Na esteira da boa recepção ao artigo sobre as temporadas iniciais de Deep Space Nine, o Trek Brasilis faz agora a migração do Conteúdo Clássico de outro dos artigos relacionados — no caso, uma análise detalhada do arco Maqui desenvolvido nas séries modernas de Jornada durante os anos noventa. Uma leitura longa, mas que deve dar boa oportunidade de debate entre a comunidade do TB.
Introdução
– Você é contra os Maquis? Acha que eles estão errados? Que são “terroristas”?
– Sim.
— Londo Mollari e Leandro M. Pinto, Fórum Trek Brasilis, circa 2004.
Com a [então] recente transmissão pelo Universal Channel do episódio “Blaze of Glory”, um dos melhores e mais interessante arcos de trama já desenvolvidos para nossa franquia chega nesta sua conclusão final de sua apresentação ao fandom brasileiro de Jornada nas Estrelas. Originalmente desenvolvido para ser um dos elementos para a base de Jornada nas Estrelas: Voyager, o arco da crise das colônias na Zona Desmilitarizada Cardassiana e o grupo de resistência Maqui encontrou excelente campo para prosperar e florescer em Jornada nas Estrelas: Deep Space Nine.
O presente artigo não tem a intenção de ser uma repassada geral em detalhes de toda a história do movimento Maqui e/ou em alguns de seus elementos enquanto produção de uma série de televisão. Para este efeito, já existe disponível aqui no Trek Brasilis a excelente série de artigos escritos por Luiz Castanheira, “É Fácil ser Santo no Paraíso”. Assim, seria contraproducente querer reinventar a roda, uma vez que ela já existe e funciona de maneira maravilhosamente bem, e sua leitura é absolutamente fundamental para se ter uma boa visão deste arco de trama de Deep Space Nine.
Já este artigo em particular, trata-se de uma visão extremamente pessoal do arco Maqui, na qual este autor faz uma análise dos elementos existentes ao longo dos episódios e extrapola alguns outros, de modo a termos o todo do arco Maqui visto por outros ângulos, e a maneira pela qual o embate final entre dois participantes, Sisko e Eddington, encerra o arco de tanto em seus aspectos pessoais para as pessoas envolvidas, como nos aspectos políticos e sociais relativos a Federação.
Assim, o resultado do artigo não pode ser encarado de outra forma senão como esta opinião pessoal sobre as reais raízes da crise Maqui, seus reais fundamentos e justificativas (ou a falta disto), suas conseqüências finais, e suas possibilidades. Contudo, é de se considerar que tal opinião estará bastante embasada por argumentação e avaliações das evidências existentes no cânone e cronologia da série. Caberá a cada um dos leitores ponderar a respeito da validade ou não das questões discutidas aqui.
Origens da Crise: A Federação tem direito aos setores contestados?
– Eles morreram porque você encheu a cabeça deles com falsas esperanças. Você vendeu a eles sonhos de uma vitória militar quando o que eles realmente precisavam era uma paz negociada.
— Sisko para Eddington, Blaze of Glory.
Para especularmos a respeito do que seria a resposta a esta questão, primeiro precisamos avaliar os elementos existentes no cânone e cronologia da franquia de Jornada nas Estrelas que diz respeito a guerra entre a Federação e Cardássia, a qual teria sido o estopim original daquilo que viria a ser a crise maqui.
Como diversos elementos isolados ao longo de diversos episódios de A Nova Geração, Deep Space Nine e Voyager já deixaram claro, houve um conflito militar entre a Federação e Cardássia em algum momento entre as décadas de 2350 e 2360. O Chefe Miles O’Brien, por exemplo, já teve inúmeros elementos de sua carreira estabelecidos como servido durante esta guerra, além de diversos outros elementos cânones e cronológicos que fazem menção a este conflito. Desta forma, é largamente inquestionável que tal guerra ocorreu.
Mas quais teriam sido as razões desta guerra, e suas conseqüências? Os assentamentos coloniais federados nos setores em disputa parecem estar bem no meio da questão. Assim, devemos considerar que estes assentamentos federados são ou a razão desta guerra, ou sua conseqüência. Em qualquer caso, a situação que temos é: Cardássia afirma que aquela região pertence a ela. Para isto ser verdade, ou a Federação anexou lenta e gradativamente aquela região ao longo de décadas (dai a possibilidade de ser a razão) ou anexou de uma só vez (daí a possibilidade de ser o resultado).
Em qualquer destes cenários, a Federação está de posse de território cuja soberania está sendo contestada. No meu entender, a possibilidade de os cardassianos terem completa razão em pedirem os territórios de volta é alta, e eles podem estar dentro do seu total direito de reclamarem para si os setores os quais teriam sido seus. Vamos avaliar como isto seria possível.
Trailer original de “For the Cause”
Uma das características que se alega que a Federação tem é a de que, frente a uma situação injusta, a Federação seria do tipo de sociedade que pisaria firme para defender seus ideais, e defender aquilo que acredita que é o correto. Mas da mesma forma, ela seria do tipo de sociedade que, frente a se demonstrar que aquilo que ela está fazendo é errado, ela tem a grandeza de admitir que o outro lado está com a razão e então recua, em nome de garantir que as soluções mais corretas e mais justas sejam aquelas garantidas.
Vamos levantar as possibilidades de desfechos sobre as demandas cardassianas por ter aqueles territórios:
1. A Federação ter direito aos territórios e não os devolver: este seria o posicionamento mais digno e justo de a Federação ter, ou seja, ela saberia que está com a razão e ela pisaria firme pelo direito de proteger a legalidade de sua situação.
2. A Federação ter direito aos territórios e mesmo assim os devolver: este posicionamento demonstraria que a Federação seria uma completa e total inepta, uma nação de entreguistas controlada por políticos sem-espinha e defendida por bananas incapazes, os quais não teriam peito de pisarem firme por seus ideais.
