DS9 2×25: Tribunal

História bem executada mostra sistema de justiça cardassiano em operação

Sinopse

Data estelar: 47944.2.

O’Brien está prestes a partir para duas semanas de licença com Keiko quando encontra, no caminho para o explorador, um conhecido de nome Raymond Boone, dos tempos em que o chefe serviu a bordo da Rutledge. Eles trocam gentilezas e O’Brien parte sem perceber que Boone gravou a sua voz. Algum tempo depois, o explorador de O’Brien e Keiko é interceptado por uma patrulha cardassiana comandada por gul Evek. Sua carga é confiscada e O’Brien é levado preso à capital cardassiana, acusado de um crime que Evek se recusa a dizer qual é. Keiko é devolvida a DS9.

Na capital cardassiana, O’Brien é brutalmente despido e examinado no bureau de investigação. A juíza de seu caso, de nome Makbar, vai até ele e o informa de que seu advogado se chama Kovat, mas se recusa a apresentar a natureza do crime alegadamente cometido pelo chefe. Makbar contata Sisko e informa que está retendo O’Brien para julgamento e novamente se recusa a dar mais detalhes sobre a acusação, porém garante que o julgamento é meramente uma apresentação irrefutável da culpa (previamente estabelecida) do chefe. Diz também que a execução de O’Brien está marcada para a semana seguinte. Makbar permite a ida de Keiko (esposa do réu) e Odo (como conselheiro do réu, pois o comissário é um oficial da corte cardassiana por ter servido gul Dukat em Terok Nor) para o julgamento.

Na estação, descobertas levantam suspeitas sobre O’Brien, que já admitiu diversas vezes publicamente o seu desgosto pelos cardassianos. Duas dúzias de ogivas fotônicas estão faltando e uma identificação vocal de O’Brien é encontrada nos registros de acesso ao depósito. Constitui-se um quadro em que O’Brien poderia estar levando as ogivas no explorador para os ,aquis. Na capital cardassiana, Odo interroga O’Brien sobre o assunto e o chefe nega qualquer envolvimento com o roubo das ogivas ou com os maquis.

Na DS9, Dax demonstra que o registro vocal de O’Brien foi forjado e baseado em amostras da voz do chefe em outro contexto. Kira identifica Boone como tendo encontrado O’Brien no caminho para o explorador e Sisko o traz para interrogatório, suspeitando que ele possa ser membro dos maquis. Boone nega tudo. Quando a investigação parece naufragar, um verdadeiro membro dos maquis contata Bashir e diz que Boone não tem nada a ver com eles. Sisko novamente traz Boone, agora para que Bashir possa fazer um exame médico completo nele.

No julgamento, Evek apresenta as ogivas apreendidas e a tese de que O’Brien iria entregá-las aos maquis, os quais, segundo ele, tornaram a situação na Zona Desmilitarizada completamente insustentável. Makbar não permite que Odo apresente a evidência da manipulação vocal que poderia inocentar o chefe. Posto no banco das testemunhas, O’Brien é pressionado por Kovat e Makbar para confessar o crime, o que ele não faz. Quando Makbar está prestes a declarar a culpa de O’Brien, Sisko entra na sala com Boone. O semblante de Makbar muda completamente e ela diz que, apesar de O’Brien ser culpado, ela irá liberá-lo sob a custódia de Sisko “em prol das futuras relações entre a Federação e Cardássia”.

Na volta para estação no explorador, Sisko explica que o real Boone provavelmente morreu na prisão e foi substituído por um cardassiano modificado cirurgicamente oito anos antes, um espião. A prisão de O’Brien nunca foi algo dirigido em particular ao chefe, mas sim uma estratégia cardassiana para “provar” que os maquis são oficialmente sancionados pela Federação. Quando Sisko chegou com Boone ao julgamento, ficou claro a Makbar que ele tinha as provas para desacreditar o governo cardassiano na frente do planeta inteiro. Finalmente, um aliviado casal O’Brien pôde seguir com sua merecida licença.

Comentários

Ainda que, definitivamente, não no nível dos seis últimos episódios, “Tribunal” emerge como um vencedor por oferecer um bom valor de entretenimento com sua descrição do bizarro sistema judiciário cardassiano e também por ajudar a série a se manter focada tematicamente, tratando do continuado conflito na Zona Desmilitarizada. Porém, mesmo valores de produção de ótimo gosto e algumas excelentes atuações (de Meaney e Auberjonois) não conseguem fazer esquecer um final ridiculamente corrido, com um fechamento extremamente expositivo. Saiba mais detalhes, sem precisar doar um molar para o bureau de identificação cardassiano, nas próximas linhas.

“Tribunal” é uma exposição do sistema judiciário cardasiano, baseado em certas falas (maravilhosas por sinal) de gul Dukat em “The Maquis, Part I“. Daí, quem assistir a este episódio esperando por um veículo focado e intenso sobre O’Brien lidando com seus demônios da época das guerras de fronteira cardassianas vai se decepcionar. Porém, para os espectadores que levarem em conta o que ele é, isto é, mais um capítulo dos continuados conflitos na Zona Desmilitarizada, tendo como pano de fundo o sistema judiciário cardassiano e a história pregressa de O’Brien com eles, pode gostar bastante da experiência.

