Que setembro é o mês mais trekker do ano todos nós sabemos. Afinal, comemoramos o nascimento da franquia (8), o lançamento de “Amok Time” (15) e ainda o aniversário de A Nova Geração (28). Mas o que alguns fãs não sabem é que, em meio a tantas celebrações a Jornada, o fandom criou um feriado trekker para chamar de seu: o Kirk/Spock Day.
Também chamada de K/S Day, a data foi criada pelo letterzine “The K/S Press”, em 1997, mas era comemorada no dia 24 de março, pois foi escolhida a segunda-feira mais próxima entre os aniversários de William Shatner e Leonard Nimoy, em uma referência ao Dia dos Presidentes nos EUA. Neste dia, os fãs se dedicam a ler, escrever, produzir fanarts e fanvideos de Kirk e Spock como um casal.
A parcela dos fãs que via um subtexto de um relacionamento romântico e/ou sexual entre os dois acabou adotando “Amok Time” como um símbolo, e a data de lançamento do episódio, 15 de setembro, tornou-se outra opção para a comemoração. Mas o impacto gerado por este casal inventado pelos fãs está longe de se resumir a uma data festiva dentro da comunidade trekker.
A repercussão de Kirk/Spock na cultura de fã
Quando Isaac Asimov sugeriu a Gene Roddenberry que aproximasse Kirk e Spock um do outro para evitar que o personagem principal da série caísse no esquecimento frente à inesperada popularidade do meio vulcano, ninguém poderia imaginar o que isso desencadearia no próprio fandom de Star Trek e muito menos que teria eco na cultura de fã de modo geral.
Se você já leu alguma fanfic de qualquer universo ficcional, com certeza percebeu que uma das formas que os fanfiqueiros usam para se referirem aos casais, além do amálgama lexical, é a inserção de uma barra oblíqua (“/”) entre os nomes ou as iniciais dos personagens. Mas nem sempre foi assim. Na época em que a as fanfics circulavam por fanzines, os escritores assinalavam os pares de suas histórias com uma vírgula ou um hífen. A narrativa poderia desenvolver uma relação de amizade, amor ou tensão sexual entre personagens. Não havia como saber do que se tratava uma determinada história, o que gerava certa confusão entre os leitores.
A crescente popularidade das ficções de Kirk e Spock como um casal, que teve seu primeiro expoente na fanfic “The Ring of Soshern”, escrita por Jennifer Guttridge em 1968, somente fortaleceu a necessidade de se desfazer a ambiguidade de conteúdo dos enredos. Em 1975, apareceram as nomenclaturas “K&S “e “K/S”. O “&” passou a designar histórias que tratavam da amizade entre Kirk e Spock e a barra (“slash”, em inglês) sinalizava fanfics de cunho romântico e/ou sexual.
Com o passar do tempo, a barra extrapolou o fandom de Star Trek e passou a ser utilizada por fãs de outras franquias como modo de se escrever o nome de um casal hétero ou homo, canônico ou não, tornando-se também o nome do próprio gênero homoerótico masculino de fanfics: o slash. E, segundo a pesquisadora Anne Jamison, um dos enredos mais comuns nas histórias K/S, o pon farr, também se tornou um tropo em fanfics de outros universos ficcionais, inclusive naquelas cujos cânones não têm a necessidade biológica de reprodução em um dado período de tempo.
A recepção dos fãs LGBTs
Mesmo que as fanfics estejam, há muito, na frente do cânone quanto à produção de narrativas com personagens gays ou lésbicas, a quantidade deixou de ser um fator prioritário e passou-se a analisar como estas histórias se desenrolam. O slash não atrai a atenção da maioria dos LGBTs, pois, sendo um gênero feito e consumido por mulheres, tende a não representar a relação homossexual de forma verossímil, pois reproduz os padrões de um casal hétero.
Relacionamentos entre homens ou entre mulheres que permanecem no subtexto, de maneira intencional ou não, acabam recebendo o rótulo de “queerbating”. O cânone, agora, começa a abraçar, de maneira mais efetiva, a demanda destes fãs que querem se ver representados, mostrando que não há mais margem para interpretações subjetivas sobre o fato de Hugh Culber e Paul Stamets serem um casal ou de Jett Reno ter sido casada com uma soyousiana.
E o cânone?
As fanfics K/S continuam sendo produzidas e encontrando novos leitores nas versões Kelvin de Kirk e Spock. Embora não possuam a mesma força que as histórias da versão clássica um dia tiveram, engana-se quem pensa que terem tornado canônico um relacionamento romântico entre Spock e Uhura causou o enfraquecimento do casal no fandom. Ao contrário, enredos de triângulo amoroso em suas mais diversas variações são um dos mais comuns nas ficções K/S desta linha temporal.
Devemos atribuir a diminuição da popularidade das fanfics K/S Kelvin, muito provavelmente, ao nosso contexto histórico atual. Os filmes dirigidos por J.J. Abrams e Justin Lin surgiram em um período em que a internet já proporcionava às pessoas um maior e mais fácil acesso a outras franquias e suas comunidades de fãs, causando uma diluição do público ficwriter que antes se concentrava em contar as histórias de Kirk e Spock sem ter a oportunidade de conhecer outros fandoms.
As fanfics K/S só existem porque, no domínio das ficções de fãs, as regras do cânone devem servir à história a ser contada, não o contrário, e, se necessário for, podemos jogar fora quase tudo o que vimos em tela. O que leva um ficwriter a escrever sobre algo criado e produzido por outras pessoas (e sem ganhar algum retorno financeiro com isso) é a possibilidade de materializar uma ideia que provavelmente nunca se concretizaria no material oficial.
Afinal, o nó mais firme da criação nas fanfics não está preso ao cânone, mas amarrado na vontade de se escrever sobre aquilo que nos desperta afeição e, se os fanfiqueiros começarem a olhar o que produzem e consomem de maneira mais crítica, há grandes chances de que as histórias de Kirk e Spock como um casal ainda tenham uma vida longa e próspera no fandom.