Episódio coloca Federação entre realpolitik e seus valores centrais
Sinopse
A Discovery é perseguida pela Viridian, um truque para Osyraa entrar no QG da Federação. Book e Michael atravessam um túnel transdobra para alcançar a nave em tempo. Eles conseguem fazer um pouso forçado no hangar de naves auxiliares da Discovery, mas o plano de Osyraa dá certo e a nave ganha acesso ao QG da Federação.
Ela trabalha com Aurellio, um cientista, para replicar a tecnologia do motor de esporos. Enquanto isso, Zareh, parceiro de Osyraa, lida com a tripulação capturada e os recém-chegados na nave de Book. O almirante Vance percebe que há algo errado e prepara um ataque contra a Discovery. Então Osyraa se revela e solicita uma audiência.
Na Discovery, Michael manda uma mensagem de socorro para sua mãe em Ni’Var. Tilly e o resto do estado-maior estão detidos com Book, que se entregou para proteger Burnham. Em paralelo, Aurellio tenta convencer Stamets a cooperar para viabilizar a replicação do motor de esporos. Stamets se recusa, destacando a vilania de Osyraa.
Na estação da Federação, ela faz uma proposta inusitada: uma aliança entre a Corrente Esmeralda e a Federação. Vance analisa em detalhes a proposta para um armistício.
Enquanto isso, na Discovery, Michael derrota vários reguladores e mostra que é dura de matar. Já a tripulação consegue escapar do gabinete onde é mantida como refém.
No QG, para fechar o acordo, Vance exige que Osyraa se entregue para julgamento. Ela obviamente se recusa e retorna à Discovery. Lá, ela executa Ryn a sangue frio, para o horror de Aurellio.
Michael chega a Stamets e o ejeta da nave, para impedir que Osyraa fuja com o motor de esporos. Em seguida, é capturada.
Enquanto isso, Tilly lidera sua equipe na retomada da Discovery. E terá a inteligência artificial dos dados da Esfera como aliada, já que ela se transferiu para três robôs DOT-23…
Comentários
Com uma boa combinação de sequências de ação e uma surpreendente rodada diplomática entre a Federação e a Corrente Esmeralda, “There Is a Tide…” prepara o terreno para uma conclusão explosiva da terceira temporada de Discovery, num episódio que traz consigo diversos temas e debates interessantes.
Um dos mistérios persistentes em Star Trek é o de como funciona uma sociedade pós-escassez, ou seja, em que todas as necessidades básicas são atendidas. Para esta introdução ao século 32, a equipe de roteiristas da série reintroduziu a escassez à Federação, por meio da Queima. A Frota Estelar continua tendo seus replicadores (que literalmente transformam merda em alimentos e outros bens, como disse o almirante Vance), mas, sem o dilítio para disseminar sua presença benevolente e protetora pelo espaço interestelar, boa parte da galáxia se viu desamparada.
No vácuo de poder deixado pelo colapso da Federação, a Corrente Esmeralda, uma aliança comercial de caráter escravagista reunindo andorianos e órions, ocupou esse espaço, reintroduzindo a versão mais selvagem da lei da oferta e da procura, regulando pela força das armas o acesso de planetas inteiros a recursos, como forma de explorá-los e subjugá-los. Em essência, comportou-se como uma milícia, fazendo em troca de vantagens o papel que caberia ao estado, por dever de ofício.
A Corrente Esmeralda tem poder, ciência, recursos…. mas o que o estado tem que nenhuma milícia tem? Legitimidade. E é isto que Osyraa busca conquistar para sua organização neste episódio. Quando todo mundo imaginou que ela fosse simplesmente usar a Discovery para detonar o QG da Frota Estelar e então canibalizar a tecnologia do motor de esporos, ela decidiu usar o domínio da nave para forçar os federados a ceder a única coisa que a Corrente Esmeralda, por meios próprios, não teria como obter: respeito e validação perante a comunidade galáctica.
Tudo isso torna a vilã e o ente que ela representa muito mais interessantes do que antes se podia supor, ainda que as novidades causem certa dissonância no conjunto da trama da temporada. De repente, Osyraa ganha o título de “ministra”, menciona a existência de um “Congresso”, que vota leis em disputas apertadas… A Corrente Esmeralda, embora até este ponto tenha se exposto como um reles sindicato do crime, parece ter uma organização mais complexa (ainda que de fachada) do que até então fomos dados a acreditar.
A proposta de Osyraa, por sua vez, traz um dilema real para o almirante Vance: a paz com a Corrente Esmeralda vale o sacrifício dos valores básicos da Federação? Ela está disposta a ceder muito, como abandonar a exploração de mundos pré-dobra (cessando violações da Primeira Diretriz) e encerrar a escravidão em seus domínios (tudo isso com prazo elástico, é verdade). Mas não está disposta a deixar o poder e se entregar para julgamento por seus notórios crimes. Qual é a jogada certa para a Federação, abraçar a realpolitik da situação e aceitar isso como o preço da paz, ou se manter fiel aos princípios que norteiam sua estrutura há séculos? Vance decide pelos princípios e ainda conclui com “eu posso viver com isso”, ecoando o capitão Benjamin Sisko, no clássico “In the Pale Moonlight”, de Deep Space Nine, onde ele usa a mesma frase, mas sem convicção, para justificar o exato oposto — o sacrifício dos princípios numa farsa destinada a colocar os romulanos ao lado da Federação na guerra do Dominion.
