O produtor da série Battlestar Galactica, Ronald D. Moore, concedeu uma longa entrevista ao site TrekMovie, onde falou, entre outras coisas, sobre Jornada nas Estrelas, a franquia na qual trabalhou por muitos anos. Nessa primeira parte, ele comenta sobre os desafios de criar algo novo para as séries A Nova Geração, Deep Space Nine e Voyager e estabelecer continuidade para os episódios.
A terceira temporada de A Nova Geração foi considerada como ponto central para a mudança da série, quando Michael Piller assumiu o comando. Vocês tinham consciência de que deveriam mudar o rumo dela?
Moore: “Sim. Creio que Michael assumiu isso como seu mandato. Não sei se foi a mando de Gene (Roddenberry), que ainda estava envolvido na produção, até aquele ponto. E Rick (Berman) que estava no lado da produção, naquela época. De modo que eram Michael, Gene e Berman que estavam levando a série, naquele período. Não sei se foi ordem de Gene para mudarem as coisas. Mas creio que Michael, como roteirista, não estava satisfeito com o rumo que a série estava tomando nas primeiras duas temporadas e queria fazer muito mais pelos personagens da Enterprise e tê-los com histórias individuais. Ele, de qualquer maneira, forçou o debate. Criou histórias que mostravam muito mais os personagens do que a do tipo planeta da semana”.
Piller criou a expressão “caixa de Roddenberry” referindo-se as regras de Gene para a franquia, em que não havia a ambição, onde as pessoas eram perfeitas e coisa e tal. Essa caixa limitou você como escritor?
Moore: “Eu acho que todos nós ficamos limitados. Havia um consenso geral na sala dos roteiristas de zombar da noção de que não havia as insignificantes invejas, ambições e tudo mais. Nós lidamos com isso em nosso dia-a-dia, achamos modos de contornar, e de atravessá-las com os variados graus de sucesso. Foi um problema constante, que apenas nos chateava. Nunca fez nenhum sentido lógico ou dramático. Apenas não era o sentido lógico por onde Jornada estava seguindo. Eu sempre disse que a série original nunca foi assim. A série estava repleta de problemas com a humanidade, cheia de invejas, disputas e mesmo os preconceitos raciais eram vividos no século 23. No episódio “Balance of Terror”, o personagem Stiles estava evidentemente sendo preconceituoso com Spock, apenas porque ele era vulcano. E esse não é o único exemplo. Ela (a série original) contribuiu para o drama, para o conflito. Isso fez o mundo funcionar. Desse modo, quando você tenta remover isso, fica muito difícil contar histórias, porque você tem de voltar e fazer as pessoas mais amáveis, pessoas que não poderiam ter conflitos verdadeiros, tornando-se árduo escrever para a série em qualquer sentido dramático. Nós estávamos sempre reclamando sobre isso.
Minha teoria é de que Gene começou a acreditar nele mesmo mais como um visionário do que como um roteirista, em certo ponto. Ele acreditava que o material que começava a criar era uma utopia futurista e queria que o universo de A Nova Geração fosse o reflexo desse universo utópico. Assim, o novo projeto começou a se tornar menos do que um drama, menos sobre fazer uma série para TV, e mais sobre servir esta idéia de que o utopismo será verdadeiro e de que essa humanidade perfeita do futuro serviria como exemplo para as nossas vidas, em oposição a se fazer uma grande série de TV”.
Você acha que o produtor de Deep Space Nine, Ira Steve Behr, desconsiderou a caixa para essa série?
Moore: “Ira tinha uma grande propensão para jogar a caixa fora, mas sabíamos que não poderíamos fazer isso. Poderíamos apenas achar um jeito criativo de contorná-la. Não iríamos salvar o universo de Jornada destruindo-o. Tivemos de manter as coisas nos seus lugares, porque eram os fundamentos que Gene tinha construído. E aí achamos um modo de rodeá-la tanto quanto possível. Por exemplo, como não há nenhuma religião no futuro, nesse ponto, embora a série original tivesse um capelão na nave; ao fazer A Nova Geração, Gene decidiu que nenhum de nós acreditaria nas grandes religiões da Terra, no século 24. O que parece um absurdo elas terem apenas sumido”.
