Não foi a série animada que precisávamos, mas foi a série animada que merecíamos
Sinopse
Data: 3002
Iniciamos com o que soa como um diário de bordo de James Kirk, apenas para acabar encontrando a cabeça de William Shatner prestando uma declaração em uma corte-marcial sendo realizada a bordo da nave da Planet Express, com Zapp Brannigan presidindo. A frente de Zapp e demais presentes, Philip Fry é trazido em uma cadeira de rodas igual a do Pike, onde apenas com bipes ele tem que se defender da acusação de terem viajado ao planeta proibido Omega 3.
Em flashback, encontramos a tripulação da Planet Express em uma locadora (de fitas VHS, nada menos), onde Fry faz a inocente sugestão de alugarem os primeiros seis filmes de Star Trek, o que deixa todos ali em pânico, sem Fry entender porque insistiam para ele ficar quieto enquanto eles saem de lá antes da polícia chegar. No tribunal, George Takei e Nichelle Nichols explicam a razão — por volta do século 23, o fandom de Star Trek se transformou em uma de facto religião de fanáticos, com esta influência se tornando nociva e perigosa, o que fez líderes mundiais executarem seus fiéis e banirem Star Trek, enviando as últimas cópias da Série Clássica e dos seis primeiros filmes para o planeta Omega 3.
Na vez de Bender dar seu depoimento, Fry apenas levanta da cadeira e dá lugar ao robô, o qual tem que dar o depoimento por beeps por insistência de Zap. O flashback continua mostrando que Fry foi até o Museu de Cabeças falar com Leonard Nimoy, que muito relutantemente tem que admitir que lamenta que seus colegas de elenco deixaram a Terra 300 anos atrás, na esteira da série ter sido banida, e ele ter optado por ficar. Fry pega Nimoy e decide irem encontrar o acervo banido de Star Trek, tendo que convencer Leela e Bender a irem junto.
Chegando em Omega 3, a Planet Express faz um pouso forçado, e depois de algum tempo o grupo encontra indícios da série, como vários dos sets originais. Do set do Guardião da Eternidade, com corpos e vestidos nos uniformes, saem William Shatner, Nichelle Nichols, George Takei, Walter Koenig, DeForest Kelley e Welshy — um gordinho redshirt que Nichelle explica que tiveram que substituir James Doohan no século 22 em suas reuniões para musicais. Shatner explica que a nave deles foi atraída para o planeta, e eles tem vivido ali desde então, apesar deles não terem noção de como estão imortais e com corpos novamente.
Leela continua o testemunho a partir do ponto em que a entidade que controla o local faz sua revelação: Melllvar, uma nuvenzinha gasosa que, para provar seu poder para Bender, imediatamente manda um 220 em Welshy, fazendo este valer sua camisa vermelha, e também fazendo com que Nimoy ganhe de volta seu corpo e uniforme. Melllvar explica que séculos antes, o arquivo banido de Star Trek caiu no seu planeta e ele as assistiu incessantemente, se tornando Melllvar, O Protetor das Fitas, O Conhecedor dos Episódios, Aquele com Conhecimento Enciclopédico de Star Trek, ainda que Fry desdenhe afirmando que ninguém sabe mais do que ele.
Melllvar capturou o elenco anos antes, e agora que conseguiu o intérprete de Spock, ele finalmente tem o conjunto de colecionáveis completo para poder fazer o que sempre planejou: a Trekfest 3002, uma Convenção de Star Trek pela eternidade, para felicidade de Fry e horror dos demais. Melllvar inicia as atividades, como assinatura de autógrafos, fotos com a tripulação, sessão do Shatner cantando, e concurso de trivias. Vendo que estava perdendo para Fry, Melllvar interrompe o concurso e decide que a tripulação original vai fazer uma atuação da fanfiction que ele escreveu.
Alegando quererem esperar na nave para não terem spoilers, Leela e Bender arrastam Fry para longe e partem do planeta. Inconformado, Fry consegue fazer Leela cozinhar um plano para voltarem e resgarem o elenco de terem que ficar com Melllvar, que continua no ensaio de seu “episódio” com os atores, que mal conseguem disfarçar o desdenho devido ao roteiro mal escrito.
Bender faz o tecnobable que Leela sugeriu em um dos tubos jeffries da Planet Express, e eles disparam feisers em Melllvar, mas a entidade arrasta a nave de volta ao planeta. Para decidir qual dos grupos merece a devoção fanática dele, Melllvar decide fazer com que as tripulações lutem uma contra as outras em combate até a morte. As tripulações se espalham pelos sets no local (que é claro tem grande semelhança com os Rochedos Vasquez) e se preparam para a luta. Depois de muita especulação, Nichelle distrai Fry e Bender com a dança dos abanadores dela, e são emboscados pelo grupo, enquanto Leela tem que lutar contra Shatner.