Seja aqui, ou em “In the Pale Moonlight”, a beleza não está no caminho escolhido, mas no dilema em si. Enfrentar questões sem respostas fáceis é uma das marcas de Star Trek e, só por realizar esse exercício de forma efetiva e envolvente, “There Is a Tide…” merece destaque, com boas atuações de Janet Kidder (Osyraa) e sobretudo Oded Fehr (Vance), sob a excelente direção de Jonathan Frakes, em uma longa sequência que consiste em basicamente dois personagens (três se você contar o detector de mentiras humano) ao redor de uma mesa. (Parece seguro a essa altura celebrar Vance como um dos melhores almirantes já vistos em toda a franquia.)
Não bastasse isso, ainda temos uma ótima sequência de ação com Michael Burnham a bordo da Discovery, bancando Bruce Willis em Duro de Matar, e Tilly liderando a tripulação numa luta para recobrar o controle da nave, trama que deve encontrar seu desfecho no próximo episódio. Em meio a essa aventura, quem se destaca é Stamets, primeiro abrindo os olhos do cientista Aurellio para as barbaridades de Osyraa (o que parece ter finalmente se assentado para ele ao ver a órion matar o andoriano Ryn, desnecessariamente e a sangue frio, para em seguida ordenar o uso de um soro da verdade em Book).
Stamets volta a brilha em seguida, cobrando de Burnham a dívida de gratidão que ela deveria ter com ele (e com o resto da tripulação) por ter abandonado o século 23 para não deixá-la vir sozinha para o futuro. Anthony Rapp diz a que veio nas duas sequências e serve também para nos fazer lembrar o que há em jogo na nebulosa Verubin, trama que foi aberta em “Su’Kal” e deve ser fechada apenas no episódio final da temporada, “That Hope Is You, Part 2”.
Boa escolha, por sinal, deixar esse pedaço da história para o final, sem nos obrigar a uma “passadinha” por lá neste episódio. Uma das vantagens de ter uma trama serializada é não se obrigar a visitar todos os personagens e situações a cada novo episódio. Isso foi usado de forma efetiva nos segmentos de abertura, “That Hope Is You, Part 1” e “Far From Home”, alternando entre Michael e o resto da tripulação, e com menos sucesso no duplo “Terra Firma”, que colocou em foco uma história pessoal de Georgiou, mas volta a ser usado de forma produtiva em “There Is a Tide…” Para o futuro, a série poderia se beneficiar mais ainda dessa divisão em “núcleos”, operando em lugares distintos e dividindo o elenco, em vez de manter a eterna (e cada vez mais artificial) dança das cadeiras ao redor do assento central na ponte da Discovery. (Seria desejar demais ver Saru no comando da NCC-1031-A, com a tenente Tilly como primeira oficial, e Michael Burnham promovida a capitão em outra nave? Provavelmente sim. A conferir.)
Apesar de ser um episódio divertido e provocador, “There Is a Tide…” deixa, como é de costume em Discovery, algumas pontas soltas. A estratégia de Osyraa para forçar a Federação a debater uma aliança parece, no mínimo, estranha: roubar propriedade e manter tripulantes como reféns não é um modo de fazer amigos.
A sugestão é que a líder da Corrente Esmeralda quer, ao mesmo tempo, replicar a tecnologia do motor de esporos (é para isso que Aurellio está lá) e obter a legitimidade que só a face pública da Federação pode conferir a ela. Para a primeira parte, ela precisa sequestrar a nave; para a segunda, é preciso fechar um acordo. Só não está claro porque ela deve fazer ambas ao mesmo tempo e agora. Estaria ela pressionada politicamente pela escassez de dilítio, já mencionada anteriormente? Um par de falas entre ela e Aurellio (ou ela e Zareh, trazido de volta aqui só para dar o troco em Tilly) bastariam para tornar mais clara a situação sem deixar a gente especulando.
Igualmente mal ajambrada é a (excessivamente conveniente) iniciativa de Michael de pedir socorro à mãe em Ni’Var, por um canal subespacial que só ela sabe como conseguiu abrir. Não é preciso ser bidu para saber que a cavalaria rômulo-vulcana vai chegar (em mais uma edição da síndrome “precisamos juntar tudo que vimos na temporada toda no episódio final”, algo que também foi usado na segunda temporada). Mas haveria formas mais interessantes e menos “provincianas” de fazer isso acontecer. Vance mandar um alerta para Ni’Var, por exemplo.
Por fim, uma participação de Zora (a inteligência artificial resultante da fusão dos dados da Esfera com o computador da Discovery) era mais que esperada, mas os drones DOT-23 são uma forma pedestre (ainda que adorável) de produzi-la. A conferir como esse pedaço da história termina.
