notabilizada em Star Trek escrevendo romances de Voyager, ela tem sido uma grande referência da franquia na arena televisiva desde Discovery, para a qual escreveu vários episódios até o terceiro ano, além de ter escrito um dos Short Treks e ser cocriadora de Picard. Conhecedora profunda do cânone, Beyer também escreveu muitos dos quadrinhos associados a essas séries. Já seu colega Perez foi responsável por dois episódios na primeira temporada, “Memento Mori” e “All Those Who Wander”.
- Anson Mount apreciou a premissa deste episódio. Em entrevista ao Trek Brasilis, ele disse: “Foi uma grande ideia. Não apenas isso. É outra conexão ao Pike clássico. E não é só fan service, mas a ideia de que… no cânone, é sabido que a Enterprise perdeu três pessoas naquela batalha que aconteceu em Rigel VII. E a ideia ‘e se uma delas sobreviveu e ficou furiosa durante todo esse tempo por ter sido deixada para trás?’ era uma ideia tão boa, uma grande mexida no cânone… e funciona particularmente bem para aquele episódio. Porque é um episódio sobre memória, certo? Ou a falta dela… e tudo isso meio que entrou junto.”
- Em “The Cage”, primeiro piloto da Série Clássica, Spock aparece mancando. Aqui, Pike confirma que ele foi mesmo ferido na missão a Rigel VII.
- Aprendemos mais sobre a sociedade kalar, de Rigel VII, que tem padrão tecnológico similar ao da Idade do Bronze e é organizada em duas castas, a dos guerreiros e a de líderes reclusos.
- Os tripulantes perdidos aparecem em suas fotos de identificação com os mesmos uniformes de Strange New Worlds, a despeito de em “The Cage” os trajes usados pela tripulação serem outros. Além de Zac, os outros dois são identificados como C. Plummer e M. Aberth.
- O vinho que Pike serve a Batel é um Chateau Picard (safra de 2221).
- O medalhão que Batel dá a Pike, segundo ela, foi encontrado na colônia agrária de Gault, onde, no século 24, Worf seria criado depois de seus pais adotivos o resgatarem do ataque romulano a Khitomer.
- A ficha de Ortegas indica que ela nasceu em Barranquilla, Colômbia, em 20 de maio de 2233. Seus aposentos, por sua vez, ficam no deck 6, seção G, quarto 629. Entre os itens de decoração, há um modelo da Enterprise e de uma nave da classe Walker (como a USS Shenzhou).
- Uma versão alternativa (não canônica) da missão original da Enterprise a Rigel VII foi retratada na terceira edição da série de quadrinhos Star Trek: Early Voyages, de 1997.
Ficha Técnica
Escrito por Kirsten Beyer & Davy Perez
Dirigido por Eduardo Sánchez
Exibido em 6 de julho de 2023
Título em português: “Entre Os Comedores De Lótus”
Elenco
Anson Mount como Christopher Pike
Ethan Peck como Spock
Jess Bush como Christine Chapel
Christina Chong como La’An Noonien-Singh
Celia Rose Gooding como Nyota Uhura
Melissa Navia como Erica Ortegas
Babs Olusanmokun como Joseph M’Benga
Rebecca Romijn como Una Chin-Riley
Elenco convidado
Reed Birney como Luq
David Huynh como Zac Nguyen
Melanie Scrofano como Batel
Trevor Coll como tripulante com medo
Tarek Gader como tripulante sem camisa
Alex Kapp como computador da Enterprise
Noah Lamanna como Jay
Emeka Menakaya como Tiko
Simon Northwood como Rak
TB ao Vivo
Enquete
Edição de Maria Lucia Rácz
Revisão de Susana Alexandria