Vocês trabalharam muito em cima da continuidade das histórias, o que foi algo novo nos anos 90 para as séries de TV e certamente para Jornada. Você viu isso como algo bem vindo? Como foi esse processo?
Moore: “Eu me lembro quando discutimos o fim do episódio “Sins of Father”(A Nova Geração), onde o arco Klingon realmente começou e Worf deixa o mundo Klingon em desonra. Eu estava com Rick (Berman) e Michael (Piller) no escritório e disse para eles que queria deixar a história nesse tipo de final incerto, na qual poderíamos voltar a qualquer hora e Rick concordou. Isso abriu uma porta para fazermos esses grandes arcos, mas não creio que isso seja visto como a coisa mais importante ou a guinada para a mudança. Mas nós prosseguimos e com a ênfase do Michael em fazer mais o personagem desenvolver-se, inevitavelmente empurramos a série para a direção em que a continuidade ficasse mais estreita e quase começamos com arcos de mini-histórias. Quando você começa a desenvolver relacionamentos entre os personagens, querendo continuar na próxima história, os escritores devem começar a pegar um tópico que foi estabelecido três episódios antes. Aí você começa a entrar numa pequena batalha. Deve ter conhecimento dos lugares onde fez anotações anteriores e perceber que “isso é muito serializado, ou isso nós não serializamos”.
Por outro lado, o estúdio queria passar para syndication os episódios na ordem que ele bem entendesse e nós ficamos nas mãos dessas emissoras. Se elas quisessem correr com episódios fora da sequência, nós não podiamos posicioná-los onde eles têm de estar, assim paramos depois de fazer isso. Na verdade, nunca paramos de fazer esses arcos definitivamente. Nós os mantivemos de forma dissimulada, tentando fazer mais de um arco, porque é mais interessante para o roteirista. Uma vez que você decida isso sobre os personagens, fica difícil não fazê-lo mais serializado e mais com continuidade. O relacionamento entre Riker e Troi nesta semana, por exemplo, se você mudar o episódio na próxima semana, não parecerá refletir o que você viu, não fará sentido. A Enterprise consegue ter uma trama com alguns aliens, eles têm algumas crises, a Enterprise vai embora e nunca mais os vemos de novo. Mas os personagens mudam todas as semanas, de modo que qualquer mudança que faça para os personagens, a audiência espera e os escritores querem brincar com eles na semana seguinte. Então havia essa tensão entre criar personagens mais direcionados e a pressão de não fazer mais serializações. Nós apenas acertamos nessa linha de variar os graus de sucesso”.
Nessa linha de tensão, em relação a Deep Space Nine, isso não ficou mais relaxado? Por que esta série seguiu com a serialização para o ponto em que havia quase longos arcos de temporada?
Moore: “Bem, eu acho que ela foi construída de uma maneira que não foi feito com as outras séries. A natureza da própria série era de uma estação espacial que não vai para lugar algum, desse modo as histórias tendem a não se afastarem dali. A Enterprise, como disse anteriormente, poderia alcançar um planeta, ter um episódio e ir embora. Já com Deep Space Nine, qualquer coisa tomava lugar na estação. Na próxima semana você ainda estava na estação. E Bajor não estava indo para lugar algum. Então, você teve de realmente brincar com essas histórias. Não poderíamos fazer uma grande estrutura política em Bajor, numa semana, e ignorá-la na seguinte. Nós tivemos de continuar. A história de Kira e seu relacionamento com os bajorianos, tivemos de manter o envolvimento, assim como Sisko. Eles tiveram uma missão de longo prazo, uma missão sobre Bajor dentro da Federação. As (naves) runabouts tinham como finalidade, no início, dar a eles a chance de sairem da estação e fazerem episódios solitários. Eles ficaram fazendo isso pelas temporadas, mas os fundamentos da série estavam sempre na estação e a estação mantinha todas as linhas das tramas ao redor de si. Essencialmente, Rick (Berman) e o estúdio, de um certo modo, largaram de mão e desistiram dela para concentrarem-se em Voyager. Então, nós fizemos o que queríamos nesse ponto (sorrisos)”.