3. A Federação não ter direito aos territórios e negar a devolução: embora nesta possibilidade a Federação pelo menos pisa firme por aquilo que ela acredita, ela estaria agindo de maneira abertamente arrogante, desonesta e imperialista, ao se recusar devolver para terceiros o território que claramente não lhe pertence.
4. A Federação não ter direito aos territórios e os devolver: nesta possibilidade, a Federação admite que errou em primeiro lugar ao ocupar território que não lhe pertencia, e aceita devolver este território a seus legítimos donos.
É de se notar que destes quatro cenários, o único no qual a Federação sairia sem nada contra si teria sido o primeiro deles, onde ela tem direito aos sistemas, e pisaria firme para garantir seus ideais e garantir uma situação justa. Contudo, como é cânone que dados territórios foram de fato devolvidos aos cardassianos, ou pelo menos trocados por outros, tanto este primeiro cenário como o terceiro estão fora de cogitação em ter sido aquilo que ocorreu. Restam o segundo e o quarto.
O segundo cenário, se foi aquilo que de fato ocorreu, mostraria de uma maneira clara e definitiva que a Federação realmente seria governada por um bando de clones do Nerville Chamberlein, e o Almirantado da Frota Estelar seriam realmente os Keystone Kops. Sem meias palavras, este cenário é simplesmente imbecil demais, mesmo para os padrões federados, de ser realmente aquele que corresponderia a realidade dentro do contexto onde o universo de Jornada ocorre.
Resta, assim, o quarto cenário, aquele o qual eu considero pessoalmente o mais provável que tenha ocorrido: ou seja, a Federação admitir que tudo bem, errou ao ocupar indevidamente aqueles setores anos antes, e errou ao criar colônias neles; desta forma, a troca de setores na criada Zona Desmilitarizada entre Cardássia e a Federação seria a tentativa federada de corrigir tais erros, e devolver determinados sistemas aos seus legítimos donos.
De todos os cenários, parece ser aquele que mais condiz com aquilo que se conhece sobre a Federação de Planetas Unidos. Ela poderia ter agido de maneira diferente e se recusar a devolver os territórios? Poderia, mas isto poderia ser bem mais incoerente com os valores federados – mas iremos falar mais sobre esta possibilidade ainda.
Portanto, são por estas razões e por esta avaliação e análise dos elementos cânones do arco Maqui que eu considero para o presente artigo o cenário em que a Federação não tinha direito sobre determinados territórios que ocupou na Guerra da década de 2350, e teve que concordar em sua devolução para os Cardassianos, por ser o cenário que eu acredito represente melhor a situação política que levou aos acordos que criaram a Zona Desmilitarizada e a gênesis da crise Maqui.
Aspectos da crise em contraste com elementos históricos reais
– Eu conclamo todos os oficiais e soldados franceses que estão na Grã-Bretanha ou eventualmente se encontrarem nela, com ou sem suas armas, para se juntarem a mim. Aconteça o que acontecer, a chama da resistência francesa não pode e não irá morrer.
— General Charles De Gaulle, em discurso na BBC em 18 de junho de 1940, que ajudou a originar os grupos da Resistência Francesa que viriam a ser conhecidos como os Maquis.
Embora eu não seja realmente grande fã de analogias como base de argumentação, há momentos em que elas servem bem para pelo menos ilustrarem um ponto, e existem duas em questão que se encaixam bem na atual análise da questão Maqui. Vamos a primeira delas, que se trata de uma comparação entre como poderia ter sido a Guerra Cardassiana/Federada da década de 2350, com a crise e guerra das Ilhas Malvinas, entre a Grã-Bretanha e a Argentina, no início da década de 80.
Inicialmente, vamos traçar alguns paralelos e equivalências:
Grã-Bretanha – Democracia parlamentar;
Federação – Democracia parlamentar.
Iremos considerar ambas como elemento “DEMOCRACIA”.
Malvinas – Território em litígio controlado pela democracia parlamentar;
Colônias na ZDM – Território em litígio controlado pela democracia parlamentar.
Iremos considerar ambas como “TERRITÓRIO”.
Argentina – Ditadura (em 1982), clama para si o controle do território próximo as suas fronteiras;
Cardássia – Ditadura, (em 2350s) clama para si o controle do território próximo as suas fronteiras.
Iremos considerar ambas como ambas como “DITADURA”.
Em dado momento (meados do séc 19 para um, meados do século 24 para outra), DEMOCRACIA, por já ter feito algumas incursões naquela área, e vendo que o TERRITÓRIO, embora clamado pela DITADURA e dentro de sua esfera de influência, não era muito usado pela DITADURA, se apoderou indevidamente do TERRITÓRIO por razões particulares a si, e posteriormente instalou colonos lá, que desde então se consideram plenos cidadãos de DEMOCRACIA.
Então, em outro dado momento (1982 e 2350’s), DITADURA invade a força o TERRITÓRIO; DEMOCRACIA repele o invasor, e mantém os seus colonos no TERRITÓRIO. Mas DITADURA justifica a invasão alegando que aquele território sempre foi por direito seu, mesmo que não o utilizasse em larga escala por algum período de tempo.
Até aqui, esta primeira analogia serve bem para ilustrar que se observando a questão por diferentes ângulos, tanto Cardássia quanto a Argentina tem alegações válidas para desejarem manter seu território, bem como a Federação e a GB. Tanto Cardássia quanto a Argentina alegam que aquele território sempre foi por direito seu, e fora tomado indevidamente –- uma alegação justificável e compreensível. Por outro lado, tanto a Federação quanto a GB alegam que possuem colonos assentados neste território aos quais seria injusto pedir que se retirassem de seus lares — também alegações justificáveis e compreensíveis.
