STS 2×02: The Trouble With Edward

Star Trek sabor sitcom numa história de hubris científica

Sinopse

Data estelar: 1421.9.

A Enterprise, sob o comando do capitão Christopher Pike, está para se despedir da oficial de ciências Lynne Lucero, recém-promovida a capitão da nave de pesquisa USS Cabot. A missão dela é ajudar o planeta Pragine 63, mundo próximo à fronteira com o Império Klingon que está enfrentando uma crise alimentar.

Numa reunião com seu novo estafe de ciências, Lucero conhece o tenente Edward Larkin, um competente, mas socialmente inábil, especialista em proteínas que propõe uma solução inusitada: modificar geneticamente uma espécie de pingos para acelerar seu metabolismo reprodutivo e usá-los como alimento no planeta. A capitão acha a ideia controversa demais, dadas as potenciais questões éticas envolvidas, e descarta a opção, redesignando Larkin para trabalhar em climatologia, uma área que ele não domina.

Larkin chega a sondar um dos poucos colegas de nave com quem ele conversa para especular sobre a opinião dele da nova capitão, mas não encontra apoio em sua frustração. Insubordinado, ele decide alterar os pingos geneticamente, introduzindo neles trechos de DNA humano — de si mesmo. Em seguida, ele é chamado para uma reunião com a capitão Lucero, que revela que seus oficiais superiores na Frota Estelar receberam uma série de mensagens anônimas dizendo que ela era burra e devia ser substituída do comando da Cabot. As mensagens obviamente partiram de Larkin, o que a faz solicitar uma transferência para ele.

Só que os pingos começam a se espalhar pela nave, multiplicando-se ferozmente. Eles se infiltram nos sistemas e os teletransportes pifam. A capitão tenta conter a multiplicação explosiva das criaturas instruindo todos a tontearem os pingos, mas a situação continua a fugir ao controle. A única alternativa remanescente é evacuar a nave. Larkin se recusa a partir, declarando como um maníaco que fez a maior descoberta científica de seu tempo, e é soterrado pelos pingos.

Lucero é chamada a responder pela tragédia perante o Comando da Frota Estelar: seu comando durara menos de duas semanas, um experimento sob sua tutela saiu do controle, a Cabot foi perdida, um oficial foi morto, pingos se infiltraram no planeta, que teve de ser evacuado, e alguns parecem ter conseguido avançar para dentro do espaço klingon. Sua justificativa ao apontar a responsabilidade de Larkin pelo incidente: “ele era um idiota”.

Comentários

Se fosse preciso uma prova de que os produtores estão usando os Short Treks para expandir os limites narrativos de Star Trek de formas mais flexíveis do que no passado, “The Trouble With Edward” cairia como uma luva. É um episódio bastante ousado, que oferece um tipo de comédia escrachada, ao estilo das sitcoms, algo nunca antes feito de forma tão relaxada na franquia. Como se isso não bastasse, tem o comercial fake do cereal de pingos, estilo anos 1990, com direito a mensagem de “tracking” de videocassete e formato de tela 4×3.

Apesar disso, é um segmento que, em muitos sentidos, parece evocar algumas das qualidades essenciais da Série Clássica. A proposta parece ser empurrar as fronteiras, mas ainda reter alguns elementos que o identifiquem de maneira bastante clara com o que Jornada costuma fazer. Isso, tanto em forma como em conteúdo. Na forma, a abertura com uma entrada do diário do capitão de Pike, com uma rápida apresentação da premissa, soa 100% classic Trek. No conteúdo, temos um episódio que, para além de seus aspectos humorísticos, se propõe a discutir um tema sério. Estamos falando dos limites da ciência e dos riscos de experimentação sem supervisão de comitês de ética.

O desajustado Larkin talvez pareça meio deslocado a bordo de uma nave estelar, mas é um retrato razoavelmente acurado de como alguns cientistas podem se comportar acerca de seu próprio trabalho. É muito comum pesquisadores acabarem obcecados por seus próprios objetos de pesquisa. Einstein mesmo chegou a dizer que suas realizações tinham um pouco a ver com obsessão, com o foco incessante num determinado assunto, e o fato de que ele passou dez anos trabalhando ininterruptamente no desenvolvimento da teoria da relatividade geral é um bom exemplo disso.

Também soa verdadeira a atitude hipócrita de Larkin, ao declarar que comeu um ou dois pingos para “propósitos de pesquisa”. Essa exata expressão, “propósitos de pesquisa”, é o que o Japão usa para autorizar a selvagem caça às baleias, que acabam, não se engane, indo parar no prato de alguém.

Por fim, é bastante crível a decisão dele de realizar o experimento de forma não autorizada, convencido de que era a coisa certa a fazer, mesmo depois de ter sido desautorizado pela capitão por razões éticas. Basta lembrar o caso recente do pesquisador chinês que anunciou, em novembro de 2018, ter produzido os primeiros bebês com edição genética feita com a técnica CRSPR/Cas9, introduzindo uma alteração no DNA que as deixaria imunes ao HIV. O experimento foi feito sem qualquer consideração por riscos de danos colaterais e sem ser submetido a um comitê de ética, como ditam as boas práticas científicas.  Teremos de esperar alguns anos para saber se as duas meninas terão algum problema por conta da modificação.

