Conheça a edição original do piloto “Where No Man Has Gone Before”, que convenceu a NBC a comprar a Série Clássica.
Prepare-se agora para mergulhar na Pré-História do franchise. Estamos de volta a 1965, ano em que foi produzido o piloto que convenceria a rede NBC a bancar e exibir em sua programação a nova série de Gene Roddenberry.
Todo mundo conhece a velha história da gênese de Jornada: Gene bateu de porta em porta, vendendo seu conceito de “Caravana” para as estrelas, um equivalente futurista da conquista do Oeste americano. A Desilu, na esperança de recuperar seu prestígio, decidiu apostar na idéia, e, junto a Roddenberry, saiu atrás de uma rede que quisesse exibir o programa. A NBC acabou aceitando, e encomendou um piloto para a série.
Este, hoje conhecido como “The Cage”, foi concluído em 1964. Ao assistirem, os executivos da NBC acharam maravilhoso, mas não era isso que Gene havia prometido quando explicou seu conceito. Em vez de aventura e muita ação, temos muito diálogo e filosofia. Mesmo assim, os engravatados estavam impressionados. Por isso, decidiram inovar e encomendar à Desilu não a série, mas um segundo piloto, que os ajudasse a decidir se valeria a pena ir adianta com aquela “jornada”.
O segundo piloto, já com boa parte do elenco que acabaria se fixando durante a série (dos sete regulares, DeForrest Kelley, Walter Koenig e Nichelle Nichols estavam de fora), ganhou o nome de “Where No Man Has Gone Before”. Depois de James Kirk dar belos socos e pontapés em Gary Mitchell, a NBC ficou satisfeita com o grau de adrenalina, e encomendou mais episódios.
“The Cage” não pôde ser reaproveitado como um episódio regular da série, pois muitos elementos (a começar pelo capitão) eram diferentes do que viria quando o programa entrasse em produção semanal. Já “Where No Man Has Gone Before” estava muito mais próximo do resto da série, de modo que acabou vendido como mais um dos episódios disponíveis da primeira temporada.
Obviamente, ao incluir o piloto aos outros episódios, algum trabalho de edição precisou ser realizado para adequá-lo ao resto da série, incluindo a inserção da abertura criada posteriormente para a série, dos letreiros de créditos e a reedição do episódio para que ele ficasse no tamanho exato do tempo de exibição disponibilizado pela NBC.
Todos conhecemos o resultado dessa edição, mas o que teria sido feito da edição original, aquela que convenceu os executivos da NBC que Jornada poderia ser um sucesso? Apesar de raríssimo, esse documento tão importante da história do franchise acabou indo parar nas mãos dos fãs, provavelmente depois que um deles conseguiu fazer uma transferência para vídeo a partir do rolo de filme 16 mm original.
Como o leitor pode imaginar, cópias de cópias foram feitas ao longo dos anos, de modo que alguns poucos felizardos ao redor do mundo possuem essa versão. Graças ao incansável pesquisador de Jornada e colaborador do Trek Brasilis Gustavo Leão, uma cópia veio parar em nossas mãos, e a primeira coisa que fizemos foi compilar tudo que não aparecia na edição exibida pela televisão.
Na maior parte do episódio, a edição é praticamente igual nas duas versões. As grandes mudanças estão mesmo no início e nos créditos finais.
Jogo dos sete erros
O início deste episódio, assim como os letreiros usados, não tem nada em comum com o padrão a que nos acostumaríamos durante a série. A fonte de letras usada para grafar as palavras “Star Trek” e os créditos é a mesma que pode ser vista nas diversas versões de “The Cage”.
A versão original de “Where No Man Has Gone Before” começa de forma bastante poética, com uma visão do que supostamente seria a Via Láctea, e Kirk fazendo uma entrada em seu diário. A função da narração é introduzir o conceito da série ao telespectador, de forma muito similar ao que a abertura faria nos episódios regulares.