Contudo, considerando que a posição britânica nas Malvinas não está no momento sob tanta ameaça, vamos então a outra analogia, na qual podemos encontrar uma necessidade real e imediata da retirada de colonos assentados em território ao qual a potência colonial necessita abrir mão: a questão israelense e palestina na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Para esta, consideraremos Israel e a Federação como “POTÊNCIA COLONIAL”, consideraremos os Colonos Judeus e os Colonos Maquis como “COLONOS”, e a Cisjordânia e Faixa de Gaza, e os sistemas planetários na ZDM Cardassiana iremos considerar como “TERRITÓRIO”:
POTÊNCIA COLONIAL está controlando o TERRITÓRIO depois de ter tomado seu controle em guerras anteriores, inclusive algumas em defesa própria contra agressões iniciais. Neste TERRITÓRIO, a POTÊNCIA COLONIAL incentivou pessoas a irem criar colônias. Então estes COLONOS, incentivados pela própria POTÊNCIA COLONIAL, ocuparam o TERRITÓRIO e nele construíram seus lares e criaram prósperas comunidades baseadas nos valores da POTÊNCIA COLONIAL.
Porém, um certo dia, a POTÊNCIA COLONIAL, para cumprir eventuais acordos de paz com os povos e nações que anteriormente controlavam o local, terá que retornar tais territórios para estes povos, e assim sendo, retirar os COLONOS que incentivou a irem para lá. Contudo, os COLONOS já deixaram claro que não desejam sair, embora isto seja necessário para a política externa da POTÊNCIA COLONIAL.
Neste ponto de ambas as analogias, chegamos no ponto em que as eventuais escolhas dos colonos britânicos nas Malvinas e dos colonos judeus na Cisjordânia poderiam vir a ser exatamente as mesmas as quais os Maquis tiveram que enfrentar. Particularmente para os judeus na Cisjordânia, uma vez que a retirada de Israel dos territórios palestinos ocupados é algo muito mais crítico para a geopolítica atual do que uma eventual retirada britânica das Malvinas.
Assim, os colonos judeus na Cisjordânia, como os colonos federados na ZDM Cardassiana, podem ter duas opções: ou eles se retiram com a sua POTÊNCIA COLONIAL, ou eles então aceitam ficar no local, mas não mais como cidadãos da POTÊNCIA COLONIAL, mas sim como cidadãos de um estado hostil a esta sua antiga POTÊNCIA COLONIAL.
No caso federado, eles não aceitaram nenhuma destas duas opções, e providenciaram uma espécie de terceira via: pegaram em armas, e passaram a agredir o estado hostil em questão (no caso deles, os Cardassianos), e após a intervenção da POTÊNCIA COLONIAL na questão (no caso a Federação), passaram a também agredir militarmente esta última, sua antiga nação.
Agora, no caso israelense, será que seria viável ou justificável, do nosso ponto de vista fora do universo de Jornada, acreditarmos que aquilo que seria o mais correto aos colonos judeus fazerem seria o mesmo que aqueles colonos federados que se tornaram Maquis fizeram? Será que seria viável ou justificável esperar o mesmo dos britânicos nas Malvinas, na improvável hipótese de que eles se vissem na mesma situação? Ou seja, além de passarem a atacar argentinos, seus navios e sua presença nas ilhas, passassem a atacar também britânicos que viessem interceder na onda de violência que se instalasse na região?
Haver a possibilidade de fazermos estes paralelos da crise Maqui com estas duas questões geopolíticas de nosso próprio universo demonstra bem como o arco Maqui provou ter um enorme potencial para estabelecer que todos os seus participantes, todos os lados envolvidos, maquis, federados e cardassianos, todos estes podem ter bons pontos a defender, e podem ter pontos nos quais estão errados e tem que cederem alguma coisa. Mas ainda retornaremos isto do potencial.
A Terra é um conhecido paraíso. E quanto as colônias federadas?
– Na Terra não existe pobreza, crime ou guerra – você olha para fora do QG da Frota Estelar e você vê um paraíso. Bem, é fácil ser santo no paraíso. Mas os Maquis não vivem no paraíso. Aqui, na ZDM, estes problemas ainda não foram resolvidos. Aqui não existem santos, apenas pessoas. Famintas, assustadas e determinadas a fazer o que for necessário para sobreviver, quer isto receba a aprovação da Federação ou não.
— Sisko, The Maquis, Parte 2.
Uma idéia muito difundida no fandom, que conta inclusive com o apoio de personagens dentro do próprio contexto do universo onde se passa a franquia, é que os políticos federados na Terra teriam dificuldades de solidarizarem com os colonos os quais estão prejudicando com suas decisões.
Contudo, eu nunca aceitei – e jamais aceitarei – este posicionamento de Sisko pelo valor da face. Antes de qualquer coisa, precisamos nos lembrar de que estamos falando da Federação, aqui. A mesma Federação que nos é vendida como sendo o ápice da conscientização social humana, a sociedade construída em cima dos melhores valores sociais que se pode imaginar aos quais um dia iremos evoluir, a sociedade a qual os aliens sempre parecem estar dispostos a ingressarem, tal qual um endosso desta superioridade social federada.
Então, como é que podemos aceitar que Sisko, ou quem seja, venha e faça um contraponto entre o “Paraíso da Terra” e “Colônias Federadas”, como se esta última fosse o absoluto oposto de um paraíso? Simplesmente não tenho como imaginar que a tão cantada em prosa e verso sociedade federada permitiria que suas colônias fossem tão, mas tão precárias que se poderia ter esta visão.
Se assim fosse, então onde é que estava toda esta indignação para contra esta situação precária em primeiro lugar? Se eles viviam em situações tão precárias, deveriam protestar contra. Como nunca protestaram (e já houve várias chances de saber através dos personagens se eles protestavam por isto, mas nunca aconteceu) podemos então assumir que não viviam tão de maneira tão ruim assim.