O sistema de justiça cardassiano é retratado da forma mais simples possível, como uma deturpação das regras dos tribunais da Federação (ou seja, dos tribunais americanos). Isto acaba por reduzir a intensidade do episódio como um todo, abrindo espaço para um certo tom de sátira. Não há maiores problemas com isso.

A coisa mais forte sobre a sociedade cardassiana apresentada é o fato de que os seus julgamentos são essencialmente elaborados shows transmitidos globalmente, de forma a manter o status quo do Estado, um tema recorrente dessa raça. Um cardassiano é o que ele pode fazer pelo Estado, daí não faz muito sentido direitos individuais, daí tal sistema de justiça. Com esses tribunais e com a Ordem Obsidiana (mencionada em “The Wire“), não é à toa que os cardassianos são o povo mais paranoico do quadrante.

A trama do episódio foi do tipo “receita de cozinha”, bem conhecida, mas bem executada. Quanto ao plano dos cardassianos: DS9 (uma estação cardassiana) é o posto comandado pela Frota mais próximo de Cardássia, daí a oportunidade; a atitude anti-cardassiana de O’Brien e os motivos para isto são bem conhecidos e eles tinham o “falso Boone” (e provavelmente outros “falsos alguéns”), um amigo de O’Brien, o que é também bastante razoável, visto o evento importante que os relaciona.

(Não posso evitar de pensar: quantos espiões alterados cirurgicamente a Federação e Cardássia têm de parte a parte?)

O que depõe contra o episódio é a cena final tão corrida e expositiva que beira a arbitrariedade e mesmo faz por merecer um certo sorriso cínico, por ser uma cena com ZERO valor dramático, escrita somente para benefício da audiência. Não necessariamente a pior escrita do mundo, mas, definitivamente, também não a mais sofisticada.

O’Brien, sempre “o homem comum com quem qualquer um pode se identificar”, traz algumas particularidades desta caracterização ao episódio. Ele é claramente a melhor escolha (dentre os regulares da série) para exemplificar o drama de um inocente frente a uma sociedade totalitária e cruel. Nenhum outro personagem do franchise de Jornada consegue dizer algo do tipo “que nunca agiu de forma a perder o respeito de sua filha” e fazer sentido no contexto deste mesmo franchise. Daí vem um grande problema, nunca houve dúvidas da inocência de O’Brien, o que tirou de saída grande parte da possível força do episódio. Com essa escolha, ficou claro para a audiência que algum tipo de manipulação estava em andamento. Foi interessante lembrar Setlik III e o interrogatório de Makbar sobre os preconceitos do chefe frente aos cardassianos foi bem colocado. Mas o episódio fica longe de ser uma bem-acabada obra para o personagem.

Odo foi (surpreendentemente) o grande personagem do episódio e continuou a nos brindar com uma grande presença e uma incapacidade genuína de julgar as pessoas. A forma com que ele sinceramente admite, mesmo diante das reservas dos demais, a Keiko que O’Brien deve estar sendo torturado e, ao mesmo tempo oferec,e uma grande simpatia à esposa do chefe é muito interessante. Outro ponto digno de nota é a forma como ele aborda O’Brien sobre um possível envolvimento dele com os maquis, 100% profissional e, ainda assim, gentil e respeitoso (o “Sim, senhor” que O’Brien oferece a ele ao final da conversa é devido a isso, nada tem a ver com hierarquia). É hilário como Odo consegue emperrar o julgamento mentindo (infinitamente bem) sobre a sua falta de conhecimento sobre o sistema de justiça cardassiano. Digno de nota é, também, o fato de que, apesar de Odo afirmar que nos tempos em que os cardassianos comandavam DS9, esta era mais segura, ele, de forma alguma, estava satisfeito com o sistema de justiça subjacente, ao qual ele servia. Tempos difíceis para o comissário, sem dúvida.

(Na cena em que Odo interroga O’Brien sobre o possível envolvimento do chefe com os maquis, Rene Auberjonois introduz um bocado de subtexto com sua postura. Podemos inferir disto que ele poderia estar se referindo aos acontecimentos de “A Man Alone“, da primeira temporada, em que Odo também é acusado injustamente de um crime que ele não cometeu e (ou) dos acontecimentos de “Things Past“, da quinta temporada, em que descobrimos que, por um erro de Odo, três bajorianos inocentes foram executados.)

Evek foi essencialmente um elemento de trama, não um personagem (ainda que um belo elemento de continuidade). Boone entrou e saiu de forma completamente indefinida do episódio e sua aura de “eu estou sujo” só serviu para entregar ainda mais as suas atividades (aparentemente o roteirista não achou que a cena em que ele mostra a gravação da voz de O’Brien fora suficiente para expressar essa ideia). Keiko foi bem usada a maior parte do tempo, especialmente nas cenas na estação. Makbar esteve razoavelmente bem nas cenas no tribunal (ainda que uma presença mais forte teria ajudado muito mais a vender a opressão do sistema judiciário cardassiano), porém muito fraca nas cenas fora dele. Kovat, ainda que essencialmente um alívio cômico, produziu bom valor de entretenimento e mesmo angariou alguma simpatia.