E esta é meio que a tônica geral: no fim das contas, temos um ótimo segmento, representando algumas das melhores tradições de Star Trek, mas com sabor de “episódio do meio”, aguardando como (e com quanto tempo de tela) todas as tramas abertas serão fechadas (se é que serão) no finale. Quem viver, verá.
Avaliação
Citações
“It doesn’t quite taste like the real thing, does it?”
“I’ve never eaten a real apple.”
“Well how sad. Apples are a thing of beauty. You want to talk about oppression, you should start in your own mess hall.”
“It’s made of our shit, you know. That’s the base material that we use in our replicators. We deconstruct it to the atomic level, and then reform the atoms. It’s pretty good for shit, and we don’t have to commit atrocities for it.”
(Não tem o mesmo gosto da real, não é?)
(Nunca comi uma maçã de verdade.)
(Bem, que triste. Maçãs são uma beleza. Você quer falar sobre opressão, deveria começar pelo seu próprio refeitório.)
(É feita da nossa merda, sabe. É o material base que usamos em nossos replicadores. Nós a desconstruímos ao nível atômico e então reformamos os átomos. É muito boa para merda, e não precisamos cometer atrocidades por ela.)
Osyraa e Vance
“My whole life is in that nebula!!!”
(Minha vida inteira está naquela nebulosa!!!)
Stamets para Burnham
“I’m not afraid of you anymore. I’ve seen real bravery, real strength and loyalty. And love. You’re nothing compared to that. All you have is fear, and no one is feared forever.”
(Eu não tenho mais medo de você. Eu vi bravura real, força e lealdade reais. E amor. Você não é nada comparado a isso. Tudo que você tem é medo, e ninguém é temido para sempre.)
Ryn para Osyraa
Trivia
- “There Is a Tide…”, escrito por Kenneth Lin, é o terceiro episódio nesta temporada dirigido por Jonathan Frakes.
- Contando como um os filmes e episódios duplos exibidos pela primeira vez juntos, esta é a aventura número 800 de Star Trek, em 54 anos, 10 séries e 13 filmes.
- O título original do episódio era “The Good of the People”. A versão final, “There Is a Tide…”, vem de Shakespeare (Júlio César, Ato IV, Cena III).
- O ator Kenneth Mitchell, diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica, faz o papel de Aurellio. A produção construiu uma cadeira especial para ele, e Mitchell já está em seu quarto papel em Discovery, depois de viver Kol, Kol-Sha e Tenavik, nas duas primeiras temporadas da série. Ele também dublou três personagens diferentes em “Veritas”, da primeira temporada de Lower Decks. Com isso, Aurellio é seu sétimo personagem.
- Kenneth Mitchell não foi o único diagnosticado com ELA a aparecer em Star Trek; antes dele, o físico britânico Stephen Hawking (1942-2018) fez uma ponta em “Descent”, de A Nova Geração.
- A reguladora Kanak (Lisa Berry), que aparece aqui, é da mesma raça de Kima, a jovem alienígena introduzida no curta “Children of Mars”.
- As cenas de Michael Burnham a bordo da Discovery claramente fazem referência ao clássico de ação Duro de Matar (1988), com Bruce Willis.
- O armistício que Osyraa apresenta a Vance contém uma data estelar absurdamente grande. Ela preencheu qualquer coisa ali para atualizar na assinatura?
- Voltamos a ouvir a voz de Zora (Annabelle Wallis), desta vez nos drones DOT-23. Ela havia figurado antes em “Forget Me Not” e no curta “Calypso”.
- Confira mais curiosidades e easter eggs deste episódio, em artigo de Maria-Lucia Racz, clicando aqui.
Ficha Técnica
Escrito por Kenneth Lin
Dirigido por Jonathan Frakes
Exibido em 31 de dezembro de 2020
Título em português: “Há uma Maré…”
Elenco
Sonequa Martin-Green como Michael Burnham
Doug Jones como Saru
Anthony Rapp como Paul Stamets
Mary Wiseman como Sylvia Tilly
Wilson Cruz como Hugh Culber
David Ajala como Cleveland “Book” Booker
Elenco convidado
Oded Fehr como Charles Vance
Noah Averbach-Katz como Ryn
Janet Kidder como Osyraa
Kenneth Mitchell como Aurellio
Annabelle Wallis como Zora
Jake Weber como Zareh
Emily Coutts como Keyla Detmer
Patrick Kwok-Choon como Gen Rhys
Oyin Oladejo como Joann Owosekun
Ronnie Rowe Jr. como R.A. Bryce
Brendan Beiser como Eli
Lisa Berry como Kanak
Avaah Blackwell como Ina
Nicole Dickinson como regulador forte
Vanessa Jackson como Audrey Willa
Lamont James como guarda regulador 1
Dorren Lee como Teemo
Alexander Mandra como Avryz
Fabio Tassone como voz da nave de Book
Roy Samuelson como computador da Corrente Esmeralda