A vida colonial é dura, exige muito trabalho e suor? Tudo bem, isto ela pode ser. Exige sacrifícios e exige disposição? Também muito bem. Há problemas a serem endereçados? Também plenamente plausível. Mas sendo sociedades montadas nos valores sociais federados, e construídas com recursos federados, e sendo resultado de duro trabalho honesto, é de se imaginar que a vida nelas esteja longe de ser um antro subdesenvolvido, onde impera a violência, o desgoverno, a miséria e outras chagas sociais as quais dizem para nós que a Federação já se livrou.
Tais colônias certamente dispõem de todos os recursos tecnológicos a disposição da Federação, já que são colônias federadas. Tais colônias certamente são protegidas com o manto da justiça federada, com a segurança de não haver crimes e existem com os indicadores sociais federados, os quais devem indicar um padrão de vida digno. Assim, se a vida nas colônias não é nenhum paraíso, onde se precisa trabalhar duro, pelo menos possuem um modo de vida digno, justo e condizente com o que se espera de uma sociedade desenvolvida.
Trailer original de “For the Uniform”.
Portanto, o velho discurso “É fácil ser santo no paraíso” não serve de maneira alguma como argumentação para defender posições de “Ah, vocês não nos entendem” da parte dos colonos maquis para os políticos e militares na Terra. Se a Terra é um paraíso, as colônias que este paraíso espalha por ai também não devem ser nenhum buraco lamacento e sem-lei. Quantas pessoas hoje em dia, em nosso universo aqui, não considerariam a vida nas colônias federadas como um verdadeiro paraíso?
Desta forma, a fala de Sisko, ainda que soe linda e inspiradora, também não se sustenta por muito tempo frente a uma análise mais racional levando em conta a sociedade sobre a qual comenta. A Federação pode até não ser perfeita, sem dúvida que não é, mas da mesma forma os elementos até hoje nos apresentados sobre a Federação não combinam em nada com uma sociedade que permitiria que suas próprias colônias fossem tão ruins como Sisko parece assumir que seriam. Defeitos no ideal federado e no seu “Way of Life” podem ser encontrados de maneira muito mais eficiente e abundante em outros aspectos, mas certamente não muitos iriam estar na maneira pela qual as colônias existem.
Os colonos e as motivações relativas ao seu grupo social como um todo
– Olhe lá fora. [Eddington aponta um disruptor klingon contra Sisko, que afasta uma lona] Estas pessoas? Eles eram colonos em Salva Dois. Eles tinham fazendas, e lojas, e lares e escolas… então, um dia, a Federação assinou um tratado e entregou o seu mundo aos cardassianos… bem deste jeito. Eles tornaram estas pessoas refugiados da noite para o dia.
– Não é tão simples assim e você sabe disto. Estas pessoas não precisam viver assim… nós oferecemos realocação.
– Eles não querem ser realocados. Eles querem ir para casa para as vidas e lares que eles construíram.
— Eddington e Sisko, For the Uniform.
A paixão e o entusiasmo pelo qual os Maquis se pegam a sua causa é admirável, e merece uma avaliação mais cuidadosa. Ao longo de todo o arco, as raízes desta rusga foram estabelecidas meramente como sendo a questão do tratado com os Cardassianos. Assim, é importante considerar que na questão Maqui, jamais houveram razões ideológicas realmente profundas como motivação para o levante destes cidadãos federados contra seu governo.
Em momento algum do arco, jamais se estabeleceu que os participantes do movimento tivessem quaisquer divergências de cunho racial, religioso, econômico, social ou qualquer outro aspecto destes contra as políticas da Federação antes que a Federação tivesse o posicionamento que teve em relação ao acordo com os Cardassianos e sua entrega das colônias. Mesmo uma eventual tentativa de se aplicar a minha chamada “Velha Máxima”, sobre “Não ter sido visto em tela não quer dizer que não exista”, não é possível, pois houveram ao longo do arco inúmeros momentos onde a menção a estas outras questões ideológicas teriam sido adequadas ou até mesmo fundamentais, caso realmente tivessem existido.
Até como comentei anteriormente, não houve sequer uma eventual crítica a “Não Vivemos no Paraíso, Façam Algo” que existisse bem antes da questão da devolução surgir e ser colocada como eventual pano-de-fundo ideológico para motivação. Mas como vimos, nada disto ocorreu. Desta forma, considero seguro afirmar que nenhum daqueles rebelados federados realmente tinham rusgas ideológicas profundas contra a Federação além daquelas que se encaixam na questão de “Perdemos Nossos Lares” e “A Federação Nos Abandonou”.
Estas são de fato razões plenamente compreensíveis de um homem se rebelar contra um governo. Contudo, apenas por si mesmas, e considerando todo o contexto social onde tais homens estavam inseridos, também não querem dizer que torna tais razões completamente justificáveis, e assim, o levante Maqui pode, sim, ser questionado quanto a sua validade moral. Ele pode, sim, ter sido algo fundamentalmente errado de os colonos fazerem.
Enquanto estava tudo bem e tudo bom, supostamente não havia nada de errado com nenhuma política da Federação, como vimos. Não interessaria como e sob que circunstâncias a Federação teria conquistado aquele território, e se isto seria justo ou não, o que interessava para os colonos é que agora era território federado. Contudo, quando esta política colonial federada teve que ser revista, então nisto, e apenas e tão somente nisto, o levante Maqui surgiu com o discurso de “Opressores” e “Feddies Go Home”.