Contudo, a luta é interrompida pela aparição de outra entidade gasosa (usando óculos dos anos 50) — a mãe de Melllvar, que o chama para jantar. Eles todos consideram esta a chance de escaparem, e vão encontrar Leela e Shatner já se amassando, depois que Shatner usou de sua retórica na ciclope. Eles cozinham um plano onde combinam os motores de dobra e naceles da nave do elenco com a Planet Express, e conseguem escaparem, apesar de terem que deixar os corpos para trás devido ao peso, voltando a estarem em jarros.
Melllvar descamufla uma nave atrás deles e inicia uma perseguição, com a Nimbus os interceptando. Neste ponto o flashback alcança a corte-marcial, com Leela lembrando a Zapp que Melllvar ainda está os engajando. Fry acaba conseguindo convencer Melllvar com retórica a interromper a perseguição e os deixar livres, com a tripulação finalizando com uma cena de tag onde refletem que viver no paraíso não valeria a pena se isto tivesse que fazer eles terem que tolerar um irritante fã pela eternidade.
Comentários
Considerado uma das melhores paródias/homenagens a Star Trek, “Where No Fan Has Gone Before” é um ótimo episódio que integra muito bem as premissas sci-fi de Futurama com uma admiravelmente bem-elaborada trama que inclui organicamente o elenco da Série Original no contexto do futuro retratado por Futurama.
Escrito por David Goodman (que posteriormente trabalhou também na produção de Enterprise), fica absolutamente nítido o cuidado do texto em referenciar as melhores tropes de Star Trek e seu fandom, com um texto rico em ótimas tiradas por essencialmente todos os personagens na tela — até mesmo Zapp, que tem um papel limitado mas várias de suas linhas são ótimas, e a troca de diálogos entre Shatner e Nimoy sobre direção foi nada menos do que magnífica, ainda mais considerando a capacidade do Shatner de rir de si mesmo ali. Certamente algo que ajudou na dinâmica entre eles foi que gravaram suas falas juntos, o que não é necessariamente comum para atuação vocal.
Optar por referenciar apenas e tão somente a Série Clássica foi a melhor escolha, considerando que o foco aqui era o elenco original, e fez com que o episódio fique totalmente atemporal, pois fatalmente chegaria o dia (como chegou) que novas produções após o episódio ir ao ar iriam fazer com que a lista de séries mencionadas ficasse incompleta. A rápida participação especial do Jonathan Frakes foi bem adequada como divertida tirada de chapéu para as demais séries legadas.
Melllvar é a combinação dos vários seres “entidades gasosas” vistos na franquia, mas certamente a sua personalidade combina melhor com aquela entidade vista em “Day of the Dove”, considerando que a equipe criativa quis retratar ali o típico fã obsessivo ao ponto de ser nocivo — o que inclui a faceta de ser um trollador que tira satisfação de gerar conflito entre outras pessoas, tal qual uma interpretação moderna da premissa de “Day of the Dove” é possível nos dias atuais — e mesmo na época da produção do episódio tal interpretação já seria possível, com a popularidade na época das listas de discussões por email, grupos na Usenet e foruns do tipo phpBB.
A divisão de “características de um trekker” entre Fry e Melllvar rendeu uma dinâmica muito divertida e certamente algo que todo fã que assitiu ao segmento pode reconhecer em já ter testemunhado em suas diversas interações no fandom. Leela e Bender estavam bem dentro do bom envelope de atuação de ambos, com a ciclope procurando ser voz da razão compreensível para Fry, e o robô não estando nem aí para nada do que testemunhava, além de ter divertidas interações com Koenig e Takei.
É nítido que eles tiveram o cuidado de modular o episódio para terem apenas o trio regular de Futurama (Fry, Leela e Bender) com a adição ocasional de Zapp (que não poderia faltar em um episódio assim, considerando que ele é uma paródia anabolizada de Kirk) e claro que incluiu uma flertada básica com Nichelle. Afinal de contas, a quantidade de convidados relevantes foi naturalmente alta e um dos focos principais do episódio, e tempo de tela adequado para todos seria necessário.
A escolha sobre “Como proceder em relação a DeForest Kelley”, falecido alguns anos antes da produção do episódio, também foi a melhor possível, eu diria — ele não foi escrito para fora do episódio, como no caso de James Doohan (que se recusou a participar), mas apenas não vimos os momentos em que ele teria tido diálogo.