Vê-se aqui o que claramente é a gênese do tom usado no início de cada episódio regular, com algo próximo do estilo “audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve”. Na versão original, Kirk narra o seguinte:
Diário da Enterprise, capitão James Kirk comandando.
Estamos deixando a vasta nuvem de estrelas e planetas que chamamos de nossa galáxia. Atrás de nós, Terra, Marte, Vênus –até nosso Sol– são traços de poeira.
A questão: o que há lá fora nesse vazio negro adiante?
Até agora, nossa missão foi a de regulação de lei espacial, contato com colônias terrestres e investigação de vida alienígena. Mas agora, uma nova tarefa: uma sondagem lá fora onde nenhum homem jamais esteve.
Após a entrada, surge o letreiro “Star Trek”, seguido por “Created by Gene Roddenberry” e concluindo com “Starring William Shatner”. Os créditos para todos os outros atores surgem já durante a execução do episódio.
A versão original divide a série em atos, claramente demarcados por letreiros na tela. Especula-se que o uso desse recurso tenha sido muito mais para convencer os executivos de que aquele era um drama sério, e não um show para crianças, do que para qualquer propósito de edição final ou estilização da série.
O início do primeiro ato é o que todos conhecemos: Kirk e Spock jogando xadrez quando Kelso informa, por uma tela, que a Enterprise encontrou uma sonda da nave terrestre Valiant perdida no espaço. A dupla vai até a sala de transporte, onde surge o letreiro indicando o nome do episódio, com direito a uma óbvia chamada “Tonight’s episode: Where No Man Has Gone Before”.
Assim que Kirk e Spock saem da ponte, após pôr a nave em alerta, surge a maior mudança em termos de edição deste episódio com relação à versão exibida na TV. As cenas em que os tripulantes andam pelos corredores é muito mais longa, e já nos permite um belo insight sobre os personagens a que seríamos expostos em breve.
Vemos Gary Mitchell paquerando duas mulheres em seu caminho pelo turboelevador, e já demonstrando uma certa atitude que parece dizer sutilmente “Ah, se eu pudesse…” –um sinal bastante claro do que aconteceria ao pobre Mitch durante o episódio. Uma das “vítimas” é a ordenança Smith, cujo papel se resumia a uma única fala durante todo o episódio.
(Abrindo um parêntese, a fala solitária da ordenança Smith é uma das mais bem sacadas e obscuras piadas internas da série. Normalmente, entre os roteiristas de televisão existe o costume de nomear personagens que aparecem em um roteiro para fazer apenas uma ou duas intervenções de “Jones” ou “Smith”, para evitar o trabalho de pensar em um nome que provavelmente nem será dito. Em “Where No Man Has Gone Before”, Kirk topa com a ordenança na ponte e diz, “Ordenança… Jones?”, ao que a pobre oficial responde, com o orgulho ferido, “O nome é Smith, capitão”).
No corredor, também temos a chance de ver o doutor Piper e o então físico de bordo Sulu se dirigindo à ponte. Após outras cenas cheias de figurantes nos corredores, logo voltamos ao curso normal do episódio, com Gary quase perdendo o turboelevador que levaria Spock e Kirk à ponte.
Daí em diante o episódio é exatamente o mesmo que o exibido na TV, e a única outra mudança vem nos créditos finais, em que novamente a fonte dos letreiros é a vista em “The Cage”, e a sequência é muito mais rápida do que a dos episódios regulares, listando apenas os atores convidados e o estúdio Desilu. No total, o episódio é apenas ligeiramente mais longo que a versão exibida nas televisões do mundo todo, mas são segundos a mais que tornam-se mais preciosos a cada ano que passa, restaurando a história desta imortal série de televisão.
Artigo originalmente publicado no conteúdo clássico do Trek Brasilis em comemoração aos 35 anos de Jornada nas Estrelas.