Nunca se tratou de ideologia, de se acreditar em ideais, de se questionar as tradicionais posturas e valores federados. Nunca se tratou de serem contra o eventual imperialismo federado. Tratou-se de que, quando as políticas federadas, com as quais sempre concordaram, passou a agir contra eles, só aí tais políticas aparentemente se tornaram imorais e questionáveis; só aí a Federação passou a ser vista como maligna. Ou seja, se tratou de eles terem perdido a ferramenta do imperialismo federado, ferramenta a qual eles nunca tiveram objeções algumas, e ferramenta absolutamente necessária para eles.
Pois segundo consta, o cidadão federado é alguém que está plenamente consciente de que o bem-estar do todo de sua sociedade é algo que deve vir primeiro, algo que deve se sobrepor aos seus próprios desejos e interesses pessoais. Atitudes egoístas e meramente em proveito próprio são conceitos que supostamente o típico cidadão federado já deixou para trás na evolução de sua sociedade. As necessidades da maioria se sobrepõem as necessidades da minoria… ou a de um só.
Mas, como alguns outros federados já nos mostraram, também existem situações onde a necessidade da minoria é a que se sobrepõe, e leva pessoas a cometerem atos que se pode classificar com traição por um ângulo, mas também como alta lealdade por outro. Assim, eu não quero dizer com esta análise que os posicionamentos dos colonos, se realmente aplicado como sendo algo que fizeram, tenha sido algo necessariamente ruim para a série, muito pelo contrário.
Poder haver uma leitura das atitudes dos colonos de modo a os retratar como humanos que tem falhas, humanos que tem agendas próprias e que podem desejar agir mais em seu próprio interesse do que no interesse de sua comunidade, supostamente o que se espera de bons federados, é de fato algo muito interessante e que ajuda a dar texturas mais palpáveis a estes humanos, e uma boa adição ao contexto social onde se passa o universo de Jornada. Mas são avaliações importantes de serem feitas.
Eddington e suas motivações pessoais
– Eu conheço você. Eu já fui como você, mas então eu abri os meus olhos. Abra os seus olhos, Capitão. Por que a Federação é tão obcecada com os Maquis? Nós nunca lhe fizemos mal. E mesmo assim nós somos constantemente detidos e acusados de terrorismo. Suas naves estelares nós caçam por toda a Badlands e nossos simpatizantes são assediados e ridicularizados. Por que? Por que nós deixamos a Federação, e esta é uma coisa que vocês não podem aceitar. Ninguém deixa o paraíso. Todos deveriam querer ser membros. Mas que diabos, vocês querem até os Cardassianos como membros. Vocês estão somente lhes enviando os replicadores pela certeza de que um dia eles irão ocupar o seu “lugar reservado” no conselho da Federação. Sabe, de certo modo vocês são piores do que os Borgs. Pelo menos eles avisam sobre seus planos de assimilação. Vocês são mais insidiosos. Vocês assimilam pessoas, e elas nem mesmo sabem disto.
— Eddington, For the Cause.
Como visto em “For the Cause”, o Comandante Michael Eddington, attaché de Segurança da Frota Estelar para DS9, traiu a Federação ao agir como o principal operativo Maqui na obtenção de replicadores industriais destinados para os Cardassianos, e conseguiu pegar todo o comando de DS9 com as calças na mão. Ao final do segmento, se despede de Sisko com um ótimo dialogo com ele, no qual inclui o monólogo acima.
Eddington levanta excelentes pontos neste seu discurso, inúmeros dos quais eu mesmo compartilho e concordo plenamente. Só que Eddington se pega em omissões e falácias para procurar argumentar suas justificativas. Ele afirma que os Maquis nunca lhes fizeram mal (para a Federação). Eles queriam deixar a Federação e ficarem onde estavam? Muito bem, mas da mesma maneira, aparentemente não queriam, ou não tinham como se tornarem cidadões da nação a qual estava chegando ali no local, Cardássia. O que fazem? Entram em conflito com os Cardassianos, e ainda que possam ter reagido como defesa, sabidamente também atacaram alvos civis e fizeram muito das suas. Com isto, quer desejassem ou não, eles tornaram a coisa um problema também da Federação, mas Eddington é desonesto e intransigente demais para admitir isto, uma vez que isto, obviamente, rasparia fora parte da santidade que quer aplicar a seu discurso.
Ocultar quaisquer motivações pessoais de Eddington antes de “For the Cause” era algo de se esperar, sem dúvida alguma, a fim de manter o elemento de surpresa sobre a traição de um dos tripulantes secundários da estação ao qual estávamos tão acostumados a encararmos como um leal operativo federado no time de Sisko. Em relação ao cerne da questão Maqui, não há realmente nada a considerar diretamente — Eddington não era um colono ou tinha relação direta com as colônias de alguma forma, então não tinha realmente nenhuma ligação pessoal com o levante.
Contudo, após Eddington claramente ser estabelecido como Maqui, poderíamos esperar um maior aprofundamento nas motivações que o levaram a ingressar no movimento… mas não muito mais temos além desta frivolidade mal embasada do seu discurso inicial, além também das reações dele à vendeta pessoal de Sisko contra si, coisa que ele interpreta como a obsessão federada em os perseguir supostamente sem motivação, como ele menciona em seu discurso.
Por ambos os episódios “For the Uniform” e “Blaze of Glory”, não temos rigorosamente nenhum indício que indique que o próprio Eddington tivesse um posicionamento ideológico fundamentalmente contra as políticas federadas anterior a todo o problema colonial com os cardassianos, da mesma maneira que para os demais Maquis, bem como outras questões fundamentais a sociedade federada a qual fizeram parte. Sim, tem a parte que ele comenta em seu discurso que “abriu os olhos”, mas omite qualquer outra questão mais específica que justifique suas ações, e no lugar disto apenas faz alegações vagas sobre assimilação disfarçada, em um ranço geral que, ainda que não tenha soado falso, soou claramente desprovido de real substância.