O que chama a atenção no episódio em relação a animação é que certamente até aquele momento, foi a retratação de personagens de Star Trek em melhor qualidade de animação até ali, uma vez que A Série Animada era a única obra da franquia nesta mídia. Ver a fluidez dos personagens em um traço 2D moderno e fluido, somado a bela direção de arte geral do episódio, que retratou inúmeros elementos da série muito bem, deixava claro que uma versão animada moderna de uma série de Star Trek era algo muito desejável.
Tivemos que esperar quase vinte anos para que isto finalmente se concretizasse, mas quando ocorreu, foi claramente de maneira vencedora, com Lower Decks e Prodigy. Certamente “Where No Fan Has Gone Before” terá sido influência positiva para Star Trek finalmente ter adicionado estas obras a sua mitologia.
No mais, ficamos com um lendário episódio de Futurama que sempre estará no alto de qualquer lista que cite as melhores obras que já fizeram paródias e referências a Star Trek.
Avaliação
Citações
“You know. 1966? 79 episodes, about 30 good ones.”
(Você sabe. 1966? 79 episódios, uns 30 bons.)
Fry, tentando fazer Leonard Nimoy falar a respeito do banimento da série
“I’ve never heard of such a brutal and shocking injustice that I cared so little about. Next witness.”
(Eu nunca ouvi tamanha brutal e chocante injustiça sobre a qual eu não estou nem aí. Próxima testemunha.)
Zapp Brannigan, presidindo sobre a corte-marcial na Planet Express
“You can’t go to Omega 3; it’s forbidden! I forbid you!”
“But we have to! The world needs Star Trek to give people hope for the future.”
“But it’s set 800 years in the past!”
(Você não pode ir para Omega 3; é proibido! Eu proibo você!)
(Mas nós temos que ir! O mundo precisa de Star Trek para dar as pessoas esperança para o futuro.)
(Mas se passa 800 anos no passado!)
Leela e Fry, a ele defender buscarem as fitas banidas
“Melllvar, you have to respect your actors. When I directed Star Trek IV I got a magnificent performance out of Bill because I respected him so much.”
“And when I directed Star Trek V I got a magnificent performance out of me, because I respected me so much!”
(Melllvar, você tem que respeitar seus atores. Quando eu dirigi Star Trek IV eu consegui uma magnífica atuação do Bill pois eu respeitei muito ele.)
(E quando eu dirigi Star Trek V eu consegui uma magnífica atuação minha, pois eu me respeito muito!)
Leonard Nimoy e Willian Shatner, dando dicas para Melllvar saber dirigir um episódio
“All this time we thought he was a powerful super-being, yet he was just a child.”
“He’s not a child, he’s 34!”
(Todo este tempo nós pensávamos que ele era um ser poderoso, quando na realidade ele era apenas uma criança.)
(Ele não é uma criança, ele tem 34 anos!)
Fry e a mãe de Melllvar, sobre o comportamento da nuvem gasosa
Trivia
- Falas de Shatner iniciam e finalizam o episódio: primeiro ao falar “The impossible has happened” como no início de “Where No Man Has Gone Before” e “Let’s get the hell out here” como ao final de “The City on the Edge of Forever”.
- No que Fry retira a cabeça de Leonard Nimoy do museu, a cabeça de Johnatan Frakes vem para a frente da prateleira, dublado por ele próprio.
- Entre os cenários e props encontrados em Omega 3, tem itens de “Bread and Circuses”, “Spectre of the Gun”, “The Gamesters of Triskelion”, “A Piece of the Action”, “The Ultimate Computer”, e “The City on the Edge of Forever”.
- Ao melhor estilo de Futurama, o episódio não tem apenas referências a Star Trek: a nave que dispara o torpedo com as fitas banidas em Omega 3 é a Eagle, da série Space: 1999.
- Melllvar acabar não imprimindo roteiros o bastante e fazendo com que Takei e Koenig tenham que compartilhar é uma referência a dinâmica destes atores durante a segunda temporada da série, com Takei tendo estado afastado por basicamente metade da temporada, o que colaborou para a necessidade da inclusão do personagem do Chekov, o que fez com que tivessem que compartilhar camarim, por exemplo.
Ficha Técnica
Escrito por David A. Goodman
Dirigido por Patty Shinagawa
Exibido em 21 de abril de 2002
Título em português: “Aonde Nenhum Fã Jamais Esteve”
Elenco
Billy West como Philip J. Fry, Zapp Brannigan e Dr. John A. Zoidberg
Katey Sagal como Turanga Leela
John DiMaggio como Bender Bending Rodriguez
Maurice LaMarche como Melllvar e Kif Kroker
Elenco convidado
William Shatner como ele mesmo
Leonard Nimoy como ele mesmo
Nichelle Nichols como ela mesma
Walter Koenig como ele mesmo
George Takei como ele mesmo
Jonathan Frakes como ele mesmo