É a famosa hubris, a arrogância de se julgar capaz de avaliar as consequências melhor que qualquer outra pessoa, a motivar esse comportamento. O clássico “The Trouble With Tribbles”, de certa forma, já bebia nesta fonte, ao discutir um ato de inconsequência ambiental — no caso, o impacto ecológico causado pela introdução de uma espécie aparentemente inofensiva em um novo habitat (David Gerrold então se inspirou na multiplicação descontrolada dos coelhos, quando foram introduzidos na Austrália). Parece apenas oportuno que “The Trouble With Edward” tenha uma inspiração similarmente séria, apesar de, na forma, ser essencialmente uma comédia.

A história flui de forma suave e as piadas não atravancam o andamento do episódio. Temos uma mistura de clássico (como a reunião do estafe, com direito a uma tela de três faces!) e inusitado (uma sequência de “pingos por toda parte” ao som da divertida Johnny Appleseed, interpretada por Bing Crosby, que por sinal era avô da atriz Denise Crosby, a Tasha Yar de A Nova Geração), salpicada por uma combinação de tiradas de humor (a conversa entre a capitão Lucero e Edward Larkin no gabinete dela é impagável) e uma boa dose de sátiras com clichês de terror (a tripulante gritando soterrada por pingos é para rir, claro), embalando uma história séria com personagens críveis, apesar de caricatos.

Os atores vão muito bem. H. Jon Benjamin em particular está engraçadíssimo. Mais conhecido por suas atuações de voz em séries como a animação Archer, ele aqui entrega uma fisicalidade esquisita que cai lindamente com seu personagem.

Os valores de produção também encantam. Você nunca viu pingos se reproduzirem em tela antes, e os cenários da USS Cabot, embora obviamente reciclados de Discovery, trazem um sabor clássico repaginado muito legal. A aparição da Enterprise na abertura do episódio é de tirar o fôlego, e as variações de uniformes a bordo da nave (inclusive com um muito parecido com os usados em “The Cage”) são uma atração à parte.

Resumo da ópera: há muito para gostar em “The Trouble With Edward”. Pode irritar alguns puristas que tenham dificuldade em levar na esportiva a ideia de brincar com Star Trek e tentar expandir os limites do formato. Mas quem for para ele de coração aberto vai ter 15 minutos de boas risadas.

Avaliação

Citações

Lucero – This conversation is over. (“Esta conversa acabou.”)

Trivia

  • Este foi o segundo de três Short Treks baseados na Enterprise de Pike. Mas apenas Anson Mount aparece e só nos primeiros instantes do episódio.
  • H. Jon Benjamin revelou que houve uma cena cortada em que ele aparece comendo um pingo. Ele foi feito de melancia, mas lembrava o aspecto de um bife suculento.
  • A sala de transporte da Enterprise de Pike, vista aqui, é uma versão (bastante) redecorada da sala de transporte da Discovery.
  • Cronologicamente, os pingos aparecem pela primeira vez no episódio “The Breach”, de Star Trek: Enterprise. Lá, o dr. Phlox os descreve como reprodutores contumazes, o que parece contrastar com a descrição dada por Edward Larkin do comportamento reprodutivo deles. Em compensação, Phlox já tem a ideia de usá-los como alimentos para as criaturas que ele mantém na enfermaria.
  • O planeta de origem e o nome científico dos pingos aparece pela primeira vez numa tela na sala de aula de Keiko O’Brien em Deep Space Nine, vista nos episódios “A Man Alone” e “The Nagus”, da primeira temporada. Eles são praticamente ilegíveis nas imagens em baixa resolução e foram feitos por Doug Drexler, que os produziu originalmente para um livro editado por fãs, Star Fleet Medical Reference Manual, em 1977. Lá foi estabelecido que os pingos são originários de Iota Geminorum IV e seu nome científico é Polygeminus grex. Em “The Trouble With Edward”, o planeta de origem foi mantido, mas a espécie é listada como Tribleustes ventricosus. É possível que existam duas espécies diferentes de pingos, o que inclusive ajudaria a explicar as discrepâncias entre a descrição dada por Phlox em Enterprise e a dada por Larkin aqui.
  • O coprodutor executivo e diretor de Discovery, Olatunde Osumsanmi, revelou que havia dois tipos de pingos feitos para o episódio, inanimados e movidos por controle remoto, que eles vinham em várias cores e que tiveram de ser testados em câmera antes das filmagens. O responsável pelos objetos de cena, Mario Moreira, revelou que foram feitos mais de 500 deles.
  • Este é o segundo episódio a vermos pingos submetidos a técnicas de engenharia genética. Em “More Tribbles, More Troubles”, da Série Animada, Cyrano Jones aparece com pingos “seguros”, incapazes de se reproduzir, depois de um processo que os deixou “amigáveis” à ecologia humanoide. Claro que, a exemplo de “The Trouble With Edward”, os pingos “seguros” eram tudo menos isso.
  • O roteirista Graham Wagner é especialista em comédia e escreveu para séries como Silicon Valley e The Office.

Ficha técnica

Escrito por Graham Wagner
Dirigido por Daniel Gray Longino
Exibido em 10/10/2019
Produção: 202

Elenco

Anson Mount como Christopher Pike
H. Jon Benjamin como Edward Larkin
Rosa Salazar como Lynne Lucero
Lisa Michelle Cornelius como Sarah
Matthew Gouveia como Noel
Krista Jang como Rob
John Jarvis como almirante Quinn
Loretta Shenosky como o computador da Cabot
Emma Hayley So como as crianças no comercial

TB ao Vivo