Pois é importante se considerar algo importante sobre tão badalado discurso: na parte em que ele compara a Federação ao Borg, ele já passou o que fala para um ponto que seria mais ideológico do que qualquer coisa, um ponto que é uma crítica a Federação em geral, e tal crítica, tal visão, é algo basicamente ideológico, e não há nenhum indício de que Eddington tinha sequer pensado a respeito disto antes de deixar a Federação. E ter se levado em consideração tais elementos teria sido algo a mais a se inserir não apenas no personagem, mas também no arco, e acredito que teria incluindo tintas ainda mais interessantes em ambos.
Há, claro, também o elementos de busca da glória de líder em tempos difíceis, sobre o qual Sisko especula em determinados momentos de “For the Uniform” e “Blaze of Glory”, e é um elemento que não pode ser ignorado. Sisko analisa a admiração que Eddington demonstra por Os Miseráveis, o romance francês escrito por Victor Hugo, e como há mais na comparação feita por Eddington a Sisko e o livro – o próprio Eddington se vê na mesma situação. Eddington quer partir de modo grandioso, de modo significativo, e isto principalmente poderia ser incentivado por sentimentos ideológicos, ou egocêntricos. Como o primeiro é algo que tanto a causa Maqui como Eddingtontoda carecem, ficamos com o aspecto de glória pessoal para satisfazer o próprio ego, que Eddington pinta com tintas nobres a associar isto a uma causa maior.
A incapacidade federada em lidar com o problema Maqui
– Capitão, o senhor alguma vez lembrou a Frota Estelar de que eles colocaram Eddington aqui em DS9 porque eles não confiavam em mim?
– Não.
– Faça isto, por favor.
— Odo e Sisko, For the Uniform.
Ao longo de todos os episódios relacionados a crise Maqui, desde “Journey’s End”, em A Nova Geração, a Federação demonstrou uma incrível capacidade de meter os pés pelas mãos em tratar do problema, e de muitas maneiras, em uma situação onde tinha que optar por uma decisão entre várias possíveis, ela sempre optava pela pior possível, especialmente nas situações em que todas as opções eram de certa forma ruim.
Em situações deste tipo, havia muitos personagens que consideram que a Federação, já que está frente a isto, uma situação onde não há saída, onde todas as opções colocam a Federação em uma posição desfavorável, então ela deveria ir pelo menos pela opção que satisfaz o seu próprio pessoal. Por este ângulo, eu poderia entender a eventual seguinte opção federada: “Embora poderia admitir que estivesse errada inicialmente sobre ter ocupado aqueles setores, o que aconteceu, aconteceu. Assim, a Federação deveria escolher lutar ao lado de seu povo, ao invés de abandoná-lo, e deveria fazer isto quer estivesse certa ou errada a respeito do real direito sobre as colônias. A defesa do seu pessoal ali deveria se sobrepor a isto tudo.”
Este posicionamento — basicamente o mesmo do cenário número 3 que discutimos anteriormente neste artigo — embora eu pessoalmente o consideraria inadequado, seria um posicionamento no qual a Federação pelo menos teria a decência de pisar firme por algo em que acreditaria ser aquilo que deve prevalecer em relação a toda a situação, algo nas linhas de “Sim, teria sido errado ocupar as colônias em primeiro lugar, tudo bem, mas a esta altura do campeonato, mais errado ainda seria abandonar os colonos, então não iremos ceder”. E assim, federados e colonos, conscientes de sua escolha, certa ou errada, enfrentassem juntos e firmes as conseqüências de seus atos.
De muitas formas, isto seria semelhante ao que Israel tem feito ao longo dos anos, desde que ocupou a Cisjordânia após a Guerra dos Seis Dias, em 1967: embora se pode constatar claramente que a ocupação é ilegal após se fazer uma avaliação racional da situação, e assim tal situação é condenada pela comunidade internacional, Israel também não pode negligenciar o fato de que, tenha sido certo ou errado, colocou colonos no local e tais colonos fizeram ali seus lares. Retroceder agora e entregar sem mais nem menos o controle da região para os Palestinos é colocar aos colonos a seguinte situação: ou deixam seus lares e retrocedem para Israel, ou ficam no meio de um estado que é hostil a sua presença ali. Basicamente, a mesma situação na qual a Federação colocou os seus próprios colonos. Eu não tenho como concordar com esta eventual posição e racionalização da situação, mas entendo quais poderiam ser os sentimentos que poderiam levar a ela.
Posteriormente a implantação do tratado, inúmeras vezes a Federação também demonstrou não saber lidar adequadamente com o conflito que resultou desta decisão. Particularmente aos últimos três episódios do arco, Eddington percebeu claramente que Sisko estava levando suas operações contra os Maquis, particularmente se voltando contra ele, mais por questões pessoais do que qualquer outra coisa, como desejar que uma situação estável retorne a região. Apesar disto, em um raro surto de bom senso, o Almirantado Federado faz com que o Capitão em comando das operações contra Eddington mude, para o Capitão Sanders. Contudo, mesmo esta mudança de comando não melhora a situação, e depois, a Federação não tem como impedir que Sisko retome as rédeas, e também não demonstram reservas a esta atitude ou as suas táticas.
Com a sua expertise prévia em procedimentos federados, Eddington sem dúvida utiliza isto muito bem a seu favor, aproveitando-se da suprema incapacidade e incompetência federadas de conseguirem coordenar o que quer que seja, para com isto dar um baile nos operativos federados enviados contra ele, e na turma da Defiant em particular. O que não quer dizer, é claro, que esta inaptidão federada em lidar adequadamente com a crise não tinha como virar-se contra ele. É o que de fato ocorre, com a iniciativa de Sisko em utilizar ele mesmo armas de destruição em massa contra as posições Maquis na Zona Desmilitarizada. Eddington desdenha da ameaça de Sisko como quem chama o seu blefe, mas o Capitão federado mostra-se impassível e plenamente firme e decidido, e Eddington pode reconhecer a seriedade de Sisko.
