Discovery trouxe em sua última semana em 2017 o seu melhor episódio até aqui, com uma execução fantástica em todas as frentes e com uma história que faz a melhor limonada possível e imaginável com os limões plantados ao longo do caminho, avançando grandemente a situação do conflito klingon (e decididamente sem medo de sacudir o seu status quo), fazendo os personagens brilharem individualmente e em conjunto e abrindo ao menos três caminhos de dúvidas legítimas sobre: Voq/Tyler/L’Rell (e a verdadeira linha de tempo dos “três?”, as suas táticas e os seus objetivos), Lorca (e a sua agora obviamente existente agenda própria que aparentemente nada tem a ver com o resto do Quadrante Alfa) e o mistério do último salto da nave (onde eles foram parar? Será que foi na casa do Lorca? Onde ela fica?).
Já não havia dúvida que estávamos frente a um episódio especial quando antes de chegarmos à sequência de abertura já tínhamos Lorca desobedecendo uma ordem direta de Terral (no melhor estilo Kirk!) com a cumplicidade de toda a tripulação. Com confiança e convicção absolutas, seguimos em frente sem olhar para trás.
(Pahvo torna-se meramente objeto do discurso e sua órbita cenário da batalha. Saru começa a interceder pela defesa do planeta com vocalizações e maneirismos específicos remetendo a aventura anterior mas se cala quando nota que a insubordinação de Lorca se alinha com tal defesa.)
Não existem dúvidas que Lorca é (em uma primeira camada) um personagem de inspirações maquiavélicas e que sofre de traumas de guerra análogos aos de Tyler (lembrando que os numerosos anti-heróis pós-revolução televisiva não são, via de regra, maquiavelistas perfeitos, tendo inúmeras falhas e vulnerabilidades, por vezes infames e humilhantes). Uma segunda camada é a de explorador vista em “Context Is For Kings” e aqui. Camada essa complementada por um viés de cientista aqui também. Fica a eterna dúvida da sinceridade em qualquer um desses certames (e além) ou se ele simplesmente manipulou Burnham e Stamets (entre outros), dizendo o que eles precisavam ouvir. Ele conhece a fundo a sua tripulação e sabe como motivá-los (com direito até a um memorável discurso estilo Henrique V). Eis que surge uma terceira camada, de alguém que por sete episódios (que acompanhamos) e crise após crise, compartimentalizou uma agenda própria, estudando os saltos do motor de esporos, querendo aparentemente “voltar para casa”. Neste ponto fica difícil ignorar o óbvio que nove episódios parecem apontar… Será uma camada demais para a maioria dos fãs? Será que essa camada extra é uma boa explicação para as duas outras camadas, frente boa parte do fandom? Será que poderemos perder Lorca ou Isaacs ou ambos? Será que Jornada precisa e vai crescer junto com os seus fãs?
Burnham fez um círculo completo de volta a nave sarcófago, não se amotinando mas convencendo Lorca. Não obedecendo cegamente ordens mas respeitando o espírito da missão, salvando a almirante, lidando com os traumas de Tyler e desafiando Kol para um absurdo duelo, quando a missão já ia para o brejo, tudo com a cuca aparentemente fresca e calculando o risco. O mais incrível é que conseguimos enxergar um pouco da sua nova tripulação em suas atitudes. Enxergamos a evolução da personagem.
E por falar em convicção…
Tentemos resumir agora o nível da direção de Chris Byrne no segmento com uma pequena recapitulação da inesquecível sequência final da destruição da nave sarcófago, talvez o clímax da redenção de Burnham até aqui: o colírio de Lorca, o “Fogo!” de Lorca, seguindo sem palavras, detonações fotônicas, Burnham e Tyler entram na ponte, reação de Detmer, Lorca começa a andar de costas para a tela principal (Bye Bye Sarcófago!) com Detmer olhando com cumplicidade para Owosekun, Lorca troca olhares com Burnham, Tyler deixa a ponte, Burnham e Saru trocam olhares, vemos a insígnia de Georgiou nas mãos de Burnham em ângulo baixo e depois em câmera subjetiva, ela se lembra de Tyler, olha pra trás e não o acha.
E deixamos o melhor para o final…
Stamets emerge como o mais tridimensional personagem de toda a série, com a voz mais segura, com a caracterização mais consistente. Na cena do hangar com Lorca, instantaneamente uma cena clássica para a franquia, Stamets diz que ter navegado pela rede de esporos é algo suficiente para toda uma vida, provavelmente mais do que qualquer humano jamais sequer sonhou. E concorda com apenas mais um salto para deixar todos em segurança e dai ser tratado pelos melhores médicos da federação para sobreviver a sua condição seja ela qual for. E ter tempo livre para viver longe disso tudo. Obviamente essa ópera terá que esperar ou dar lugar a outra, com o que vimos no final do segmento.
