Estudo de personagens explora “parentesco” de Spock e Una
Sinopse
O alferes Spock acaba de se apresentar para o serviço a bordo da USS Enterprise. Quem o recebe na sala de transporte é a tenente-comandante Una, primeira oficial do capitão Pike. Enquanto os dois caminhos pela nave, a enigmática Número Um diz esperar de Spock que, como oficial de ciências, ele faça perguntas incessantemente.
Os dois embarcam no turboelevador e, de início, interrompem a sequência de perguntas. Mas então ocorre uma falha, e os dois ficam presos na cabine. Enquanto a engenheira Upjohn tenta resolver o problema, a Número Um pede que Spock retome as perguntas — o que se dá de uma forma exaustiva, como quem conhece o vulcano pode imaginar. Ao perceber que está se tornando enfadonho, Spock tenta pegar mais leve. “Você gosta de berinjela?”
É a gota d’água para a Número Um, que pede a ajuda de Spock para erguê-la, de modo que ela possa tentar ajudar nos reparos do turboelevador. Mas isso acaba resultando num choque elétrico que coloca Una a nocaute. Sem alternativas, a engenheira Upjohn informa que a tenente Amin descerá de rapel pelo poço do turboelevador para tirar os dois de lá.
Una está intrigada com Spock e percebe que eles pensam de forma muito semelhante. Ela decide então fazer uma pergunta: ele estava sorrindo quando se teletransportou para a Enterprise? Spock diz que não fará mais isso, mas Una explica que não se trata disso. Ela apenas gostaria de aconselhá-lo a manter suas peculiaridades longe dos olhos dos colegas, mesmo que isso doa, caso queira um dia assumir o comando. Spock retruca dizendo que fez isso a vida toda e que de fato dói. Una diz reconhecer o sentimento, e Spock indica que isso deixa uma pergunta no ar. O que afinal Una esconde de seus colegas?
Num ato de cumplicidade, a estoica Número Um resolve se revelar e se põe a cantar I Am the Very Model of a Modern Major-General, de Gilbert e Sullivan. Ela termina a canção eufórica, mas Spock de início parece não partilhar da alegria. Ela se mostra constrangida, e então o vulcano a surpreende, puxando os versos finais, que os dois cantam em uníssono, antes de caírem na risada.
A tenente Amin chega em seguida, e Una pede que Spock jure que jamais revelará o que se passou ali. Os dois finalmente são içados do turboelevador e se reencontram na ponte, onde o novo oficial de ciências é apresentado a Pike. Diante de uma linda nebulosa, o capitão pergunta a Spock se vulcanos sentem deslumbramento. O alferes responde que sim, mas que eles costumam esconder isso. Seu olhar, contudo, não conseguia disfarçar o maravilhamento. Uma grande aventura aguardava o jovem vulcano…
Comentários
A trama, convenhamos, é inexistente. Mas “Q&A” é um magnífico estudo de personagens, entregando profundidade e cumplicidade entre Spock e Una, num encontro que precede em alguns meses o que vimos em “The Cage”.
O roteiro de Michael Chabon opera em dois níveis, um internamente ao universo de Star Trek e outro num comentário/metaexpressão do processo de bastidores que envolveu a criação e o desenvolvimento desses personagens por Gene Roddenberry.
Lembrando: Spock foi criado originalmente como o alienígena que serviria como lembrete permanente de que a série se passava no futuro. Nada havia sido desenvolvido até então sobre os vulcanos, e Spock não se mostrava avesso a emoções. Em “The Cage”, alterava o tom de voz com facilidade e até sorria.
Em compensação, a misteriosa Número Um, personagem a quem Roddenberry nem sequer deu nome, seria a mulher estoica responsável por comandar a Enterprise na ausência do capitão Pike. Altamente inteligente, ela nutria sentimentos jamais expressos por seu oficial comandante.
Quando a NBC decidiu barrar os dois personagens para o segundo piloto, Roddenberry decidiu brigar por Spock e sacrificar a Número Um, transferindo as características dela ao vulcano. No plano dos bastidores, podemos dizer que foi a Número Um quem fez de Spock quem ele se tornaria na Série Clássica. E agora, graças a Chabon, isso também passou a ser verdade no cânone.
O roteiro dá todas as pistas de estar ciente dessa história pregressa e brinca com isso de forma muito agradável, ao deixar que, por diversas vezes, os dois personagens concluam uma frase ao mesmo tempo — reforçando o fato de que, em algum nível extra-cânone, eles são o mesmo personagem.
Chabon também pode contar com as atuações altamente calibradas de Ethan Peck e Rebecca Romijn para entregar com subtexto o que não está nos diálogos. Exemplo: Peck encarna à perfeição o estilo “Spock gritalhão” de “The Cage”, fato que é enfatizado com uma piscadela para a audiência quando Una diz: “Não precisa gritar, sr. Spock.”
Outro exemplo: como Romijn entrega com um olhar que Una talvez tenha revelado mais sobre o que sente pelo capitão do que desejaria, depois de Spock apontar que ela havia feito um estudo pormenorizado de Pike.