Chega a ser irônico, de muitas formas. Desde as mais remotas raízes da crise, vindas da Guerra Cardassiana da década de 2350, a Federação demonstrou uma capacidade sem igual de meter os pés pelas mãos e fazer as piores escolhas possíveis, mesmo em cenários onde só haviam escolhas ruins. E agora, no apagar das luzes da crise, ela se vê frente a uma situação onde um oficial de campo seu se valeu de armas de destruição em massa, sem sequer ter a mais ínfima autorização do governo federado para isto. E como visto ao final de “For the Uniform”:
– Benjamin, eu estou curiosa… o seu plano de envenenar os planetas maquis… você não providenciou a autorização com a Frota Estelar primeiro, providenciou?
– Eu sabia que tinha esquecido de fazer algo.
— Dax e Sisko, For the Uniform.
Sisko sequer considera as eventuais conseqüências de seus atos, e sequer demonstra preocupação aqui neste momento com Dax. O resultado final é o que importa, e quanto a trâmites e considerações burocráticas, isto não o vai impedir de agir firme — é como se ele já soubesse de antemão que a Frota Estelar e o governo Federado não vão fazer absolutamente nada em relação a esta sua atitude. Duas hipóteses para esta aparente segurança demonstrada nesta cena: ou ele sabe que seus superiores são realmente um bando de bananas-sem-espinha que controlam um governo criminalmente omisso, e cuja opinião pública é composta de uma população apática e desinteressada, ou então ele sabe que estes mesmos superiores concordariam com o seu uso de armas de destruição em massa da maneira que fez, e não se opõe a uma situação em que a decisão de se usar tais armas está meramente com o comandante local. Ambos os casos não são atitudes moralmente justificáveis por Sisko e/ou pelo governo federado, para se dizer o mínimo.
“Ah, mas ninguém se feriu”, “Ninguém foi morto”. Verdade. Mas isto não muda o fato de que Sisko empregou armas de destruição em massa sem a autorização do governo federado, e absolutamente nada foi demonstrado como conseqüência deste ato, que supostamente deveria ser questionado por este governo. Mas, como de praxe, nada temos vindo do apático e ausente governo federado, e querer se racionalizar a decisão de Sisko e a falta de conseqüências a ela como algo justificável nas bases do “Ah ninguém morreu” é ignorar completamente as razões que fez da atitude de Sisko algo moralmente questionável em primeiro lugar.
O Embate entre Eddington e Sisko
– Sabe qual é o seu problema, Capitão? Você está levando isto para o lado pessoal. Não tinha que ser assim, isto não era sobre mim… eu não tenho antipatia ou ressentimentos contra você.
– Eu gostaria de poder dizer o mesmo.
– Realmente vale a pena arriscar a você mesmo, sua nave… sua tripulação… em uma vendeta pessoal? A Frota Estelar aprovaria?
— Eddington e Sisko, For the Uniform.
De muitas maneiras, a interação entre Eddington e Sisko, entre o final de “For the Cause” até o final de “Blaze of Glory” serve como um microcosmos de todo o arco, e das posições federadas e maqui nas questões da crise. Sisko segue um senso de dever racional para encarar o problema, mas sem perder de vista que de certa maneira, os maquis tem suas justificativas para lutar. Seu senso de dever contudo não faz com que ele abandone a sua convicção de que a solução federada encontrada é a que deve ser mantida, apesar de seus problemas, e a medida que o problema avança, a resolução deste se torna uma obsessão para si. Eddington, por outro lado, olha a crise toda como uma causa completamente justificável a ponto de ficar admirado em constatar que podem existir pessoas que pensam diferente do que ele, e para garantir a suposta validade moral daquilo que defende, faz racionalizações imprecisas e baseadas em falácias, ignorando aspectos específicos de todo o problema, no caso destes aspectos atrapalharem suas intenções de defesa de causa grandiosa.
Sem dúvida, a interação entre estes dois personagens é o ponto alto destes três episódios em particular. Temos um Eddington completamente diferente daquele que costumávamos ter, que até então fazia sua participação nas tramas de uma maneira tão neutra e tranqüila que praticamente soava como ruído branco. A isto, se contrapõe as reações de Sisko, e embora ele siga no seu melhor e não perca o rebolado em momento algum, Sisko não conseguia pegar o Maqui de guarda abaixada de modo a ele estar com a iniciativa – quando Sisko finalmente conseguiu isto, com a sua própria utilização de armas de destruição em massa, não hesitou em momento algum a aproveitar a oportunidade para o golpe final do embate.
Posteriormente, ele soube conduzir melhor sua interação com Eddington na missão de parar os supostos mísseis maquis. E embora “Blaze of Glory” não tenha sido realmente o melhor dos três episódios (“For the Uniform” o é), o seu diálogo com Eddington durante a missão está entre os melhores momentos entre os dois adversários, e um dos melhores de Sisko no geral. Mas embora Sisko estivesse sob controle da situação, isto não impediu Eddington de ter uma surpresa escondida no final, claro, ao revelar que aquele ardil todo era meramente um plano B para resgate de eventuais sobreviventes maquis. No frigir dos ovos, ao final de “Blaze of Glory”, Sisko foi quem restou de pé na arena, mas com um sentimento de “Bem jogado, Eddington, bem jogado” do que um nas linhas de “Eu venci, e na sua cara!” Uma pena realmente que “Blaze of Glory” seja realmente o final das possibilidades de interação entre dois tão fantásticos e bem construídos personagens.
Conclusões
– É isto, então, o fim dos Maquis?
– Quem sabe? Poderia haver mais deles aí fora… se escondendo do Dominion, ganhando tempo…
– Você quase parece demonstrar esperança por isto.