Não parece irônico você ter dito nos anos 90 para pôr mais continuidade em Jornada e agora dizer que existe muita continuidade na franquia?
Moore: “Eu concordo que seja irônico. Quando comecei, eu me lembro que havia três temporadas da série original, seis filmes e duas temporadas de A Nova Geração. Não era difícil manter tudo isso adiante. A gente podia sentar na sala dos roteiristas e ter tudo aquilo na cabeça. Até o fim de A Nova Geração nós fomos capazes de fazer desse modo. Mas quando entramos mais fundo em Deep Space Nine, isso tornou-se mais e mais difícil de fazer. Quando Voyager começou e estávamos seguindo paralelamente com Deep Sapce Nine, todos começamos a ficar um pouco que malucos, porque como escritor eu queria ser capaz de criar coisas naquele momento. Queria ver um personagem conversar sobre uma experiência que teve. Ser capaz de introduzir um capitão de nave numa cena e deixá-los conversarem sobre uma missão que eles tiveram vinte anos atrás e relembrarem o encontro com um embaixador romulano num certo posto avançado, tendo uma estranha aventura. Queria ser capaz de inventar isso. Mas o ponto é que quando você inventa uma cena desse tipo vem alguém e diz: “Me desculpe mas há vinte anos atrás o embaixador romulano não deveria estar lá“. Você poderia replicar que trocaria por um embaixador Tholiano, mas diriam que o episódio tal de Voyager determina que tholianos estariam acabados. Aí você começa a pegar histórias engaioladas, anedotas e histórias pessoais e tendo de preenchê-las dentro de um vasto mapa com todos esses pontos de interceção de continuidade e isso torna-se inacreditavelmente encamisado.
A carência de criatividade é profunda e você começa a se preocupar mais e mais sobre disfarçar as linhas do que fazer novas e cativantes histórias. Além do simples fato de que você não pode manter isso ordenadamente. Começamos a ter conselheiros técnicos nos cenários, no departamento de arte, como os Okudas, que mantinham a continuidade para nós. Embora eles tenham se tornado muito úteis, é frustrante estar na sala dos roteiristas e desejar escrever histórias, para então ter de parar e perguntar a si mesmo se isso encaixa, se não viola a continuidade, ter de consultar enciclopédias e procurar por informações. O universo de Jornada chega num ponto onde você não pode brincar mais. Apenas se torna proibido. Eu creio que acaba sendo mais proibido para a nova audiência tentar entrar e se envolver nesse novo universo. Onde você irá pegar e entender todas essas referências? Isso se torna impenetrável em certo ponto. Desse modo eu sou um grande defensor de se limpar tudo e começar outra vez. Tudo bem. É a versão UM de Jornada. Ame-a. Celebre-a. Assisti-a para sempre, se essa é a sua favorita. Mas deixemos ter a versão DOIS. Deixemos ter uma nova Enterprise com Kirk, Spock e McCoy, deixemos que contem diferentes versões dos eventos. Veja Shakespeare. Quantas versões de “Cleópatra” tem no mundo? Então, vamos apenas fazer uma tomada diferente e deixar sair a energia, sem nos preocuparmos sobre todas as histórias passadas e não nos prendamos no que seja a primeira vez que vimos os romulanos. Na verdade, temos agora que dizer que podemos nunca fazer qualquer outra história passada com os romulanos, exceto que a primeira vez que um ser humano os viu, eles se pareceram como o pai de Spock. Nós estamos casados com isso por enquanto, mesmo que seja meio atritante, é o melhor caminho para contar a história dos romulanos do que apoiar-se nessa noção. Você quer Jornada divertida. Então faça-a divertida”.
Em breve você verá a segunda parte dessa entrevista, aqui no TB.
Fonte: Trek Movie