O nonsense da sequência musical também contribui para o sucesso da peça, revelando que, a exemplo do próprio Spock, há muito mais em seu interior do que a gélida superfície. De novo, o fato de os dois concluírem a canção juntos reforça a noção de almas gêmeas que permeia todo o episódio.
Quem é trekker estudioso não pode deixar de se encantar com todos esses elementos costurados numa peça muito bem escrita de 14 minutos. E restam “penduradas” muitas interrogações sobre Una que, esperamos, possam ser respondidas em produções futuras. Por que ela não gosta do próprio nome? O que há com a música? Por que a opção pelo estoicismo? Como estão, esses elementos refletem à risca a personagem original de Roddenberry, mas seria adorável vê-los sendo explorados mais adiante, levando-a além do rascunho apresentado em “The Cage”.
A direção de Mark Pellington não chama atenção para si e faz o bom trabalho de se concentrar nas atuações, num roteiro que é basicamente um ato de uma peça teatral. Considerando que praticamente tudo se passa no turboelevador, é quase um milagre que as cenas não se tornem enfadonhas. O diretor seguramente achou um bom número de ângulos diferentes para tornar o espaço restrito interessante.
Fora isso, temos pontas da tenente Amin e do capitão Pike, que mais uma vez nos deixam com vontade de permanecer a bordo da Enterprise por mais algum tempo. Que esta temporada de Short Treks não seja nosso último encontro com eles…
Avaliação
Citações
Spock – What are the three most salient facts about Captain Pike? (“Quais são os três fatos mais salientes sobre o capitão Pike?”)
Una – One, his capacity for hearing out another point of view is exceeded only by his willingness to change his own once he’s heard you out. Two, even though he is the most heavily decorated fighting captain in Starfleet, he views resorting to force as an admission of failure. And three… he is utterly unsentimental except when it comes to horses. (“Um, sua capacidade de ouvir outro ponto de vista é excedida apenas por sua disposição para mudar de ideia depois de ter ouvido você. Dois, embora ele seja o capitão mais fortemente condecorado em batalha na Frota Estelar, ele vê o uso da força como uma admissão de fracasso. E três… ele é totalmente não sentimental, exceto no que diz respeito a cavalos.”)
Trivia
- Este foi o primeiro de três Short Treks baseados na Enterprise de Pike. A produção se deu em maio de 2019, sob o título provisório de Chaos Theory.
- O curta-metragem é dedicado à memória do dr. Robert Chabon, pai do roteirista Michael Chabon, que revelou tê-lo escrito sentado à beira da cama do pai doente. Este é o segundo episódio de Star Trek escrito por Chabon a ser exibido. Antes dele, apenas outro curta-metragem, “Calypso”. Michael Chabon, no entanto, esteve pesadamente envolvido em Star Trek: Picard, onde atua como showrunner.
- A sala de transporte da Enterprise de Pike, vista aqui, é uma versão (bastante) redecorada da sala de transporte da Discovery.
- Durante a roteirização do episódio, Alex Kurtzman escreveu uma mensagem para Rebecca Romijn e perguntou se ela tinha algum talento especial. Ela respondeu que jogava badminton, era boa com idiomas estrangeiros e cantava Gilbert e Sullivan, motivo pelo qual I Am the Very Model of a Modern Major-General foi incluído no episódio.
- Há similaridade entre este curta e o episódio “Disaster”, de A Nova Geração, em que Picard fica preso num turboelevador com crianças e precisa sair com elas escalando o poço. Por coincidência, neste episódio Geordi também canta um trecho da música de Gilbert e Sullivan. Os compositores do século 19 também fizeram uma aparição em Insurreição, mas com outra canção.
- A compositora israelo-holandesa Nami Melumad tornou-se a primeira mulher a compor uma trilha de Star Trek. Ela trabalhou sob a supervisão de Michael Giacchino, responsável pelas trilhas dos filmes da linha do tempo da Kelvin.
- Spock menciona aqui seu número serial, S 179-276 SP. É o mesmo que seria apresentado no episódio “Court Martial”, da Série Clássica.
- Este episódio, que mostra a chegada de Spock à Enterprise, deve ter ocorrido em 2254, alguns meses antes dos eventos de “The Cage”.
- Pela primeira vez, Star Trek teve um episódio apresentado sem aviso prévio, de surpresa. Alex Kurtzman fez o anúncio durante a New York Comic-Con, em 5 de outubro de 2019, alertando os fãs de que o episódio já estava disponível no CBS All-Access. Foi também a primeira vez que um episódio de Star Trek estreou num sábado desde o fim da Série Animada, em 1974.
Ficha técnica
Escrito por Michael Chabon
Dirigido por Mark Pellington
Exibido em 5/10/2019
Produção: 201
Elenco
Rebecca Romijn como Una
Ethan Peck como Spock
Anson Mount como Christopher Pike
Samora Smallwood como tenente Amin
Sarah Evans como Upjohn
Jenette Goldstein como a voz do computador da Enterprise