– Há sempre algo de atrativo sobre uma causa perdida.
— Dax e Sisko, Blaze of Glory.
Com “Blaze of Glory”, chegamos aos atos finais do arco Maqui. Dentro do contexto onde existe o universo de Jornada nas Estrelas, o que teria sido do movimento deste ponto em diante? Como podemos ver nesta quinta temporada de Deep Space Nine, quando Cardássia se juntou ao Dominion, uma das primeiras coisas que eles fizeram foi varrer do mapa toda a presença Maqui nos territórios que compunham a até então Zona Desmilitarizada, tal qual Dukat afirmou que faria.
Não posso comentar muito mais para poupar o artigo de “spoilers”, mas é suficiente dizer que, considerando o contexto em que o desfecho da guerra irá ocorrer, as razões mais básicas para a crise Maqui terão desaparecido, e também pela já comentada falta de raízes ideológica realmente profundas, o movimento como um todo teria chego a seu fim definitivo, restando eventualmente apenas células isoladas aqui e ali, com zero de força política ou relevância.
Em Voyager, a situação terá sido semelhante – o fato de a questão Maqui ter sido deixada de lado nesta série até bem antes do arco Maqui ter sido resolvido em definitivo em Deep Space Nine acaba sendo algo que ajuda a demonstrar como teria sido efêmero e circunstancial as motivações para o levante, o qual sempre teria carecido de raízes mais profundas.
Todos estes aspectos que debati aqui neste artigo teriam sido intencionalmente desenvolvidos pelas diversas equipes criativas que trabalharam com tramas Maqui? Difícil dizer, e muito provavelmente não. Contudo, isto está longe de ser algo indesejável, muito pelo contrário. Sem dúvida alguma que houve uma clara intenção de mostrar os federados por ângulos mais cinzentos, de maneira a demonstrar que mesmo os nobres federados são capazes de atos duvidosos. Só que como podemos ver, não foi apenas isto que foi possível se retirar deste excelente arco que agora termina. O arco Maqui teve tantos elementos interessantes e tantos aspectos ricos em possibilidades, que foi possível se desenhar um contexto onde realmente todos os participantes poderiam ter aspectos sombrios e motivações desprezíveis, incluindo os maquis; e todos os participantes poderiam ter justificáveis e boas posições, incluindo os cardassianos.
Trailer original de “Blaze of Glory”
O resultado foi um claro “no-win scenario”, especialmente para a Federação, ou seja, um caso onde não importa qual seja o resultado, qual seja a decisão tomada, alguém tem que ceder e alguém tem que ficar desgostoso, e não interessa o quão “evoluídos” eles fossem, eles não conseguem encontrar maneira de satisfazer a todos, de encontrar a solução pacífica ideal. Resta se debater a respeito de qual saída é a menos pior, e exatamente isto é uma das coisas que ilustram bem todo o potencial que o arco Maqui teve, e o qual infelizmente não foi desenvolvido a este total potencial.
E havia potencial para o arco ter sido muito mais explorado, sem dúvida alguma. Infelizmente, através do desenvolvimento geral de Deep Space Nine, o arco Maqui foi sendo gradativamente deixado de lado para dar lugar ao arco que mostrou a Guerra com os Klingons durante a quarta temporada, arco este que foi um elemento do arco maior que levou a Guerra Dominion, tão cantada em prosa e verso através do fandom como o ponto alto de Deep Space Nine, e uma das razões, senão a principal, desta série ter a qualidade que tem.
Contudo, eu não compartilho desta opinião sobre o arco da Guerra Dominion. Enquanto conflito político, econômico, social e militar, o arco da Guerra Dominion foi muito mal desenvolvido, e acredito foi uma enorme perda de tempo que desviou Deep Space Nine de caminhos que teriam sido ainda mais proveitosos para a série, onde ela teria tido ainda mais qualidade. Embora a quinta, sexta e sétimas temporadas de Deep Space Nine tenham tido inúmeros excelentes episódios, muitos destes ligados diretamente bem ao arco Dominion, eu considero que isto se deu quase que exclusivamente aos pontos fortes gerais de Deep Space Nine – o desenvolvimento dos personagens, e as maneiras pelas quais eles interagem entre si frente as situações que tem que conviverem. Embora a guerra em si os tenha colocado nas situações que enfrentaram, ela em si enquanto arco de trama não foi boa, e não aproveitou Deep Space Nine a todo o seu potencial, pois estes pontos fortes da série já estavam cristalizados muito antes do arco Dominion tomar para si todo o oxigênio do ambiente.
Pois como sempre tenho dito, Deep Space Nine foi uma série cuja qualidade foi bem mais constante do que se costuma considerar. Sim, a série teve um aumento na sua qualidade das primeiras temporadas para as últimas, mas este crescimento foi bem mais suave e gradativo do que se costuma acreditar. Não considero suas primeiras temporadas de modo algum fracas, especialmente a segunda e terceira, e as temporadas seguintes, boas que são, também não são o ápice de qualidade máxima que o fandom costuma considerar. O arco Maqui e seus elementos relacionados colaboram muito nesta minha visão geral da qualidade de Deep Space Nine, uma vez que a maioria de seus elementos estão concentrados nas primeiras temporadas da série.
Uma situação onde o arco maqui fosse desenvolvido a todo o seu potencial, poderia nos ter oferecido um ótimo e constante campo para forte desenvolvimento de personagem, teria tido elementos de trama com forte peso social e político, tudo isto elementos pelos quais Deep Space Nine é conhecida e aclamada, e também teríamos tido todas a considerações sobre exploração da fronteira final pela qual Jornada nas Estrelas em geral é aclamada. Mas, ao invés disto, tivemos a Guerra Dominion. Bem, já que é o que resta, então vamos a ela.
Artigo originalmente publicado no conteúdo clássico do Trek Brasilis.