Dentre os demais regulares, Kira levantou suspeitas de uma forma natural e consistente, porém Bashir pareceu por demais exagerado na defesa do amigo. Sisko e Dax ajudaram a levar a trama, nada mais.

A direção de estreia de Brooks foi excelente, com destaque para a cena em que O’Brien foi “processado”, inúmeros detalhes de closes e diferentes tipos de iluminação mesclam estilo e brutalidade de forma admirável. As pinturas da paisagem da capital cardassiana são maravilhosas e a composição dos grandes visores públicos, e dos espectadores sobre elas, foi de muito bom gosto. O belíssimo cenário minimalista da corte cardassiana, com múltiplos níveis e extremamente bem iluminado e fotografado, também foi um destaque. Pontos também para os penteados e vestuários (até a roupa de Keiko estava ótima).

(A cena na cela entre Odo e O’Brien também é interessante, pois, em parte do diálogo, vemos Odo interagindo com o reflexo de O’Brien. Boa ideia de Brooks.)

Rene Auberjonois deu um verdadeiro show de presença e sensibilidade. É incrível como ele consegue transmitir tanta intensidade com uma simples cruzada de braços. Bravo! Colm Meaney, como sempre, foi perfeito em fazer um homem comum que age e reage como tal (ao contrário do que alguns possam pensar, nada fácil para um ator). Os demais regulares fizeram o “feijão com arroz”, ainda que, talvez, El Fadil tenha exagerado um pouco em alguns trechos.

Somente Weaver conseguiu ir além do material oferecido na pele do subserviente e patético Kovat. Poe e Beck fizeram o possível com papéis minúsculos e rotineiros. Lagerfelt seguiu os altos e baixos do material recebido, longe de realmente ser a presença encarnada do sistema de justiça de Cardássia, seja em termos de poder, transcendência ou absoluta antipatia. Chao teve alguns problemas no início do primeiro ato, nas cenas com Meaney no explorador: os dois pareciam muito desajeitados para um casal realmente casado. Também foi dela a única cena completamente “inassistível” do episódio, dando horríveis gritos choramingados após os cardassianos se transportarem do explorador com O’Brien. No restante do episódio, até que ela se saiu bem.

(A brincadeira do “workaholic O’Brien” funcionou bem, quando do início do episódio com Kira, Dax e Sisko — o detalhe do elevador foi bonitinho –, mas funcionou de forma grosseira e óbvia com Keiko, logo depois.)

A cena em que os maquis contatam Bashir foi ótima, não somente para a trama do episódio em questão, mas por reforçar os maquis como um potencial adversário próximo e perigoso, que consegue isolar completamente a enfermaria da estação com o oficial médico chefe dentro.

Tribunal“, ainda que dificilmente revolucionário, é uma bem produzida hora de entretenimento com algumas notáveis virtudes nos temas revisitados referentes aos cardassianos, O’Brien e, especialmente, os maquis. A fenomenal caracterização de Odo é um bônus que por si só já vale a realização do segmento.

Avaliação

Citações

I’m no angel, but I try to live each day as the best human being I can be
(Eu não sou um santo, mas tento viver cada dia como o melhor ser humano que posso ser.)
O’Brien

“Winning is not everything.”
(Vencer não é tudo.)
Kovat

Trivia

  • Mais um episódio do tipo “vamos torturar o chefe O’Brien”.
  •  Primeiro episódio dirigido por um ator da série, no caso, Avery Brooks.
  • Herman Zimmerman declarou que a arquitetura de Cardássia é fortemente baseada na obra 1984, de George Orwell.
  • Foi a primeira cena de nudez de Colm Meaney. Existem paralelos entre o tratamento recebido por O’Brien e o recebido por Picard no clássico episódio da sexta temporada da Nova Geração, “The Chain of Command“. Outros bons pontos de continuidade são a lembrança da Rutledge (a antiga nave de O’Brien) e do massacre de Setlik III.

Ficha Técnica

Escrito por Bill Dial
Dirigido por Avery Brooks

Exibido em 6 de julho de 1994 

Título em português: “O Tribunal”

Elenco

Avery Brooks como Benjamin Lafayette Sisko
René Auberjonois como Odo
Nana Visitor como Kira Nerys
Colm Meaney como Miles Edward O’Brien
Siddig El Fadil como Julian Subatoi Bashir
Armin Shimerman como Quark
Terry Farrell como Jadzia Dax
Cirroc Lofton como Jake Sisko

Elenco convidado

Rosalind Chao como Keiko O’Brien
Caroline Lagerfelt como Makbar
John Beck como Boone
Richard Poe como gul Evek
Julian Christopher como a voz cardassiana
Fritz Weaver como Kovat
Majel Barrett-Roddenberry como a voz do computador

Balde do Odo

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Edição de Muryllo Von Grol
Revisão de Nívea Doria

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