(O que Lorca estava pensando? “O que de fato me aguarda na base estelar 46?” “Será a minha última chance de voltar para casa?” “Será que devo ficar aqui?”)
Mais algumas pitadas:
─ Em um comentário que ficou caprichosamente de fora do review da semana passada (já tão negativo, poderiam alguns assim o classificar), falávamos talvez da necessidade de termos um diretor com mais peso entre os produtores-executivos da série Discovery, talvez para servir como uma espécie de supervisor de todos os diretores do programa e além. Nesse tipo de papel já tivemos (entre tantos outros possíveis exemplos): Michael Rymer em Battlestar Galactica, Mimi Leder em The Leftovers e David Slade em Hannibal. Rymer deveria ter recebido crédito de co-criador (junto com Ron Moore) em BSG devido ao seu dedo no estabelecimento da assinatura visual e no modelo de apresentação dramática adotado naquela série. Leder elevou The Leftovers de uma atração promissora ao topo do drama televisivo após a sua entrada. E Slade encantou (e horrorizou) a todos com o programa visualmente imbatível do refinado canibal. Com o afastamento de Fuller de Discovery, Slade acabou não se envolvendo nessa nova jornada. Seria inevitável que ele dirigisse o piloto e além. Perda nossa… Dizemos isso pois julgamos Discovery não tão bem resolvida e interessante visualmente até aqui, como o seu belo orçamento talvez automaticamente garantisse. Ou seria melhor dizer que assim julgávamos? Nesta semana, Chris Byrne, curiosamente um colega de Fuller e Slade e ainda com um pequeno currículo (basicamente segunda unidade), fez o seu dever de casa de maneira primorosa e deu outra vida a série de Burnham e companhia, como em um divisor de águas. Parece inevitável que ele cresça pelos postos da produção de Discovery daqui por diante;
─ Os traumas de Tyler por ter sido continuamente torturado e estuprado por L’Rell vêm à tona brutalmente aqui. Tyler fica inoperante em missão e exibe imensa vulnerabilidade em seus aposentos com Burnham, cortesia de um ótimo Latif. A grande ironia é que a especialista se apoiou na fachada que Tyler projetava para seguir em frente com as suas tragédias pessoais, mas o aceitou quando ela soube da verdade sobre a situação psicológica do chefe de segurança (o que parece germinar em uma espécie de tema global para a série: fachada versus aceitação);
(O estupro cometido por uma mulher sobre um homem ainda é um tema muito menos lugar-comum na televisão do que um beijo entre um casal homoafetivo.)
(É claro que a última pitada deve ser lida à luz de toda a questão Voq/Tyler/L’Rell. Dúvidas abundam, sendo uma das poucas certezas o sofrimento de Burnham.)
(Ter L’Rell na Discovery nessa viagem ao universo do espelho (?) foi surpreendente e promete aumentar a pressão ao máximo.)
(E o que dizer da lágrima solitária de Sonequa Martin-Green?)
─ Lorca referencia o segundo piloto de Jornada nas Estrelas (“Where No Man Has Gone Before”) na sua conversa com Stamets em sua cabine e quando Stamets colapsa, após o último salto da Discovery, seus olhos ficam “brancos” numa aparente referência ao mesmo segmento;
(Essa referência, especificamente ao personagem Gary Mitchell, pode indicar um desenvolvimento perturbador e potencialmente trágico para Stamets. E seria algo incrivelmente orgânico em termos de cânone por falar nisso, dada a situação do tenente.)
─ Fascinante como Stamets comenta que o sistema de alimentação do motor de esporos não foi projetado para suportar a quantidade de esporos necessários aos 133 saltos propostos por Lorca e logo mais, durante o discurso de Lorca, vemos (sem palavras necessárias) Tilly implementando algum tipo de algoritmo de compressão para satisfazer tais condições extremas. BRAVO!
─ Quem será o cadete Decker?
A guerra klingon não terminou e a Discovery não teve tempo de enviar o código anulador de camuflagem para a Frota Estelar. Quem ocupará o lugar de Kol? A nave se encontra no universo do espelho (?). Como sobreviver a tal lugar? Como voltar para casa? O que acontecerá com Stamets? Como desenvolver Burnham além do seu arco (inicial) de redenção aparentemente findado? Como desenvolver a terceira camada de Lorca de forma intrigante e sem alienar completamente a sua audiência? Qual é a real importância de Burnham para Lorca? Como trazer a inescapável reviravolta e extrair o derradeiro pathos de toda a situação de Voq/Tyler/L’Rell? Tudo isso (e esperamos muito mais) a partir de janeiro. Por hora, saboreemos mais uma vez esse novo clássico de Jornada nas Estrelas.
Star Trek Discovery
EP 01X09 “Into The Forest I Go”
Grau: A (4/4)